Friday, June 20, 2008

Yuba/Mirandopolis - Moro na roça ai-ai-ia...





Yuba chegou ao meu conhecimento quando ainda estava no Japao, em final de fevereiro ou começo de marco. O Allan (amigo da GV e companheiro de samba) me mandou um e-mail dizendo que queria conhecer uma comunidade japonesa no interior de Sao Paulo composta por cerca de 60 pessoas .
Retornei ao Brasil e, conversando com ele, achei que seria um otimo lugar para iniciar minha viagem. De subito, no domingo de minha despedida, quatro dias antes do inicio da jornada, o Allan, o Cassio e a Satomi disseram que gostariam de ir comigo passar o feriado prolongado.
Assim, fomos todos juntos na manha de quinta-feira. Os tres retornariam no domingo de manha e eu pensava em ficar 14 dias, mas nao resisti e fiquei 18 (ate a manha de nove de junho), muito mais para passar meu aniversario com pessoas que se tornaram muito queridas do que para simplesmente nao passa-lo na estrada (como pensava antes).
De quinta a domingo (quatro primeiros dias) nao pude entrar no cotidiano da comunidade por conta da quantidade de visitantes que se hospedaram la. Toda a programacao foi feita especialmente para receber uma escola de lingua japonesa da Zona Norte de Sao Paulo, e nos, naturalmente, seguimos a agenda de atividades.
A partir de segunda-feira já entrei no ritmo de Yuba indo colher quiabo, podando goiabeiras, descascando e limpando milho, fazendo cerca... Também pude acompanhar os ensaios do ballet, os treinos do coral, as aulas (somente em japonês) para as crianças e as viagens para apresentaçãs em outras cidades.
Além destas atividades, há aulas de música (piano, violino, violoncelo, flauta), ateliê de pintura, esportes (beisebol, tênis) e a pinguinha/cervejinha do final do dia que também contribuem para a integração dos membros e desenvolvimento da coletividade. Porém, os maiores eventos sociais de Yuba são as refeições, sempre precedidas de alguns minutos de silêncio para cada um orar a sua maneira, e o ofurô (banho turco).
O horário das refeições é anunciado com o toque de um berrante. Ainda que todos possam se acomodar onde quiserem, os mais velhos já possuem seus lugares cativos e seus filhos costumam se sentar próximos a eles. É um momento para se desfrutar as delícias da culinária Yubana (renderam-me três quilos e me ajudaram a melhorar da gripe que tinha quando cheguei) e pôr a conversa em dia.
O momento do ofurô é como o da refeição: não se deve estar sozinho. Parecia constrangedor no começo, tal como foi para mim em Kyoto, num hotel em que fiquei com meus tios e um amigo, mas não precisou ninguém desmaiar (a pressão deste meu amigo caiu e ele desmaiou, o que foi suficiente para se esquecer do detalhe de que estavamos pelados) pra se deixar a timidez de lado.
Foi sentado no banquinho de madeira me banhando que pude conhecer melhor moradores mais velhos com quem não tinha a oportunidade de trabalhar ou passar algum tempo juntos. Assim, descobri viajantes japoneses que terminavam suas viagens em Yuba e recebi recomendações para tomar somente destilados (uma referência educada a minha barriga de chopp). No final, até comecei a me sentir solitário quando tomava banho sozinho (não façam mal uso desta afirmação).
Outra experiência, se não enriquecedora ao menos engraçada, foi participar do ateliê de pintura que acontece às 14h30 das sextas-feiras. Havia oito pessoas de idades que variavam de cinco a quarenta e tantos anos para pintar uma natureza morta (um vaso com flores, um coco e um ramo de folhas). Fazia pelo menos dez anos que nao sentava para desenhar alguna coisa e, quando olhei para o papel, foi como se estíbese lendo uma prova de Estatistica ou Financas da GV: nao tinha nem ideia de por onde comecar. Nestas situacoes, so resta o tipico “embromation geveniano” que nos leva a ser o ultimo a comecar a prova e o primeiro a terminar. Vi que o meu desenho estava mais para uma pintura abstrata com influências de Manabu Mabe do que para um retrato de paisagem morta, e nao tive duvida de que o desenho do menino de cinco anos estava melhor do que o meu. A parte que coordena as aptidoes plasticas do meu cerebro debe ter um ano a mais do que a do menino, dado que ao menos eu podia reproduzir as coisas em tres dimensoes.
Já observar o ballet, seja em suas apresentacoes ou em seus ensayos, era com certeza o apice de meu dia. E claro que nao se trata de um The Royal Danish Ballet, mas por ser exatamente o Ballet Yuba, que agregava pessoas de idades tão distintas, talvez de ate tres geracoes, e por ter convivido com eles seja na roca, seja no galpao descancado milho ou no refectorio orando antes das refeicoes, e que se tornava tao magico olha-los se transformando no palco. Vi a mesma apresentacao mais de sete vezes, e em todas elas era vivificado por um enorme extase.
