Monday, May 4, 2009

O início da sina iraniana – Síria


Assim que voltei do Líbano fui direto à embaixada iraniana em Damasco. Um coreano havia me dito que era possível conseguir o visto em apenas um dia, mas este não foi o fator determinante para minha decisão, dado que já sabia que japoneses, coreanos e chineses têm inúmeras facilidades para viajar no Oriente Médio, e sempre fui cauteloso com recomendações de olhos puxados em relação a vistos.

A principal razão que me fez aplicar em Damasco foi o custo de vida na Síria, extremamente barato, o qual me permitiria passar um dia com quatro dólares comendo e dormindo bem.

O funcionário do consulado me disse que em no máximo 14 dias eu obteria a resposta para a minha solicitação. Este período era o mesmo que tinha até meu visto sírio expirar. Resolvi arriscar, com o atenuante de que se precisasse prolongar minha estada na Síria poderia fazê-lo pagando apenas dois dólares.

No caminho de volta ao meu hotel, três dólares a cama (sem ducha), conheci Taylor, um canadense que estava viajando há dez meses. Ele me inspirou em dois sentidos: voltar a pegar caronas e verificar a possibilidade de ir ao Iraque (tratarei deste ponto no próximo post).

Taylor só tem viajado de carona, e suas estórias me estimularam a me entregar à Estrada novamente. Concluí que, ao pagar dois ou três dólares para percorrer 100, 200 km – totalmente cabível em meu orçamento - eu poderia estar deixando de lado boas experiências.

Na manhã em que acordei para dar início ao meu circuito de caronas pela Síria, chovia e fazia frio. Precisei de um pouco daquela força de vontade que me fazia levantar às segundas-feiras às 5h30 – quando já havia estourado em faltas – para assistir uma aula de Sistemas de Administração.

Ao chegar à beira da Estrada, mal caminhei por uns cinquenta metros e um caminhãozinho parou. Levou-me por apenas cinco quilômetros, mas já value para dar uma animada.

As outras duas seguintes caronas foram fáceis, mas tensas. Em ambas tive de gastar todo meu vocabulário árabe relacionado ao sexo feminino em um minuto (disparei como uma metralhadora frases do tipo, “amo garotas!”, “garotas sírias são lindas”, “Inshah Allah, caso-me com uma síria”) e mostrar fotos de amigas dizendo que eram minhas namoradas.

Tudo isto não foi suficiente para conter o ímpeto dos motoristas, que não falavam inglês, mas faziam gestos com as mãos bem elucidativos. Em relação à frequente abordagem de gays que tenho sofrido no Oriente Médio, já pensei em tirar o brinco, mas de nada adiantaria se eu não cortasse o cabelo – só vou cortá-lo no Brasil.

Além disso, pelas estórias que ouvi de outros estrangeiros, a questão parece menos relacionada a mim (um britânico foi abordado num bazar na Síria com a seguinte pergunta: “Você é hetero ou às vezes dá uma de Oscar Wilde?”) do que à tara étnica dos caras (árabes, turcos e curdos).

Ao menos, depois dessas desagradáveis experiências, consegui dividir duas caronas com um soldado que estava indo à fronteira com o Iraque. Também rodei 30 km em uma moto que transportava pães antes de ser coroado com a carona que alguns soldados sírios me arrumaram em um ônibus super confortável direto à Palmyra, meu destino.

Mr. Hamdam – Day-Az-Zorn/Síria

De Palmyra fui à Day-Az-Zorn. Logo na saída da cidade um comboio de caminhões passou por mim. O primeiro buzinou e seu motorista estendeu o braço direito para o alto como quem diz, “aonde vai?”. O segundo motorista já freava o caminhão e me chamava.

Como era quase meio-dia, paramos em um posto abandonado para almoçar e pude contar sete caminhões. Mahmoud, o motorista que me concedeu carona, e seus colegas vinham de Homs com placas metálicas que iriam ser descarregadas em Bagdá.

Almoçamos à sombra dos caminhões, sentados sobre um tapete de plástico. Cada caminhoneiro colaborou com um prato – humus, tursh (conservas de cenoura, pepino e cebola), ovo frito, pimenta, batata com carne moída, queijo…

Custei a entender o porquê de eles estarem indo a Hassake para cruzar a fronteira mais ao norte do país, enquanto podiam ir a Abu Kamel ou a Tarrif, muito mais próximas.