Em relação à educação japonesa, era incrível observar a liberdade das crianças que corriam para lá e para cá sem que houvesse constantemente os olhos preocupados dos mais velhos. A autonomia era tanta e as crianças tão desenvoltas que era impossível descobrir quem eram seus pais. Quase fiquei vermelho quando uma menina de dois anos me disse "eu posso fazer sozinha" quando tentei ajudá-la a pôr o sapato. Ou ainda quando eu pensei em pegar um bebê de menos de um ano no colo porque berrava e um garoto de 14 veio olhá-lo e me disse "não precisa, ele não esta chorando". Tudo isso me deu uma dimensão da educação japonesa e me fez compreender a frase 「三つ子の魂(たましい)百まで」 (A alma constituída até os três anos é a alma que se extende até os 100 anos).
Ainda a este respeito, e inserido no pensamento japonês de valorização de todas as coisas, foi impressionante verificar uma mãe dando bronca por mais de 20 minutos numa criança, a qual não tinha nem dois anos e esperneava pedindo colo, por conta de ele ter jogado comida no chão. Nunca vi paciência tão educadora, dado que a criança se acalmou e pediu desculpas, que pareciam voltadas mais ao alimento jogado do que à própria mãe. Outro caso de rigor contra o desperdício se deu com uma outra mãe que catava cada grão de arroz que se havia grudado na camiseta de seu filho e os colova na boca.
Também o senso de coletividade e a ausência de distinção por conta de idade ou posição social foram outras coisas que me deixaram surpresos. Se o dia seguinte fosse dia de entrega (de quiabo e milho, principalmente) e havia trabalho para até depois da janta, então pessoas que já haviam terminado seus afazeres iam ajudar até o final de todo o serviço para que o descanso fosse desfrutrado conjuntamente. Assim foi numa noite de quarta-feira: jantamos rapidamente e, com pessoas de cinco a cinquenta anos, terminamos o trabalho em menos de uma hora.
Mas este tipo de atitude dos moradores de Yuba não se restringia ao interior da comunidade. Em Avaré, após guardar todo o equipamento do ballet utilizado na sua apresentação, os yubanos se reuniram para ajudar a carregar um caminhão com cadeiras e mesas utilizadas pelos organizadores do evento. Por meio daquilo que é característico do trabalho de equipe, o "escravos de jó", o trabalho foi feito alegre e rapidamente, e só depois de concluído é que Yuba foi jantar.
Entre os visitantes recebidos no período em que estive lá, havia um funcionário da embaixada japonesa e um representante do Ministério da Cultura, Sérgio Mamberti, mas conhecido como Dr. Vítor do Castelo Ratimbum. Ainda que sejam pessoas importantes socialmente, não tiveram nenhum tratamento especial por conta de seus cargos ou posição social (fama não conta muito porque lá se assiste mais a NHK): se é a primeira visita, são apresentados na refeição; não têm comida e quarto especiais, ou qualquer regalia ou favorecimento. Ah, tomamos Bohemia na noite em que o diplomota foi recebido, mas somente porque foi presente (por acaso, do próprio).
Assim, esta junção de arte e cultivo da terra, somada a uma enorme valorização da estrutura familiar e da coletividade, trouxe-me uma grande paz que me fez refletir sobre a hipótese de eu aderir este estilo de vida bucólico, que antes recusava com veemência menos pelo desgosto do trabalho agrícola do que pela preocupação de estar alheio aos problemas do mundo.
Foi esta paz acolhedora que me tornou "ひでき 感激。" (Hideki Kangueki). “Hideki Kangueki”, explicou-me Koojiro, um dos moradores da comunidade, era uma especie de slogan utilizado em um comercial japones de tevê ha 25 anos, mais ou menos. Um garoto chamado Hideki comia um prato de comida japonesa, o kare, e assim se tornava “Hideki Kangueki”, isto e, Hideki emocionado (para quem nao sabe, meu nome japones é Hideki).
E foi emocionado e um pouco triste por conta de se estar próximo do fim, é que comemorei meu aniversário em Avaré, em seu ginásio de esportes, palco da provável derrota dos gevenianos para os feanos no futsal no mês de maio, que ainda continha um adesivo colocado na quadra anunciando os jogos universitários dos cursos de administração, economia e ciências contábeis, ECONOMÍADAS. Ganhei até presente, de uma forma muito curiosa.
Estava eu sentando com Sho-ê, um garoto de 11 anos, quando ele veio me perguntar o que era trufa, que estava sendo vendido atrás da platéia. Expliquei que era um doce feito de chocolate até que brinquei: "tá querendo que eu te pague um, né? Mas peraí, o aniversário é meu e você que não me deu nada". Foi aí que ele viu um papel no chão, pegou-o e me deu. Era um convite para o evento. Respondi, "pô, mas o evento é gratuito. Isso não vale nada", mas como verifiquei que havia uma numeração (811), guardei-o no bolso imaginando que haveria um sorteio. Momentos depois, nas palavras de abertura, o apresentador disse que ao final do evento seria sorteado um dvd, então pensei: "É meu. Preciso presentear Yuba com algo que demonstre minha gratidão."
O evento terminou e me dirigia aos fundos do palco para cumprimentar os integrantes do ballet quando começou o sorteio, "o número sorteado é mil e..."; pensei, "não tá. A pessoa não tá." Ele anunciou o número todo e a pessoa realmente não estava. Depois sorteou-se outro número que começava com 8. Pronto. Disse para dois integrantes de Yuba "Vou pegar nosso dvd" e já subia pelas escadas da parte de trás do palco quando o apresentador completou "número 8-1-1: 811". Fiquei com medo de acharem que era marmelada, porque fui anunciado como um integrante de Yuba, mas foi tudo bem. Quando voltei para os fundos do palco com o dvd na mão, olhei o Sho-ê me esperando e lhe extendi o presente.
Tá bom, sei que talvez pensem: "tem que dar mesmo, o que você ia fazer com um dvd na viagem", e não vou responder que talvez pudesse fazer um troco. E, na verdade, já havia recebido muitos regalos: calos nas mãos (não sabem como me dá gosto olhá-los), três quilos, um apelido (Hideki Kangueki), e, principalmente, uma dúvida que se tornaria determinamente para a minha viagem. Sobre esta dúvida, falarei mais adiante, mas esta intrinsicamente ligada à sensação com a qual acordei na manhã de quarta-feira, cinco dias antes de partir de Yuba, que batizo de agonia da despedida.
Trata-se daquela agonia que vem da percepção de qeu em breve será preciso partir. A mesma agonia que nos faz recear o adeus também instiga o eu-lírico: se o pestinha que te bate se torna um principezinho, a criança que antes era somente linda e adorável, seu ideal de filha; os pássaros parecem cantar mais; a mesma lua e o mesmo céu se tornam ainda mais elementos de contemplação... e no fundo, faz se poesia melancólica, música sertaneja, pagode universitário... Todas aquelas coisas de quem não está satisfeito com algo e se lamenta. Leiam a parte da Argentina e verão.
Para concluir, comento rapidamente uma matéria da Caros Umbigos (também conhecida como Caros Amigos) sobre Yuba numa espécie de edição especial "os japoneses na esquerda" na qual há entrevistasas, as quais não pretendo comentar, com japoneses do MR-8, da ALN; além de uma do Gushiken dizendo que quando era pequeno ouvia brincadeiras relacionadas ao tamanho de sua genitália.
A revista exagera e esteriotipa, como sempre. "Um lugar onde tudo é diferente, onde todos fazem de tudo, onde a agricultura e a arte se encontram, e onde ninguém tem dinheiro." Ou ainda, "Aqui a entrada é livre: não há portões nem muros, nem trancas, nem cadeados. Não há leis nem concorrência. Regras não existem: cada um faz o que bem entende. Ninguém recebe ordens de outra pessoa..."
Yuba não quer ser exemplo daquilo que os caros-esquerdistas desejam propagandear, dado que Cuba e China não são baluartes. Tanto o é que ninguém teve paciência de ler a matéria até o fim (exceto eu, que me arrependo, por sinal) e a primeira reação, de tão pura e ingênua, foi recear por seus exageros. Uma jovem me disse que é perigoso ficar anunciando que não há muros, nem trancas, nem cadeados.
O dinheiro existe e é necessário, não somente para comprar aquilo que não é produzido internamente, mas até mesmo para se ir a um rodeio e tomar uma cerveja, ou ainda meramente pra se comer um lanche. Regras não estão escritas por extenso, mas há um enorme respeito aos mais velhos e aos pais, além do fato de se tratar de uma associação que, portanto, possui um estatuto. "Cada um faz o que bem entende", não se trata de um movimento punk-anárquico, mas sim de uma comunidade constituída de integrantes fortemente conscienciosos de suas obrigações, tornando-se desnecessária as ordens. A livre concorrência pode não exister dentro da comunidade, mas é comprendida e assimilada pelos seus gestores, senão não poderiam desfrutar a atual condição de superávit de suas operações.
Enfim, não sei se Isamu Yuba, fundador da comunidade, teve influências de Proudhon, Marx, Rousseau ou qualquer autor que insufla os ânimos esquerdistas, e na verdade isto não é relevante, ao menos para mim. Os membros da comunidade Yuba não culpam o "neo-liberalismo", não pregam o fim do livre-mercado, ou abominam a tecnologia ou os produtos das multinacionais. São pessoas que, com base nas tradições, cultura, educação e costumes japoneses, são felizes em sua simplicidade por buscarem a transformação de si próprios ao invés da revolução da humanidade. Foi lá que meu orgulho de ser descendente de japoneses se tornou muito maior do que quando admirei a estrutura ferroviária dos trens-balas ou as grandes edificações japonesas.

弓場、どうもありがとうございます!!!!!

Como cantaria o Cássio... "Moro na roça ai-ai-ai... nunca morei na cidade... como o gohan da manhã, e o gohan da tarde"

P.S. 1: quem quiser saber mais sobre a comunidade, pode acessar os seguintes sites:

- www.estadao.com.br/suplementos/not_sup81750,0.htm

- www.youtube.com/watch?v=L33D3PhkjSM

- http://vejasaopaulo.abril.com.br/red/galerias_vejinha/yuba/

Não tenho certeza, mas acho que a exposição de fotos da Lucile Kanzawa ainda pode ser vista na Pinacoteca.

P.S.2: desculpem-me pelo fato de não estar tudo devidamente acentuado. Uma parte havia escrito na Argentina. É também por este motivo que há coisas escritas em espanhol: o famoso corretor automático do Word.




Miê e Linta fazendo "Moti" (massa feita de arroz)

Saturday, June 14, 2008

Sobre a viagem ao Japao

Como a viagem ao Japao e parte indissociavel desta jornada, reproduzo aqui (ate como forma de enrola-los um pouco) o relato que mandei em fevereiro sobre a fase da formacao do pe-de-meia.

abs

Caros conterraneos de minha pátria querida,primeiramente, gostaria de pedir desculpas a todos pela ausencia de noticias. Este deveria ser o meu segundo e-mail, dado que pretendia fazer um relato mensal. Também agradeço pelos votos de sucesso e preocupação com minha saúde constantemente mencionados nas correspondencias que recebo.Tentarei dar o máximo de informações possíveis a respeito desta empreitada na Terra do Sol Nascente, onde milhares de brasileiros vem [por favor, não reparem os erros ortográficos, não acho acentos neste teclado japones] arriscar sua sorte com sua bagagem repleta de sonhos, as vezes ilusoes. Talvez não consiga relatar tudo que gostaria, dado que a constante limitacao de tempo sempre me aflige.DezembroNo dia posterior a prova de Econometria, que encerrou minha passagem de quatro anos (e algum atraso pela GV), iniciei minha viagem ao Japao. Antes de tudo, ansiava juntar certa quantia de dinheiro para objetivos futuros (falo sobre eles em outra ocasião) e, portanto, já possuia a convicção de que esta viagem é apenas a ante-sala daquilo que pretendo explorar.Ainda assim, percebo, por meio dos e-mails que tenho recebido, a quimera turística que trouxe comigo. Imaginava que iria mochilar pelo país, conhecer redutos niponicos do samba (ainda que tímidos), explorar a origem de meus ancestrais... Ledo engano! Com dois terços da jornada completos, estando de fato ciente da verdadeira realidade que acomete os dekaseguis, sinto-me mais a vontade de lhes escrever sem tropeçar nessas ilusoes. Meus primeiros vinte dias foram turísticos. Devido ao feriado de Ano Novo, trabalhei apenas dez dias em dezembro, folgando outros dez até se iniciar o ritmo japones frenético de trabalho. Evidentemente que após o primeiro dia de trabalho, com a constatação da repetitiva atividade que seria minha camisa de força por cerca de tres meses, as viagens de ida a fabrica já haviam deixado o seu caráter principiante e assumido o angustiante. Todavia, a proximidade do feriado aliviava esse tipo de pensamento.Para entenderem o porque da angústia, repoduzo abaixo a descrição que fiz de meu serviço , em minha primeira semana de trabalho, numa das primeiras tentativas de lhes escrever:Para não dizer que eu não falei o que eu faço, ou melhor, para eu nunca mais falar, dado que não há perspectiva alguma no que se refere a desafios na atividade que exerço, irei descrever detalhadamente meu serviço: pego uma peça metalica de mais ou menos 50 cm e 150 gramas e verifico se há rachaduras ou rebarbas nela. Em uma hora, vejo cerca de 480 dessas peças. Multiplique isto por 13 (média de horas de trabalho por dia) e vocês terão, indubitavelmente, dores na costa, vista cansada, maos doendo e, uma infeliz constatacao, coceira. Meu anfitriao na fabrica de auto-pecas bem que me havia avisado de que "o trabalho seria terrivel".
Quarenta e cinco dias após esta descriçao, algumas mudanças devem ser feitas. A coceira devido a alergia ao oleo é menor, o meu oculos ja nao tem duas hastes (uma quebrou), o numero de horas aumentou, mas o trabalho é praticamente o mesmo. As maiores diferenças estao mais em minha postura mental. E é nesse processo de mudança que concentrarei meu relato. Poderei falar mais sobre os passeios que fiz depois, caso desejarem.JaneiroA constatação aterradora de que vivia em um mar de ilusões se deu no ano novo, quando eu estava na casa de meus tios em Kikugawa, província de Shizuoka. Aproveitei a disponibilidade de computador para fazer minhas projeçoes financeiras e verifiquei que somente se eu fizesse seis horas-extras por dia alcançaria minha meta. Julgava aquilo impossível, dado que até aquele momento havia feito uma media de apenas duas horas e meia por dia. Fiquei desesperado e pensei seriamente em desistir e contar com um aditivo paterno as minhas contas. De qualquer forma, estava decidido a procurar algum outro serviço aos finais de semana assim que voltasse a Miyoshi (cidade em que estou).Assim que voltei do feriado, sai caminhando a procura de algum bico. Andei até a cidade vizinha, Toyota, em direção a um mercado especializadoem produtos brasileiros. Lá, a atendente me disse que um possível lugar que admitisse trabalhadores temporários era a academia de ginástica brasileira de um conjunto habitacional chamado Homi Dant. Como ela não havia o telefone de lá, descreveu-me, toscamente, o caminho. Eram 14h30, aproximadamente. Caminhei por quase tres horas sem encontrar o lugar. Definitivamente havia me perdido, mas me negava a desistir. Quando faltava pouco para escurecer e esfriar mais ainda, rendi-me e comecei a fazer o trajeto no sentido contrário, voltando para casa. Foi por pura sorte que encontrei um policial que constrangeria qualquer tentativa minha de voltar para casa de maos abanando. Explicou-me tao dedicadamente o caminho por meio de um mapa e de descricoes em japones, ingles e portugues que cheguei ao destino desejado em menos de trinta minutos.No Homi Dant, a academia não possuia vaga em seu quadro, mas ao menos consegui deixar meu telefone num restaurante. Voltava para casa minimamente satisfeito quando reparei numa pizzaria com letreiro em portugues. Parei para perguntar o caminho mais curto até minha casa e verificar se precisavam de "arubaito" (trabalhador temporario). Foi assim que as quase seis horas e meia de caminhada me renderam o bico de pseudo-pizzaiolo (pseudo porque não faco a massa, só monto a pizza) aos sabados.O bico deu-me nova perspectiva, mas ainda não era suficiente. Precisava cortar gastos e, principalmente, aumentar minha renda por meio de horas extras. Ainda que fosse uma agonia ir ao trabalho nesses primeiros dias, pior era a "onipresente ansiedade" que surgia nas horas finais do período obrigatório de trabalho, isto é, período sem horas extras (representado por 455 minutos na fábrica, ou sete horas e 35 minutos). Sair só de "Teidi", período de trabalho obrigatório, era frustrante para todos os universitários, ávidos por dinheiro. Essa ansiedade durou quase um mes, quando, após algumas "técnicas" de se ganhar horas-extras, minha jornada de trabalho se estabilizou no patamar de aproximadamente 16 a17 horas por dia. Foram dias fatigantes de poucas horas de sono e muitas dores no corpo, mas estava satisfeito, pois sabia que ultrapassaria tranquilamente minha meta, dado que fazia cerca de sete horas adicionais enquanto precisava de apenas seis horas de "zangyo" (hora=extra) por dia. Julgava que o maior obstáculo para a realização de muitas horas extras fosse a inveja dos colegas de serviço, impedidos pela legislacao trabalhista japonesa de fazer mais de 44 h por mes. Mas esta foi contornada após uma conversa capenga (porque em japones), mas direta, com o meu chefe. Resolveu, por uns vinte dias.Infelizmente, se hoje tenho tempo para escrever para voces, é porque houve uma barreira que não pude transpor. No dia 21 de fevereiro aconteceu o fato indesejado: o único que poderia realmente me impedir de realizar horas-extras, isto é, meu chefe, deu-me a triste notícia de que até o final do mês precisaria sair de "teidi", pois já havia estourado minha cota de 99 horas por mês (fiz cerca de 116 horas em fevereiro. Em janeiro, tb havia estourado em aproximadamente oito horas). Das pessoas que suavizam meu cotidiano ferrenho, um dos mais interessantes e engraçados é um japones que trabalha comigo. No começo, ele ate tentava incrementar seu vocabulário portugues com palavras que nao se restringissem a expressoes indecorosas ou ligadas a sexualidade. Dei-me conta de que sua aprendizagem crescia exponencialmente em relacao ao nivel de vulgaridade do gesto ou expressao neste dia em que meu chefe me avisou que sairia de TEIDI. Virou-se para mim, fechou uma das maos e a bateu na outra aberta, fazendo aquele peculiar gesto de "Se fudeu!". Pois e, quantos nao sao os mestres que se tornam vitimas dos seus proprios alunos? Procurarei ensina-lo a contar ate dez, é mais saudavel.Naquele dia 21, meu primerio dia sem nenhuma hora-extra, fiquei das 15h as 22h no escritorio da empreteira utilizando o computador e o telefone. O primeiro, para verificar quanto ja havia atingido de minha meta financeira. O segundo, para procurar outros trabalhos temporarios que cobrissem este buraco no mes de fevereiro.Por meio da planilha financeira, verifiquei que ja tinha atingido, ate aquele momento, 85% de minha meta e que se eu trabalhasse o mes de marco cumprindo minhas 99 horas de direito, cumpriria em 114% meu intuito. Consegui tambem um arubaito na terca feira (26) em uma fabrica de conservas (tsukemono e kimuti, em japones). Sai do trabalho as 3h da manha, tomei banho e fiz a marmita para pegar o transporte da empresa as 5h. Esperei por 40 minutos num baita frio, recordando-me de todas as licoes de xingamentos que ja havia dado ao japones. Nao fui pra casa me aconchegar em minha cama quentinha por um pensamento que se materialiazou na fabrica: minha condicao me permite abdicar dos nove dolares a hora em troca de uns 23 graus celsius a mais e cinco horas de sono, mas e um(a) senhor(a) responsavel pela renda familiar? Teria esta liberdade de escolha? Foi esta reflexao que me levou a admirar meu companheiro de trabalho, conterraneo e vizinho (tambem morava na Raposo Tavares), antes mesmo de conhece-lo. O senhor Yamaguchi tem 63 anos. Veio para o Japao ha seis meses e mora com sua esposa, filha (tb trabalha), filho de, pasmem, 12 anos, e netinha. Ele chega a trabalhar mais de doze horas por dia ganhando os mesmos nove dolares a hora que eu ganharia e fazendo a mesma coisa que eu: pegar uma bacia de uns 15 quilos, jogar sobre uma extensao de 50 centimetros e passar a preencher cinco escorregadores de 40 cm de comprimento com cerca de 200 a 300 gramas de conserva de acelga (kimuti).O senhor Yamaguchi é uma das muitas pessoas que conheci as quais trouxeram consigo, alem de sua dispocicao para trabalhar, o sonho de ter uma vida melhor. Em seu caso, a inseguranca brasileira teve um peso consideravel para o fracasso de suas aspiracoes: foi assaltado mais de 15 vezes, o que prejudicou consideravelmente a quitanda e a floricultura que aí possuía. As vezes penso a respeito desta inversao do fluxo imigratorio entre Brasil e Japao. As aspiracoes sao as mesmas, as dificuldades enfrentadas para a instalacao da nova residencia, parecidas. Buscar seguranca e trabalho, adaptar-se as diferencas de lingua e costumes. O resultado desta expedição é medido por meio das gerações futuras e, de forma pessimista, talvez precoce, julgo que os ancestrais tiveram mais sucesso do que seus vindouros.Os filhos dos dekasseguis nao sao bilingues, sao duplamente semi-lingues. Tem dificuldades para estudar na escola japonesa, nao acompanhando seu ritmo. Ja os que estudam tambem na escola brasileira, tem um ensino tao precario quanto os estudantes de escola publica no Brasil (minha opiniao). Desta forma, acabam ocupando os lugares de seus pais nas fabricas. Acerca da educacao familiar, conheci uma moca que faz parte de um associacao de brasileiros. Aos sabados ela trabalha voluntariamente com criancas e adolescentes "rebeldes" cujos pais nao possuem tempo para passar com os filhos. Disse-me que há muitos jovens brasileiros nos centros de recuperacao (seria um disparate dizer que sao como as FEBEMs do Brasil).Vou encerrando por aqui, bem como o meu ócio. Hoje se inicia uma nova fase, a da despedida dos amigos que regressarão para o Brasil. No apartamento, estamos em oito pessoas, não sobra muito espaço. Sao dois por comodo, sendo que durmo na sala. Ainda assim, devo a esta família, batizada de "Mascote e os sete anões", o conforto psicológico de um bom convivio social. Como diz o Mascote, Cassio, sou o vencedor neste BIG BROTHER niponico dado que serei o ultimo da casa a partir.Ainda que o trabalho me enclausure por mais de tres quartos do dia, estarei com a mente liberta para me lembrar das rodas de samba, quitutes maternos, politica brasileira, cerveja gelada e futebol. Alias, fico pensando nos pelo menos 150 cerebros que viajam por infinitos pensamentos durante a execucao do repetitivo trabalho manual que nao possui a dimensao nobre da definicao de Gandhi, mas que rende ate 17,5 dolares a hora num mundo onde tudo é consumível (alias, nao vi nem de longe toda aquela famosa religiosidade/espiritualidade do povo japones. Os templos sao antes locais turisticos de agrupamento social do que ambientes para reclusão introspectiva. O pais todo parace apenas atiçar seus cinco sentidos). Pelos depoimentos que recolhi, as divagaçoes vao desde o que a pessoa ira comer quando chegar no Brasil, até aos planos para ir ao sunako (bar japones onde uma mulher fica "conversando" com vc enquanto toma drinks a sua custa) ou, mais pragmaticamente, supurando (puteiro) no dia de folga.Recomeço o ritmo intenso de horas=extras com maior animo apos ler os e-mails do Cassio e do Joao. O primeiro, ainda mochila pelo Oriente Médio. O segundo, acaba de regressar da Africa. Continuarei inspirado pelos seus relatos e vigilante com a maxima de Jaiminho, sempre buscando "evitar a fadiga".Acredito que naõ terei mais tempo para escrever, assim, darei notícias minhas pessoalmente.Fiquem com o samba no pé, não deixem o banjo largado na cadeira, tomem a vacina contra febre amarela e evitem usar cartões corporativos.Fernando

Preparativos

Sei que estou bem atrasado, mas preciso falar dos preparativos (ate como maneira de fugir da ardua tarefa de relatar o que significou os 18 dias que passei em Yuba).

O texto a seguir vai sem acentos, pois escrevo de Buenos Aires.

Do retorno do Japao (26/03) ate a partida para a mochilagem (22/05) foram quase dois meses. Tempo mais do que suficiente para me formar, fazer a cirurgia de correcao da vista (miopia e astigmatismo), tomar vacinas, conversar com mochileiros experientes, realizar algumas compras e me despedir dos amigos. Mas mesmo assim, nao foi tempo suficiente para fazer a mochila... Pela ansiedade e pelo que nao levar, passei a vespera arrumando as coisas, certo que dormiria bastante nos 600km que me separavam de Yuba.

Sem duvida, meu estilista de mochilagem e a vendedora do Pe na Trilha ficariam indignados com minhas roupas e acessorios. Com eles descobri que a Prada da mochilagem se chama Lowe Alpine e que o meu orcamento nao dava nem para Trilhas e Rumos. Assim, improvisei: o casaco corta-vento com tecnologia GoreTex foi substituido pelo casaco das Pernambucas que ganhei da minha mae no Natal retrasado; a calca caqui tradicional de mochileiros, pela calca cinza da Renner com que fiz o mochilao para Brasilia; a tao desejada mochila da Deuter de 22 litros, pela mochila de bater da Risca do meu irmao; e assim vai.

O melhor que tenho e uma bota da Timberland, que meu amigo Minoru usou poucas vezes, e, incrivelmente, as unicas pecas do vestuario de mochilagem que se adequariam na descricao da vendedora da Pe na Trilha: com tecido leve e sem costura, duas cuecas ganhadas de presente, e claro. Acho que so nao ganhei mais cinco delas porque disse, insistentemente, que nao levaria, de maneira alguma, uma cueca por dia da semana (enorme acerto, dado que trouxe tambem uma sunga que ainda nao se mostrou necessaria).

Assim, em linhas gerais, temos: no topo, como o melhor da mochilagem, as duas cuecas; uma sunga; tres pares de meia (na verdade sao dois, pois ja perdi um par em Yuba); uma camiseta dry-fit (a do corpo); uma ceroula; uma camiseta manga comprida "segunda pele"; o casaco Pernambucanas; um pseudo-flisi (blusa de frio); havaianas (nunca se sabe onde se vai tomar banho); uma toalha de mao; uma bota; alguns remedios; saco de dormir; poncho; cadeado; lanterna; canivete; linha e agulha de costura; saco de emergencia; camera; i-pod; necesser; ex-word e livros. Tudo deve somar um pouco menos de oito quilos.

Ja estou sentindo os efeitos da falta do GoreTex e de outras roupas de frio, mas isto me rendera mais dias de viagem, e sem dor nas costas.

Peco que tenham paciencia com os erros de escrita. Nunca fui de escrever muito ou de escrever bem, mas acredito que as coisas melhorarao com a pratica... Dizia Clarice Lispector: "Para escrever, o único estudo é mesmo escrever".