Quando cheguei em Day-Az-Zorn conheci dois universitários que desejam, após cumprirem o serviço militar obritário, contrabandear produtos do Líbano via o Mar Mediterrâneo. Eles me deram uma boa explicação para a rota do comboio. Muito provavelmente os caminhões faziam o caminho mais longo para o Iraque para não pagarem impostos.

----------------------------------------------------------------------------------------------

Três dólares é o valor que considero justo pagar por uma cama na Síria. Muitas vezes o preço não inclui vaso sanitário nem ducha, mas até aí, não me importo.

Em Day-Az-Zorn o hotel mais barato me pediu cinco mangos e a cidade não tinha rodoviária na qual pudesse passar a noite. Passei a caminhar à procura de um lugar em que eu conseguisse estirar minha rede e, duas horas e meia depois, conheci um engenheiro elétrico que trabalha para o governo e o partido Baath do presidente Bashar Hafez Al Assad, a nove anos no poder.

Mr. Hamadan me convidou para pousar em sua casa, um apartamento de 120 m2 bastante acolhedor no qual vivem ele, sua esposa e seus seis filhos (cinco meninas e um menino).

Enquanto jantávamos, ele me disse que seu sogro tivera três esposas ao mesmo tempo e 16 filhos no total. Como Huria, sua mulher, estava ao nosso lado e não falava inglês, aproveite a deixa para lhe perguntar se ele não queria se casar mais vezes. Em sua resposta, como em outros momentos, destacou que dinheiro não era o problema, “sou um homem rico e tenho outra casa, mas não quero arrumar problemas para mim e para minha mulher. Huria é uma boa esposa, não preciso de mais uma, duas ou três.”

Em seguida, pedi para que ele perguntasse à Huria se as esposas de seu pai tinham uma boa relação entre si. Ela me respondeu balançando a cabeça e contorcendo o nariz.

Ali: o cavalo – Raqqa/Síria

No dia seguinte parti em direção a Aleppo. Caminhei por uma hora até a saída da cidade e um grupo de meninos ficaram conversando comigo enquanto eu tentava carona. 15 minutos depois, montei na bicicleta de um deles e fui pedalando com o dono na garupa.

Alguns metros depois, uma caminhonete parou. Dentro dela estavam três rapazes que iam ao Eufrates nadar (detalhe que descobri somente quando eles desviaram da rodovia principal para chegar às margens do rio por uma estradazinha de terra).

De volta ao caminho para Aleppo, segui andando pelo acostamento e verifiquei que muitas famílias faziam piqueniques nas redondezas por conta de ser sexta-feira (final de semana em países árabes).

Uma família que estava mais próxima à estrada me convidou para um chá. Do chá fiquei para o almoço e parti às 14h. Um pouco mais à frente uma outra família fez o mesmo convite, o qual tive de recusar porque naquele ritmo acabaria ficando para a janta.

Depois de pegar carona com um carro e uma moto, conheci Ali, o qual viajava com seus dois sobrinhos e um amigo. Eles haviam feito uma entrega em Day-Az-Zorn e voltavam para Raqqa. Apesar de a cabine estar cheia, não se importaram em se espremerem para que pudéssemos rodar 200 km juntos.

Chegamos à cidade por volta das 18h. Como estava tarde para seguir viagem até Aleppo, aceitei o convite de Ali para passar aquela noite em sua casa. Foi assim que conheci Mohammed, um vizinho que falava inglês, com quem travei acaloradas discussões.

Como já disse, quando um árabe me pergunta sobre Gaza e Israel, tento tergiversar, responder com perguntas, falar da opinião dos outros. Mas se insistem, eu falo, e aí começa uma longa discussão cujas bases eu já divulguei aqui e não pretendo repetir.

Apenas um comentário novo que vem como desabafo. Se estou numa mesquita ou num centro islâmico, considero totalmente aceitável que muçulmanos tentem me convencer da superioridade de sua religião. Agora, quando estou na rua ou mesmo na casa de alguém, falta-me paciência para explicar por que não sou um seguidor do profeta Maomé.
Assim, não foi sem a intenção de dar uma espetada que perguntei ao vizinho de Ali o motivo de homens, e somente eles, poderem se casar ao mesmo tempo até quatro vezes segundo o Corão. Mohammed me deu a mesma resposta de sempre: talvez a primeira esposa não possa ter filhos; talvez ela não seja uma boa esposa (?).

O alfitrião Ali, ao saber do assunto, respondeu com uma sinceridade que nunca havia visto: “quero me casar pelo menos mais uma vez [estava no seu primeiro casamento] porque amo sexo. Eu sou um cavalo!”. A resposta foi reta e boa para tirar a tensão do ar.

Matei a charada – Lattakia/Síria

Depois de passar dois dias em Aleppo, peguei a Estrada em direção à Latakkia, às margens do Mar Mediterrâneo.

Um caminhão e um triciclo depois, peguei carona com uma 4x4. Ad’nam Honsi estava indo ao porto da cidade para tartar de negócios – ele é dono de uma transportadora que faz entregas para o Iraque.

Graças ao jovem empresário, pude chegar a uma resposta definitiva para a dúvida em relação ao comboio de caminhões de Day-Az-Zorn. Ele me explicou que a única fronteira aberta para a passagem de caminhões é a de Tarrif, ao sul do país. Assim, sem dúvida Mahmoud e seus amigos estavam fazendo contrabando.

Monastério Mar Mussa – Nabeck/Síria




Mar Mussa visto pelos "fundos"



Voltei para Damasco doze dias depois de solicitar meu visto iraniano. Fui ao consulado e me disseram que ainda não haviam recebido resposta do Ministério de Relações Exteriores (MFA). Um nítido sinal de que eu rodaria.

De lá fui ao Departamento de Imigração sírio para estender meu visto por mais quinze dias e, em seguida, fui usar a internet. Havia recebido um e-mail de Taylor falando sobre um monastério construído no século VI a 80km de Damasco. Também em Palmyra havia conhecido Ibrahim, um francês que falava português fluentemente, o qual estava indo ao mesmo local.

Decidi que seria o melhor lugar para relaxar enquanto esperava uma confirmação do MFA e me dirigi para lá.

Peguei uma van até Nabeck, 80 km ao norte de Damasco, e de lá peguei uma carona para rodar os 18 km restantes até o monastério. Assim que cheguei ao pé da montanha em que ficava Mar Mussa, a 1320 metros de altitude, vi uma porção de famílias árabes fazendo piqueniques (era sexta-feira) e já pude perceber que boa parte do tempo o monastério era mais uma atração turística – para gringos e locais muçulmanos – do que um retiro espiritual.

Cotidiano em Mar Mussa

De segunda a sábado o dia começa às 7h30 da manhã com uma missa na igreja datada de 1058. Sentamo-nos no chão e retiramos os sapatos antes entrar, seguindo os costumes orientais.

Todo o serviço religioso é feito em árabe, mas quando há um grande número de estrangeiros, uma irmã traduz o sermão para o inglês.

O café-da-manhã é servido logo em seguida e todos colaboram para pô-lo à mesa. O cardápio é totalmente árabe: pão sírio, marmelada, zahtar (uma mistura de temperos), óleo de oliva, azeitonas, queijo e iorgute.

Após o café nos separamos voluntariamente nas tarefas do dia: fazer o almoço, lavar à louça, limpar os banheiros, passar aspirador nos tapetes da igreja, capinar a pequena horta, lavar lençois e toalhas…

O almoço é servido por volta das 14h30. Ora-se antes da refeição, normalmente com uma prece cristã, mas certa vez recitamos o Al Fatihah – abertura do Corão. Sempre há uma saladinha e sopa ou arroz. Comida simples, mas muito boa.

À tarde, se não houver turistas para receber (o que é raro), o tempo é livre. Alguns vão descansar nos alojamentos, outros lêem na biblioteca ou ainda saem para fazer caminhadas pelo deserto ou pelas montanhas.

Às 19h há uma meditação seguida de uma missa. Às 21h é servido o jantar e às 22h homens e mulheres devem ir para seus respectivos alojamentos.

Farnoosh Hashemian

No sábado, meu segundo dia no monastério, acreditei que teria um pouco mais da paz de espírito que procurava para não aumentar a angústia em relação ao visto iraniano.

Pela manhã, pude ajudar a capinar a pequena horta de plantas medicinais ao pé da montanha do monastério, atividade que me deu enorme prazer e tranquilidade. Acreditei que o dia continuaria naquele ritmo sereno, mas estava enganado.

Por volta da hora do almoço, um numeroso grupo de garotas, a maioria francesas que estavam estudando árabe em Damasco, chegou. Um americano até me disse que Mar Mussa estava mais para Paraíso do que para monastério.

Estava eu lavando louças (quem leu este blog sabe que, em matéria de tarefa doméstica, eu me realizo na pia) quando uma jovem veio me entregar o prato. Naturalmente, perguntei-lhe de onde ela era e recebi a mais inesperada resposta, “Originalmente sou do Irã, mas vivo nos Estados Unidos.”

Só com aquela resposta já imaginei toda a vida da garota. Provavelmente ela deveria ter imigrado por conta da Revolução Islâmica de 79… Acertei, mas havia muito mais enredo para a história.

Farnoosh nasceu em Los Angeles em 1978 e sua família retornou ao Irã por conta da revolução. Aos 16 anos ela disse a seus pais que queria estudar nos EUA, mas eles não lhe permitiram imigrar sozinha tão nova.

Aos 18, ela se submete ao exame nacional, CONCUR, para a admissão nas universidades públicas do Irã. Assim, Farnoosh inicia seus estudos em engenharia e seu envolvimento com organizações estudantis clandestinas que lutavam em prol da expansão dos direitos humanos no país (liberdade de expressão, ampliacao dos direitos da mulher, abertura política).

Foi então, quando havia acabado de iniciar sua vida universitária, que o pedido de seu pai feito ao consulado canadense foi aprovado, isto é, sua família imigraria para Vancouver.

Diante disto, Farnoosh opta por não ir com sua família e fica no país por cinco anos, estudando engenharia, mas, principalmente, engajando-se nos movimentos estudantis.

Aos 23 anos ela resolve imigrar para os EUA e lá se pós-gradua em Saúde Pública em Yale. Desde em tão trabalha com direitos humanos e tem publicações sobre a tortura de presos em Guantánamo e Abu Ghraib, o efeito do uso de armas químicas por Saddam Hussein na guerra entre Irã e Iraque, a questão homossexual no Irã…

Naquele noite, lembrei-me de que a decisão mais difícil que fiz quando tinha 18 anos era se deveria fazer administração de empresas ou administração pública. E de que luta por direitos humanos dentro do movimento estudantil para mim significavam passeatas promovidas pelo PSTU contra a injustiça social gerada por entes abstratos – “o sistema”, “o imperialismo americano”, o Tio Patinhas.

Ao entrar no Face Book, encontrei a seguinte descrição de quando ela chegou aos Estados Unidos: “Uma vez eu tive 23 anos. Eu nao conhecia computadores, nem internet, nem os Estados Unidos. Eu sabia apenas um pouco de ingles. Nao imaginava que eu poderia romper com a vida que conhecia ate entao. Mas eu, espantosamente, consegui. E minha vida repentinamente mudou, mudou e mudou. Eu estava livre! De repente, eu tinha o controle sobre minha vida... De repente, eu tinha pequenas asas e podia voar.”


“Você está na lista negra!” – Damasco/Síria

Voltei para Damasco e, além de receber um seco, “NEGADO!”, o funcionário do consulado iraniano completou, “Você está na lista negra”. De fato, o governo iraniano e seus funcionários são profissionais em matéria de terrorismo.

Fiquei à frente do guichê por quatro horas tentando uma oportunidade para falar com o cônsul que não me foi concedida. Sentei à frente do prédio e listei as opções que me restavam:

1 – Ir a Trabzon/Turquia (havia ouvido falar que era possível pegar o visto no mesmo dia);
2 – Usar uma agência de viagens (aumenta as chances, mas teria de pagar quase o dobro do preço do visto);
3 – Pegar o avião para Tehrã (é possível conseguir um visto de quinze dias no aeroporto).

Então era isso… iria à Turquia, mas antes celebraria o Nowruz com Farnoosh e seus amigos e iria para o Curdistão iraquiano (próximo post).

No dia 20 de março, Farnoosh convidou-me para um almoço em sua casa com seus amigos. No dia seguinte seria o início da primavera, que marca o começo do calendário persa e curdo (Nowruz).

Ela havia decorado uma mesa com sete elementos (“haft sin”, em farsi) que começam com a letra s… Entre flores, frutas, ovos, alho, condimentos, uma vaquinha de pelúcia e moedas havia um objeto curioso. A tradição é colocar um livro sagrado no centro da mesa. Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos ocupava o lugar que seria do Corão.

Mesa "Hafta sin" de Newruz

No comments: