Tuesday, May 5, 2009

FAQ II

1 – Onde e como voce esta?
Hoje e dia 5 de maio, estou em Arbil, capital do Curdistao iraquiano. Fiquei uma semana aqui para que pudesse atualizar o blog. Espero estar no Iran amanha.
To com uma puta ressaca por conta da noite de ontem, quando compramos cervejas e Red Label (fazia quase UM ANO que nao tomava whisky)… Dado que nao poderei beber no Iran, meus amigos curdos-iranianos me disseram: "Nooshe jan!" (saude, em farsi), o que considerei uma sentence para que eu bebesse todas.

2 – Quando volta?
Este ano. Até setembro, Inshah Allah!

3 - O que tem sido mais difícil?
O difícil é ser moral… e usar os buracos no chão (leiam o blog para entender, imaginar nao e recomendavel).

4 – Tem comido direito? Onde tem dormido?
(Pergunta para tranquilizar mãe e amigas, como sempre). No Oriente Médio é impossível comer mal. Sempre sou convidado para refeições por desconhecidos e a comida é muito mais barata que na América do Sul. Um amigo meu, ao me ver pela webcam, até me disse que engordei.
Os hotéis não custam mais do que seis dólares, e o local mais incomum em que passei a noite foi numa caverna.

5 – E a mulherada?
Tem amigo que mal me pergunta, “E aí, tá tudo bem?”, e já vem com, “Pegou alguém?”. Esquecem-se de que estou no Oriente Médio... Nos paises muculmanos o casorio e' regra. As excecoes tem algumas saidas, dentre elas: apelar pra prostitutes, praticar sodomia com os "amigos", ou jejuar. Assim, estou jejuando às segundas e terças-feiras.

6 – Por que fechou o blog?
Por conta do visto iraniano. Depois que li no Lonely Planet que uma mulher teve seu visto negado por conta de informações encontradas na internet, resolvi bloquear o blog até definir minha situação com o Ministério de Relações Exteriores do Irã. Ele continuara assim ate que eu saia do pais, apenas por precaucao.

7 – Não sente falta de nada?
De muitas coisas… mas muita do vaso sanitário.

8 – Faz quanto tempo que esta (estou sem acentos de novo) na Estrada?
Parti com Satomi, Cassio e Allan no dia 22 de maio para Yuba… ha quase um ano.

9 – Como vai ser o esquema da volta?
Sei que preciso pegar o aviao pro Brasil na Europa, provavelmente na Alemanha. Mas nao se preocupem, deixei de lado o plano original (ir ate o Japao) ha um bom tempo e o meu ponto de inflexao da viagem ja e' um pais vizinho.

10 – Qual vai ser a primeira coisa que ira' fazer ao chegar no Brasil?
Ir a um espetaculo do meu querido Timao.

Irã: agora vai? - Arbil/Iraque

Ai, que preguiça. Três meses sem atualizar o blog… Meu recorde! Talvez pareça uma desculpa insuficiente, mas vou usá-la. Por mais de dois meses minha sina esteve relacionada ao Irã e preferi não postar até definir minha situação. Há também um outro agravante: o fato de não poder usar o blogspot na Síria, na qual passei quase dois meses por conta da dita cuja.

Se vocês estão lendo este post agora, isto significa que estou no Irã. O que acontece é que sou supersticioso (meu português em desuso não me permitiu encontrar palavra mais adequada). Não gosto de falar sobre assuntos pessoais se ainda eles não se materializaram, aconteceram. Pra mim isto é tão sagrado quanto não gritar gol antes de ver a rede balançar (por sinal, saudações corinthianas!).

Nesses últimos meses estive à procura do visto iraniano. Negaram-me em Damasco, capital síria, e ainda estou vivendo uma novela com uma mercenária agência de turismo iraniana, a qual, apesar de não ter me ajudado em nada com o visto, ameaça divulgar meu nome para o Ministério de Relações Exteriores para impedir minha entrada no país. Finalmente em Trabzon, norte da Turquia, um simpático cônsul me concedeu o visto em duas horas (em qualquer outra embaixada ou consulado, o processo dura no mínimo 10 dias).

Pretendo cruzar a fronteira no domingo (3/05). Curiosamente, enquanto Ahmadinejad está a caminho de nosso país tropical, eu estou indo para o “país dos arianos” (significado da palavra Irã). Espero que ele seja recebido com a “calorosa” recepção que merece: protestos com a tônica “Vá pro inferno!”

PS: estou digitando num teclado farsi, felizmente posso usar os acentos, mas o autocorretor do Word ainda persiste. Tenham paciência, por favour (viram?).

PSS: sei que imagens falam mais do que palavras. Sei também que ler este “funesto blog”, by Allan, exige uma baita paciência, mas não vou poder publicar fotos por conta da péssima conexão do Iraque e da queda de luz imprevisivel (ate agora ja caiu onze vezes).

PSSS: o uso de login para acesso ao blog é só por precaução. Quando sair do Irã, será irrestrito. Divulguem o login e contrassenha para quem quiserem.

PSSSS: na Syria, precisava mostrar passaporte para usar a internet e sites com extensão “co.il”, bem como You Tube, Face Book e Blogspot eram proibidos. Na Turquia, somente o You Tube. Já no Iraque… internet totalmente liberada.

Dez mandamentos da Capoeira - Monte Sinai/Egito

Antes de deixar o Egito fui conhecer o Monte Sinai, de onde Moisés recebeu a revelação do decálogo. Sem dúvida presenciei a mais bela alvorada de minha vida e tive inspiração suficiente para erigir os dez mandamentos desta empreitada.


1 – Como tudo que tá no prato e não me morde primeiro;
2 – Só peço carona e água de bica;
3 – Se é de graça, e não é passagem pro céu nem pro inferno, eu aceito;
4 – O difícil é ser moral;
5 – Cerveja, carne e chocolate, só se me pagam;
6 – Mulher minha não esfrega cueca, vira calcinha do avesso (by Maya);
7 – Resignação. Carona e mulher: elas que te escolhem;
8 – Pra aprender, tem que se expor (sempre de maneira não suicida, é claro!);
9 – Em caso de azia, má digestão ou ânsia de vômito, lembro-me de que fiz Federal (sacada com a ajuda da Maya, de novo);
10 – Pra doze horas seguidas sem carona e algumas bobagens humanas não há topete que aguente (ver post adiante).

Monday, May 4, 2009

Eu, Ben-Gurion e Fidel - Aman/Jordânia

A Jordânia não me inspirava muito ânimo, tanto que passei apenas uma semana no país. Depois de conhecer Petra fiquei mais três dias em Aman antes de ir a Damasco, Síria.

Petra


A maior parte do tempo na capital jordaniana fiquei em meu quarto, no hotel clandestino Venicia. Precisava terminar um livro que havia comprado em Israel e poderia comprometer minha entrada na Síria.

Tudo começou quando eu me perdi nos arredores de Tel Aviv. Dirigia-me à casa de um amigo que vive na Rua Ben-Gurion. Ao desembarcar do ônibus, estava na rua certa da cidade errada. Foi assim que descobri que toda cidade israelense tem uma rua Ben-Gurion.

Essa coisa de nomes de ruas sempre me fez sentir um ignorante. Por exemplo, em 23 anos de existência só sei que o Coronel Reis (nome da rua onde moro) foi um militar. Este pensamento me atormentou quando vi a foto de um velhinho com cabelos à Einstein abaixo do título Ben-Gurion estampada na capa de um livro numa loja de Jerusalém. Desconsiderei pudores orçamentários - na verdade pus na conta de meu pai - e pagamos 30 dólares pela biografia do cara.

Sem dúvida o livro de Michael Bar-Zohar foi a melhor leitura do ano. Cada hora que passei naquele muquifo foi devidamente recompensada. O que mais me impressionou na história do fundador de Israel foi sua determinação. Nelson Rodrigues dizia que o grande homem é a soma de suas ideias fixas. A ideia fixa de Ben-Gurion, nas palavras de seu secretário Yitzhak Navon, era a sobrevivência do povo de Israel.

Com apenas 14 anos BG criou uma sociedade para a divulgação da língua hebraica, Ezra Society. Aos 17 anos, diante do programa ugandista apresentado por Herzl (pai do movimento sionista), decide imigrar para a Palestina. Em suas próprias palavras, “A maneira mais efetiva para combater o ‘ugandismo’ era a formação de assentamentos na Terra de Israel”.

Em 1903, com 20 anos de idade, desembarca no porto de Jaffa e começa a trabalhar em fazendas de pioneiros. Sob péssimas condições de vida, passa fome, frio, e enfrenta moléstias.

Aos 25, decide estudar a lingua turca e as leis otomanas para que pudesse implantar o projeto sionista por vias legais. Matricula-se, assim, na faculdade de direito de Constantinopla.

Aos 32, durante a Primeira Guerra Mundial, após ser deportado da Palestina pelo Império Otomano por conta de seus trabalhos relacionados ao movimento sionista, BG compõe o Batalhão Judaico no exército britânico e desembarca em Tel Aviv após três anos de exílio.

Só escrevi um pouco da história de BG para mostrar sua ideia fixa, ou melhor, dar a dimensão de sua grandeza. Todavia, ainda falta um caso marcante de sua firmeza de caráter.

Após a declaração de independência do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, os exércitos do Líbano, Síria, Iraque, Transjordânia e Egito declararam guerra à nova nação.
Heroicamente os israelenses conseguiram conter os inimigos, mas a maior provação se deu em 20 de junho, quando o navio Altalena (pseudônimo de Vladimir Jabotinsky), carregado com 5000 rifles, 3000 bombas, 3 mi de pentes de balas, centenas de toneladas de explosives, 250 metralhadoras, além de morteiros e bazucas, atracou a um quilômetro de Tel Aviv pretendendo descarregar o material militar que seria usado para armar a facção sionista Irgun Zvai Leumi (IZL), a qual cometeu ataques terroristas contra britânicos e árabes.

Ainda que o equipamento bélico fosse usado para combater os inimigos árabes, Ben-Gurion considerou o fato como um desafio aberto às leis do novo estado e uma violação do acordo que havia sido feito entre o governo provisório de Israel e a IZL em que os membros desta se juntariam, lealmente, aos batalhões que constituiam o exército israelense.

Como Menahem Begin, líder da organização separatista, recusou-se a negociar com o governo, B-G não hesitou: “Oponho-me a qualquer negociação. O tempo para acordos passou! Se a força está disponível, ela deve ser usada imediatamente!”

Assim, a decisão óbvia, mas difícil, foi tomada: afundar o navio. Como consequência, 14 membros da IZL foram mortos e dezenas se feriram, e Israel mostrou com aquele gesto como iria lidar com o terrorismo.

Falei de Ben-Gurion, mas ainda nada de Fidel, outro companheiro com quem dividi meu tempo em Aman. Felizmente não se trata do Fidel cubano, mas de um Fidel libanês, que estava hospedado num quarto vizinho ao meu.

Quando eu não estava com um, eu estava com o outro. Em uma das inúmeras ocasiões em que Fidel me convidou para tomar chá, ele reparou no livro. Assim, foi inevitável falarmos de Gaza, Israel, Hamas…

O libanês não é nem um pouco religioso e sua visão não traz nenhuma carga de fundamentalismo islâmico. Se digitarmos no google “Gaza” iremos nos deparar com muitos textos que compartilham com sua opinião.

Para Fidel, em 60 anos de existência da nação israelense, o governo de Israel não foi capazes de promover a paz porque não se dispõem a ceder a Cisjordânia e a faixa de Gaza para a formação do Estado Palestino.

Grupos como o Hamas não são terroristas, mas organizações de resistência contra seus colonizadores, os quais se escondem em hospitais, escolas e mesquitas por serem civis oprimidos que precisam combater seus inimigos no meio de seu próprio povo. Não se trata de uma nação organizada, com exército próprio que pode enfrentar Israel num campo de batalha.
Enfim, seu discurso é o mesmo que corre entre os esquerdistas que tentam enxergar o “humanismo”, as razões psicológicas, os motivos elevados que movem uma organização a lançar bombas a esmo para matar inocentes.

Sinceramente, é realmente difícil conversar com árabes e, algumas vezes, refugiados palestinos, sobre a questão, porque é bem possível que estou falando com pessoas que tiveram familiares mortos no conflito.

Posso entender a dor destas pessoas, as quais perderam filhos, irmãos, pais; posso chorar com elas, compartilhar a dor, o sofrimento, mas não estou disposto a me esforçar para encontrar explicações para assassinatos de judeus inocentes. Não estou disposto a deixar meus valores de lado para concluir que atentados terroristas ou morteiros em Sderot são manifestações legítimas de um povo que, depois de tantas guerras, perdas e mortes, não tem outros meios para impôr sua vontade de ser livre como nação.

Arafat teve a chance, com o Acordo de Oslo, de formar o tão desejado Estado Palestino, mas não foi capaz de renunciar ao terrorismo. Em 2000, na Conferência de Camp David, Barak ofereceu 90% da Cisjordânia, compensações por terras perdidas e até mesmo porções de Jerusalém. Novamente, Arafat não teve interesse de abraçar a proposta.

O caso Altalena demonstra como a sociedade israelense se estabeleceu diante dos elementos que B-G sempre julgou determinantes para o destino do país que criou: força e grandeza moral. Força para se defender dos inimigos que ainda desejam aniquilá-la. Grandeza moral para controlar o uso desta força e manter unida uma nação democrática e livre.

Tem gente que diz que os palestinos precisam de um Ben-Gurion. A verdade é reconfortante porque não depende de líderes carismáticos, messias... Mais do que da força bélica que advém do Irã para matar judeus, uma nação palestina só poderá nascer da mesma rigidez de principios que erigiu Israel. Ela começa na maneira que tratam os inocentes do lado inimigo e termina na condenação dos atos imorais de seus próprios pares.

Ser livre é ser a própria imposta norma

“Débil no vício, débil na virtude
A humanidade débil, nem na fúria
Conhece mais que a norma.

Pares e diferentes nos regemos
Por uma norma própria, e inda que dura,
Será à liberdade.

Ser livre é ser a própria imposta norma
Igual a todos, salvo no amplo e duro
Mando e uso de si mesmo.”

Ricardo Reis – 9/07/1.930

Beirute: a capital mais cosmopolita do mundo árabe – Síria e Líbano

Cruzar a fronteira síria me preocupava. Apesar de não ter o visto israelense em meu passaporte, temia que os oficiais desejassem revistar minhas coisas e dessem de cara com meu diário, cheio de menções a Tel Aviv, Jerusalém e Cisjordânia.

Além disso, tanto a embaixada síria em Cairo quanto a em Aman me disseram a mesma coisa: “Não emitimos visto para estrangeiros não residentes.” E completavam, “Inshah Allah, você o consegue na fronteira.” Essa coisa de ouvir “Se Deus quiser!” pra isso e pra aquilo sempre me incomodou. Quando se busca um profissional, um oficial ou funcionário de alguma organização, espera-se mais do que a vontade divina.

Tive a mesma frustrante sensação de uma das personagens do livro “A Cidade do Sol”, de Khaled Hosseini. Ao levar a esposa ao hospital, o doutor responde à pergunta do desesperado marido, “Inshah Allah, ela vai ficar melhor!”. O cara pensa, “Qualé, doutô! Eu tô te pagando pra ouvir algo além de `Inshah Allah`.”

De qualquer maneira não me restava outra opção. Assim, chequei meus pertences umas quatro vezes e me desfiz de todas as coisas relacionadas a Israel – moeda de um sheikel, pacotinho de café instantâneo, bilhetes de ônibus e, o mais difícil, uma página do meu diário em que um francês havia desenhado a bandeira israelense.

Por conta da incerteza, achei mais seguro pegar um táxi, de Aman a Damasco, do que um ônibus. Ao menos poderia pagar o motorista no final da corrida e ele, com certeza, esperaria-me até o término do processo. Se eu rodasse, poderia pagar o valor equivalente só até a fronteira ao invés de até Damasco.

No final, foi tudo muito tranquilo. O oficial sírio apenas se certificou de que não havia nenhuma evidência de passagem por Israel em meu passaporte e me concedeu o visto. Nenhum dos meus pertences foi revistado e o processo todo durou menos de 15 minutos.

Vou escrever meus comentários e impressões sobre a Síria no próximo post, porque nesta ocasião passei apenas dois dias em Damasco antes de me deslocar para o Líbano.

Depois da tentativa bem sucedida na fronteira sírio-jordaniana, senti-me mais seguro para cruzar a sírio-libanesa e decidi pela opção de transporte mais barata, isto é, o ônibus. O oficial libanês estava mais cismado do que o sírio, e ainda me perguntou, um tanto ingenuamente, “E depois? Vai pra Jerusalém?”. Pensei, “Não, eu já fui!”, e respondi, “Não, Irã.”

Antes de chegarmos a Beirute atravessamos a cadeia de montanhas libanesas. Chovia muito e havia nevado – os cedros, símbolos nacionais, ainda estavam cobertas de branco.

Desembarquei na capital por volta das 16h. A chuva persistia e coloquei meu poncho. Após duas horas e meia caminhando encontrei um hotelzinho por cinco dólares – apesar das opções de hostels do Arukikata (guia de viagem japonês) serem mais baratas do que as do Lonely Planet, mesmo aquelas consumiriam todo meu orçamento diário.

O hotel era uma zona. Pelo menos quinze homens, a maioria acima dos cinquenta anos, dividiam um apartamento de 100 metros quadrados. Além das camas em quatro pequenos quartos, havia um par delas espalhadas no corredor.

Fiquei num quartinho com mais dois senhores, um deles devia ter uns setenta e poucos anos e vendia santinhos à porta de igrejas. Ao lado de minha cama havia uma janela com vidro quebrado em que colocaram um cobertor para impedir que o vento gelado entrasse no quarto. Os lençois estavam encardidos e percebi que seria o caso de usar o saco de dormir.

Na pia da cozinha não havia bucha nem sabão para lavar louça. Um homem lavava um prato somente esfregando a mão direita sobre sua superfície. Já o banheiro… foi o meu único consolo. Apesar de não haver chuveiro, tinha vaso sanitário.

Para mim, que cresci com o Mundo da Xuxa e a didática do meu troninho, ver aquela invenção do mundo ocidental foi um alento. Sinceramente, nunca tive a objetividade e o equilíbrio necessários para utilizar aqueles buracos no chão.

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Se por um lado os inúmeros cafés ao estilo europeu, lojas de grife, restaurants, bares e discos do centro de Beirute parecem revelar a mais secular e cosmopolita capital do mundo árabe, por outro, a instabilidade política de um país que viveu por 15 anos em guerra civil ainda persiste e caminhar sozinho pelas periferias da capital pode ser perigoso (conheci um fotógrafo polonês que foi sequestrado por 48 horas pelo Hizbullah).

As marcas da guerra são visíveis em inúmeros prédios abandonados caindo aos pedaços. Há soldados por todas as partes e inúmeras vezes trombei com tanques de guerra no meio das ruas da capital libanesa.

No dia 16 de fevereiro, na noite em que cheguei, o principal líder do Partido de Deus (Hizbullah), Sayyed Hassan Nasrallah, fazia um discurso por meio de vídeo conferência a uma multidão de partidários reunidos no subúrbio de Beirute.

No âmbito da política interna, Nasrallah tentou acalmar os ânimos de seus seguidores para evitar conflitos com membros de outros partidos, fazendo alusão à morte de um jovem militante do Partido Progressista Socialista no sábado anterior. Em relação à política externa, defendeu o direito de as “forces da resistência” terem “armas de proteção antimíssel” contra Israel, o qual “não faz questão de promover a paz.”

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No Líbano, também visitei Tripoli e Khiam. A primeira é uma cidade ao norte do país, famosa por seus ‘souqs’ – bazares - compostos por perfumarias, joalherias, sapaterias, fábricas de sabão, casas de condimentos…

A segunda, fica ao sul do país. Faz parte do território desocupado por Israel em 2000. Precisei solicitar uma autorização na base military de Saida, a qual nada mais era do que um pedaço de papel rascunho escrito a mão.

Fui até Nabatiyeh, a 30 km de Khiam, e de lá peguei um táxi com soldados que estavam indo até a fronteira com Israel. O táxi nos deixou a oito quilômetros da cidade. Para nosso azar começou a cair um toró, mas para sorte dos soldados, um caminhão do exército logo em seguida passou por nós. Continuei a caminhada sozinho, esperando que alguma boa alma se compadecesse de minha molhada situação.

Enquanto caminhava à procura da antiga prisão de Khiam - hoje um museu – mantida pelas forces do South Lebanese Army de 1985 a 2000 com a conivência do Exército de Israel, contei uns sete veículos, entre caminhões, carros e tanques, das Nações Unidas.

Subindo as íngremes ruazinhas da cidade passei por grandes sobrados destruídos e abandonados por conta da guerra contra Israel em 2006. Algumas bandeiras rasgadas do Hizbullah e da Amal (partido político xiita) ainda flamulavam penduradas em postes elétricos.

O primeiro estabelecimento comercial que encontrei aberto foi uma casa de materiais de construção. Por sorte havia uma mocinha que falava inglês e pôde me indicar o caminho. Já eram quase 16h, esfriava cada vez mais e uma fina garoa se revezava com fortes pancadas de chuva.

Depois da carona de um gentil senhor, cheguei à prisão. O zelador levantou de sua cama e me mostrou uma salinha com alguns resquícios da guerra de 2006: pedaços de mísseis lançados por Israel, cabos elétricos utilizados para a tortura dos prisioneiros e fotos da IDF. Em outra sala menor, souvenirs do Hizbullah, tais como broches, bandanas e bandeiras, estavam à venda para turistas.

Como ainda chovia, fazia no máximo uns dez graus Celsius e meu corpo estava ensopado, achei melhor pagar um táxi até Nabatiyeh do que tentar carona. Paguei dez dólares a um senhor que me pareceu muito simpático.

Ele falava inglês e o considerei como um guia em Khiam, dado que até aquele momento não havia conseguido nenhuma informação sobre a cidade por meio de seus moradores.

Foi por esta razão que achei que poderia aguardar alguns minutos quando ele me disse que esperaria por algum outro potencial cliente para ajudar nos custos da corrida ao parar no acostamento da saída da cidade.

Quase uma hora depois, quando já não havia mais assunto a ser discutido a não ser seu rancor por palestinos e israelenses, indispus-me a esperar mais. No final das contas, o cara me arrumou uma carona até Nabatiyeh, destino ao qual, supostamente, ele havia sido pago para me levar.

Por sorte, Abbas, o rapaz que foi parado pelo taxista, estava indo a Beirute e me deu carona até o meu hotelzinho.

Chengado lá, só queria saber de tomar um banho quente. Depois de três noites naquele lugar, finalmente descobria como o banho de água quente funcionava: na base da hora marcada. Esperei uma hora e meia e me banhei com canequinha.

Pagãos inocentes da decadência

“Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado.
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados no pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.”

Ricardo Reis – 12/06/1.934

O início da sina iraniana – Síria


Assim que voltei do Líbano fui direto à embaixada iraniana em Damasco. Um coreano havia me dito que era possível conseguir o visto em apenas um dia, mas este não foi o fator determinante para minha decisão, dado que já sabia que japoneses, coreanos e chineses têm inúmeras facilidades para viajar no Oriente Médio, e sempre fui cauteloso com recomendações de olhos puxados em relação a vistos.

A principal razão que me fez aplicar em Damasco foi o custo de vida na Síria, extremamente barato, o qual me permitiria passar um dia com quatro dólares comendo e dormindo bem.

O funcionário do consulado me disse que em no máximo 14 dias eu obteria a resposta para a minha solicitação. Este período era o mesmo que tinha até meu visto sírio expirar. Resolvi arriscar, com o atenuante de que se precisasse prolongar minha estada na Síria poderia fazê-lo pagando apenas dois dólares.

No caminho de volta ao meu hotel, três dólares a cama (sem ducha), conheci Taylor, um canadense que estava viajando há dez meses. Ele me inspirou em dois sentidos: voltar a pegar caronas e verificar a possibilidade de ir ao Iraque (tratarei deste ponto no próximo post).

Taylor só tem viajado de carona, e suas estórias me estimularam a me entregar à Estrada novamente. Concluí que, ao pagar dois ou três dólares para percorrer 100, 200 km – totalmente cabível em meu orçamento - eu poderia estar deixando de lado boas experiências.

Na manhã em que acordei para dar início ao meu circuito de caronas pela Síria, chovia e fazia frio. Precisei de um pouco daquela força de vontade que me fazia levantar às segundas-feiras às 5h30 – quando já havia estourado em faltas – para assistir uma aula de Sistemas de Administração.

Ao chegar à beira da Estrada, mal caminhei por uns cinquenta metros e um caminhãozinho parou. Levou-me por apenas cinco quilômetros, mas já value para dar uma animada.

As outras duas seguintes caronas foram fáceis, mas tensas. Em ambas tive de gastar todo meu vocabulário árabe relacionado ao sexo feminino em um minuto (disparei como uma metralhadora frases do tipo, “amo garotas!”, “garotas sírias são lindas”, “Inshah Allah, caso-me com uma síria”) e mostrar fotos de amigas dizendo que eram minhas namoradas.

Tudo isto não foi suficiente para conter o ímpeto dos motoristas, que não falavam inglês, mas faziam gestos com as mãos bem elucidativos. Em relação à frequente abordagem de gays que tenho sofrido no Oriente Médio, já pensei em tirar o brinco, mas de nada adiantaria se eu não cortasse o cabelo – só vou cortá-lo no Brasil.

Além disso, pelas estórias que ouvi de outros estrangeiros, a questão parece menos relacionada a mim (um britânico foi abordado num bazar na Síria com a seguinte pergunta: “Você é hetero ou às vezes dá uma de Oscar Wilde?”) do que à tara étnica dos caras (árabes, turcos e curdos).

Ao menos, depois dessas desagradáveis experiências, consegui dividir duas caronas com um soldado que estava indo à fronteira com o Iraque. Também rodei 30 km em uma moto que transportava pães antes de ser coroado com a carona que alguns soldados sírios me arrumaram em um ônibus super confortável direto à Palmyra, meu destino.

Mr. Hamdam – Day-Az-Zorn/Síria

De Palmyra fui à Day-Az-Zorn. Logo na saída da cidade um comboio de caminhões passou por mim. O primeiro buzinou e seu motorista estendeu o braço direito para o alto como quem diz, “aonde vai?”. O segundo motorista já freava o caminhão e me chamava.

Como era quase meio-dia, paramos em um posto abandonado para almoçar e pude contar sete caminhões. Mahmoud, o motorista que me concedeu carona, e seus colegas vinham de Homs com placas metálicas que iriam ser descarregadas em Bagdá.

Almoçamos à sombra dos caminhões, sentados sobre um tapete de plástico. Cada caminhoneiro colaborou com um prato – humus, tursh (conservas de cenoura, pepino e cebola), ovo frito, pimenta, batata com carne moída, queijo…

Custei a entender o porquê de eles estarem indo a Hassake para cruzar a fronteira mais ao norte do país, enquanto podiam ir a Abu Kamel ou a Tarrif, muito mais próximas.

Quando cheguei em Day-Az-Zorn conheci dois universitários que desejam, após cumprirem o serviço militar obritário, contrabandear produtos do Líbano via o Mar Mediterrâneo. Eles me deram uma boa explicação para a rota do comboio. Muito provavelmente os caminhões faziam o caminho mais longo para o Iraque para não pagarem impostos.

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Três dólares é o valor que considero justo pagar por uma cama na Síria. Muitas vezes o preço não inclui vaso sanitário nem ducha, mas até aí, não me importo.

Em Day-Az-Zorn o hotel mais barato me pediu cinco mangos e a cidade não tinha rodoviária na qual pudesse passar a noite. Passei a caminhar à procura de um lugar em que eu conseguisse estirar minha rede e, duas horas e meia depois, conheci um engenheiro elétrico que trabalha para o governo e o partido Baath do presidente Bashar Hafez Al Assad, a nove anos no poder.

Mr. Hamadan me convidou para pousar em sua casa, um apartamento de 120 m2 bastante acolhedor no qual vivem ele, sua esposa e seus seis filhos (cinco meninas e um menino).

Enquanto jantávamos, ele me disse que seu sogro tivera três esposas ao mesmo tempo e 16 filhos no total. Como Huria, sua mulher, estava ao nosso lado e não falava inglês, aproveite a deixa para lhe perguntar se ele não queria se casar mais vezes. Em sua resposta, como em outros momentos, destacou que dinheiro não era o problema, “sou um homem rico e tenho outra casa, mas não quero arrumar problemas para mim e para minha mulher. Huria é uma boa esposa, não preciso de mais uma, duas ou três.”

Em seguida, pedi para que ele perguntasse à Huria se as esposas de seu pai tinham uma boa relação entre si. Ela me respondeu balançando a cabeça e contorcendo o nariz.

Ali: o cavalo – Raqqa/Síria

No dia seguinte parti em direção a Aleppo. Caminhei por uma hora até a saída da cidade e um grupo de meninos ficaram conversando comigo enquanto eu tentava carona. 15 minutos depois, montei na bicicleta de um deles e fui pedalando com o dono na garupa.

Alguns metros depois, uma caminhonete parou. Dentro dela estavam três rapazes que iam ao Eufrates nadar (detalhe que descobri somente quando eles desviaram da rodovia principal para chegar às margens do rio por uma estradazinha de terra).

De volta ao caminho para Aleppo, segui andando pelo acostamento e verifiquei que muitas famílias faziam piqueniques nas redondezas por conta de ser sexta-feira (final de semana em países árabes).

Uma família que estava mais próxima à estrada me convidou para um chá. Do chá fiquei para o almoço e parti às 14h. Um pouco mais à frente uma outra família fez o mesmo convite, o qual tive de recusar porque naquele ritmo acabaria ficando para a janta.

Depois de pegar carona com um carro e uma moto, conheci Ali, o qual viajava com seus dois sobrinhos e um amigo. Eles haviam feito uma entrega em Day-Az-Zorn e voltavam para Raqqa. Apesar de a cabine estar cheia, não se importaram em se espremerem para que pudéssemos rodar 200 km juntos.

Chegamos à cidade por volta das 18h. Como estava tarde para seguir viagem até Aleppo, aceitei o convite de Ali para passar aquela noite em sua casa. Foi assim que conheci Mohammed, um vizinho que falava inglês, com quem travei acaloradas discussões.

Como já disse, quando um árabe me pergunta sobre Gaza e Israel, tento tergiversar, responder com perguntas, falar da opinião dos outros. Mas se insistem, eu falo, e aí começa uma longa discussão cujas bases eu já divulguei aqui e não pretendo repetir.

Apenas um comentário novo que vem como desabafo. Se estou numa mesquita ou num centro islâmico, considero totalmente aceitável que muçulmanos tentem me convencer da superioridade de sua religião. Agora, quando estou na rua ou mesmo na casa de alguém, falta-me paciência para explicar por que não sou um seguidor do profeta Maomé.
Assim, não foi sem a intenção de dar uma espetada que perguntei ao vizinho de Ali o motivo de homens, e somente eles, poderem se casar ao mesmo tempo até quatro vezes segundo o Corão. Mohammed me deu a mesma resposta de sempre: talvez a primeira esposa não possa ter filhos; talvez ela não seja uma boa esposa (?).

O alfitrião Ali, ao saber do assunto, respondeu com uma sinceridade que nunca havia visto: “quero me casar pelo menos mais uma vez [estava no seu primeiro casamento] porque amo sexo. Eu sou um cavalo!”. A resposta foi reta e boa para tirar a tensão do ar.

Matei a charada – Lattakia/Síria

Depois de passar dois dias em Aleppo, peguei a Estrada em direção à Latakkia, às margens do Mar Mediterrâneo.

Um caminhão e um triciclo depois, peguei carona com uma 4x4. Ad’nam Honsi estava indo ao porto da cidade para tartar de negócios – ele é dono de uma transportadora que faz entregas para o Iraque.

Graças ao jovem empresário, pude chegar a uma resposta definitiva para a dúvida em relação ao comboio de caminhões de Day-Az-Zorn. Ele me explicou que a única fronteira aberta para a passagem de caminhões é a de Tarrif, ao sul do país. Assim, sem dúvida Mahmoud e seus amigos estavam fazendo contrabando.

Monastério Mar Mussa – Nabeck/Síria




Mar Mussa visto pelos "fundos"



Voltei para Damasco doze dias depois de solicitar meu visto iraniano. Fui ao consulado e me disseram que ainda não haviam recebido resposta do Ministério de Relações Exteriores (MFA). Um nítido sinal de que eu rodaria.

De lá fui ao Departamento de Imigração sírio para estender meu visto por mais quinze dias e, em seguida, fui usar a internet. Havia recebido um e-mail de Taylor falando sobre um monastério construído no século VI a 80km de Damasco. Também em Palmyra havia conhecido Ibrahim, um francês que falava português fluentemente, o qual estava indo ao mesmo local.

Decidi que seria o melhor lugar para relaxar enquanto esperava uma confirmação do MFA e me dirigi para lá.

Peguei uma van até Nabeck, 80 km ao norte de Damasco, e de lá peguei uma carona para rodar os 18 km restantes até o monastério. Assim que cheguei ao pé da montanha em que ficava Mar Mussa, a 1320 metros de altitude, vi uma porção de famílias árabes fazendo piqueniques (era sexta-feira) e já pude perceber que boa parte do tempo o monastério era mais uma atração turística – para gringos e locais muçulmanos – do que um retiro espiritual.

Cotidiano em Mar Mussa

De segunda a sábado o dia começa às 7h30 da manhã com uma missa na igreja datada de 1058. Sentamo-nos no chão e retiramos os sapatos antes entrar, seguindo os costumes orientais.

Todo o serviço religioso é feito em árabe, mas quando há um grande número de estrangeiros, uma irmã traduz o sermão para o inglês.

O café-da-manhã é servido logo em seguida e todos colaboram para pô-lo à mesa. O cardápio é totalmente árabe: pão sírio, marmelada, zahtar (uma mistura de temperos), óleo de oliva, azeitonas, queijo e iorgute.

Após o café nos separamos voluntariamente nas tarefas do dia: fazer o almoço, lavar à louça, limpar os banheiros, passar aspirador nos tapetes da igreja, capinar a pequena horta, lavar lençois e toalhas…

O almoço é servido por volta das 14h30. Ora-se antes da refeição, normalmente com uma prece cristã, mas certa vez recitamos o Al Fatihah – abertura do Corão. Sempre há uma saladinha e sopa ou arroz. Comida simples, mas muito boa.

À tarde, se não houver turistas para receber (o que é raro), o tempo é livre. Alguns vão descansar nos alojamentos, outros lêem na biblioteca ou ainda saem para fazer caminhadas pelo deserto ou pelas montanhas.

Às 19h há uma meditação seguida de uma missa. Às 21h é servido o jantar e às 22h homens e mulheres devem ir para seus respectivos alojamentos.

Farnoosh Hashemian

No sábado, meu segundo dia no monastério, acreditei que teria um pouco mais da paz de espírito que procurava para não aumentar a angústia em relação ao visto iraniano.

Pela manhã, pude ajudar a capinar a pequena horta de plantas medicinais ao pé da montanha do monastério, atividade que me deu enorme prazer e tranquilidade. Acreditei que o dia continuaria naquele ritmo sereno, mas estava enganado.

Por volta da hora do almoço, um numeroso grupo de garotas, a maioria francesas que estavam estudando árabe em Damasco, chegou. Um americano até me disse que Mar Mussa estava mais para Paraíso do que para monastério.

Estava eu lavando louças (quem leu este blog sabe que, em matéria de tarefa doméstica, eu me realizo na pia) quando uma jovem veio me entregar o prato. Naturalmente, perguntei-lhe de onde ela era e recebi a mais inesperada resposta, “Originalmente sou do Irã, mas vivo nos Estados Unidos.”

Só com aquela resposta já imaginei toda a vida da garota. Provavelmente ela deveria ter imigrado por conta da Revolução Islâmica de 79… Acertei, mas havia muito mais enredo para a história.

Farnoosh nasceu em Los Angeles em 1978 e sua família retornou ao Irã por conta da revolução. Aos 16 anos ela disse a seus pais que queria estudar nos EUA, mas eles não lhe permitiram imigrar sozinha tão nova.

Aos 18, ela se submete ao exame nacional, CONCUR, para a admissão nas universidades públicas do Irã. Assim, Farnoosh inicia seus estudos em engenharia e seu envolvimento com organizações estudantis clandestinas que lutavam em prol da expansão dos direitos humanos no país (liberdade de expressão, ampliacao dos direitos da mulher, abertura política).

Foi então, quando havia acabado de iniciar sua vida universitária, que o pedido de seu pai feito ao consulado canadense foi aprovado, isto é, sua família imigraria para Vancouver.

Diante disto, Farnoosh opta por não ir com sua família e fica no país por cinco anos, estudando engenharia, mas, principalmente, engajando-se nos movimentos estudantis.

Aos 23 anos ela resolve imigrar para os EUA e lá se pós-gradua em Saúde Pública em Yale. Desde em tão trabalha com direitos humanos e tem publicações sobre a tortura de presos em Guantánamo e Abu Ghraib, o efeito do uso de armas químicas por Saddam Hussein na guerra entre Irã e Iraque, a questão homossexual no Irã…

Naquele noite, lembrei-me de que a decisão mais difícil que fiz quando tinha 18 anos era se deveria fazer administração de empresas ou administração pública. E de que luta por direitos humanos dentro do movimento estudantil para mim significavam passeatas promovidas pelo PSTU contra a injustiça social gerada por entes abstratos – “o sistema”, “o imperialismo americano”, o Tio Patinhas.

Ao entrar no Face Book, encontrei a seguinte descrição de quando ela chegou aos Estados Unidos: “Uma vez eu tive 23 anos. Eu nao conhecia computadores, nem internet, nem os Estados Unidos. Eu sabia apenas um pouco de ingles. Nao imaginava que eu poderia romper com a vida que conhecia ate entao. Mas eu, espantosamente, consegui. E minha vida repentinamente mudou, mudou e mudou. Eu estava livre! De repente, eu tinha o controle sobre minha vida... De repente, eu tinha pequenas asas e podia voar.”


“Você está na lista negra!” – Damasco/Síria

Voltei para Damasco e, além de receber um seco, “NEGADO!”, o funcionário do consulado iraniano completou, “Você está na lista negra”. De fato, o governo iraniano e seus funcionários são profissionais em matéria de terrorismo.

Fiquei à frente do guichê por quatro horas tentando uma oportunidade para falar com o cônsul que não me foi concedida. Sentei à frente do prédio e listei as opções que me restavam:

1 – Ir a Trabzon/Turquia (havia ouvido falar que era possível pegar o visto no mesmo dia);
2 – Usar uma agência de viagens (aumenta as chances, mas teria de pagar quase o dobro do preço do visto);
3 – Pegar o avião para Tehrã (é possível conseguir um visto de quinze dias no aeroporto).

Então era isso… iria à Turquia, mas antes celebraria o Nowruz com Farnoosh e seus amigos e iria para o Curdistão iraquiano (próximo post).

No dia 20 de março, Farnoosh convidou-me para um almoço em sua casa com seus amigos. No dia seguinte seria o início da primavera, que marca o começo do calendário persa e curdo (Nowruz).

Ela havia decorado uma mesa com sete elementos (“haft sin”, em farsi) que começam com a letra s… Entre flores, frutas, ovos, alho, condimentos, uma vaquinha de pelúcia e moedas havia um objeto curioso. A tradição é colocar um livro sagrado no centro da mesa. Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos ocupava o lugar que seria do Corão.

Mesa "Hafta sin" de Newruz

“I like George Bush!” - Região Autônoma do Curdistão/Iraque



Curdos vestidos com roupas tradicionais

Pseudo-peshmergan ("pseudo" porque ta sem a Kalash)

Sim, é possível! E no Oriente Médio. A frase mais politicamente incorreta dos últimos anos pode ser ouvida da boca de inúmeras pessoas no norte do Iraque, mais precisamente, na região autônoma do Curdistão iraquiano. Mas antes de falar sobre isso, preciso explicar como vim parar aqui (escrevo este post daqui).

Tudo começou quando conheci Taylor, o canadense das caronas. Ele estava com a ideia de ir ao Iraque e isto me estimulou a verificar a possibilidade de eu também vir para cá.

Entrei no fórum do Lonely Planet e descobri que, apesar de ser impossível conseguir visto de turismo nos consulados e embaixadas iraquianos, era fácil sacar um visto de dez dias na fronteira da região autônoma do Curdistão iraquiano, ao norte do país.

Quando li a informação “visto na fronteira de graça”, já me animei, mas ainda faltava verificar se não se tratava de uma passagem para o inferno (“Terceiro mandamento: Se é de graça, e não é passagem para o céu nem para o inferno, eu aceito”).

Assim, passei dezenas de horas na internet pesquisando sobre atentados terroristas, sequestros de estrangeiros e relatos de viagens envolvendo a região.

Com este visto poderia recorrer por três províncias: Dohuk, Arbil e Suleimania (não teria autorização para visitar áreas como Bagdá, Kerbala e Diyala, mas tão pouco tinha vontade). Uma região que me pareceu bastante segura, mas ainda assim se tratava do Iraque.

Os relatos de mochileiros do LP me tranquilizaram e me informaram das áreas que deveria evitar (Mosul e Kirkuk, cidades em que células da Al Qaeda continuam a fazer dezenas de vítimas em atentados à bomba),todavia, continuei cauto.

Conversar com outros mochileiros nem sempre é uma maneira prudente para a tomada de decisão. A maior parte nunca fez comentários que me recomendassem cautela e sempre eram calcados no raciocíno “você pode morrer na frente da sua casa, em qualquer lugar”.

Para alguém que vem de um país em que mais de 50.000 pessoas morrem todos os anos em homicídios, este argumento parece soar convincente. Mas, felizmente, nunca caí neste obscurantismo graças à preocupação iluminadora de minha família – “Fernando, antes de fazer qualquer coisa, lembre-se de que você tem pai, mãe e irmão”.

É claro que não podemos evitar a morte, mas podemos fazer escolhas que aumentem nossas chances de caminhar sobre este mundo de imperfeições. E, neste caso, refiro-me menos às escolhas do tipo: não consumir produtos com gorduras trans, ou não fumar e comer tempero de miojo porque causam câncer; do que das do tipo: não dirigir bêbado a 140 km/h, não brincar de roleta-russa ou não viajar de carona no Afeganistão.

Foi por isto que os dois únicos viajantes que concordaram com minhas opiniões e se mostraram preocupados com minha ideia de vir para cá se tornaram os melhores amigos que fiz na viagem, Bob e Dave.

Bob é um americano que conheci em Mar Mussa. Ele está viajando com sua namorada, japonesa, há nove meses e sem dúvida fez um discurso bastante eloquente para que eu pensasse muito bem antes de tomar qualquer decisão.

Ele me contou o famoso caso do “Koda Hotel” em Aman, Jordânia, que muitos de vocês devem conhecer, mas sem os detalhes. Em 2005 (se nao me engano), um japonês de vinte e poucos anos estava hospedado naquele hotel e disse a um de seus funcionários que queria ir a Bagdá.

O funcionário, ao invés de lhe fazer recomendações para que ele desistisse da ideia, arranjou um táxi que o levaria até a capital iraquiana. Algumas semanas depois o rapaz foi sequestrado pela Al Qaeda e o desenlace da história foi divulgado pelo You Tube.

Hoje, ironicamente, tanto o hotel quanto o funcionário são celebridades para os japoneses. Muitos mochileiros se hospedavam lá para “consolar” o jordaniano com mensagens do tipo, “você não teve culpa”. E uma japonesa se sensibilizou tanto que acabou se casando com o cara.

Na opinião de Bob o jordaniano teve uma enorme resposabilidade sobre o ocorrido. E, basicamente, meu amigo norte-americano contou tudo isto para me dizer: “Não serei conivente com sua decisão”.

Já Dave é um britânico que conheci em Damasco. Passei apenas três horas com ele, mas, somente pelo fato de ele ter me dito, “Tome muito cuidado lá”, criamos uma fraterna cumplicidade.

Finalmente, decidi por ir quando passei a trocar e-mails com um curdo iraquiano de Arbil, capital do Curdistão, e quando meu colega de quarto do hotel El Riyad, em Damasco, Abu Rashedi, convidou-me para viajar com ele e ficar em sua casa.

Abu Rashedi me disse que sua família vivia em Suleimania, cidade a 250 km de Arbil, e ele iria visitá-la por conta do feriado de Nowruz. Havia criado uma amizade com o cara, apesar de às vezes ter minha privacidade invadida pelo que chamaria, de “altruísmo egoistico” (apenas como exemplo, ao menos cinco vezes o cara me acordou de madrugada, após voltar do trabalho, aos berros, convidando-me para comer).

Além disso, sempre me senti desconfortável com os presentes que ele me dava (camiseta, calça, comida…) e achava estranho vê-lo, dia sim, dia não, com alguma coisa eletrônica diferente (laptop, games de crianças, dicionário eletrônico...).

Infelizmente não poderíamos viajar juntos porque ele me disse que cruzaria a fronteira El Rabiyah-Síria/Rabiah-Iraque (a mesma que o comboio de caminhões de Day-Az-Zorn ia pegar), sob o controle do governo central iraquiano. Eu tinha de ir à Turquia e cruzar a fronteira Silopi-Turquia/Zakho-Iraque. De qualquer forma, ao menos tinha hospedagem garantida em Suleimania.

Conversei com Bob e tracei as seguintes diretrizes de segurança:

1 – Não me expor tentando pegar caronas na Estrada;
2 – Romper restrições orçamentárias e estar disposto a pegar táxis se necessário;
3 – Viajar direto para a casa de meus conhecidos se as condições de segurança não estivessem favoráveis;
4 – No pior dos cenários, contactar imediatamente a CIA.

Combinei com Abu Rashedi que assim que chegasse em Suleimania lhe ligaria. Parti na manhã do dia 21, início da primavera e do ano novo curdo e persa (Nowruz). Ele me disse que partiria na noite do mesmo dia.

Teria de cruzar duas fronteiras para chegar no Iraque: primeiro, Qmishile-Síria/Nusaybin-Turquia; depois, Silopi-Turquia/Zakho-Iraque. Ao menos nas duas os vistos seriam gratuitos.

Como queria chegar a tempo de ver alguma comemoração de Nowruz em Qmishile, cidade curda na Síria, peguei um ônibus ao invés de caronas.

Nove horas depois, às 19h, cheguei à cidade. Infelizmente tarde demais. Ao menos conheci dois jovens curdos num café que me disseram que, diferente dos anos passados (em 2004, segundo eles, 40 pessoas morreram e cerca de 300 foram presas. Em 2008, três morreram e ao menos 50 foram presas), as celebrações de Nowruz deste ano não tinham tido nenhum incidente com a polícia.

Gemaa e Hidayet também me contaram as dificuldades de ser um curdo na Síria. Eles não podem conversar em curdo em locais públicos; não podem estudar a cultura, a história e a língua curda nas escolas; não têm partido político, jornal ou canal de televisão.

No dia seguinte atravessei a fronteira às 8h30 da manhã. Foi estranho sair da Síria após quatro meses em países árabes e entrar na Turquia, com seus letreiros com letras latinas e palavras curdas e turcas totalmente desconhecidas (a única que podia entender era Fenerbahçe).

Caminhei até a estrada que me levaria à Silopi, a 130 km de Nusaybin, e sentei à frente de um posto para descansar. Menos de vinte minutos depois, um jovem de 13 anos que trabalhava de frentista no posto veio conversar comigo. Ofereceu-me chá e água, além de me ajudar a pegar carona.

Dorgan, motorista do Volvo F440, é caminhoneiro há 30 anos e já viajou para Frankfurt, Tel Aviv, Warsaw, Belgrado, Budapeste, Moscou, Astana...

No Brasil, quando eu pegava carona, muitas vezes ouvia dos motoristas que eu havia escolhido a profissão errada. O mais correto, dado minha paixão pela Estrada, seria ser caminhoneiro ou agente de turismo, diziam eles. Depois que vi o passaporte de Dorgan, o qual daria inveja a muito mochileiro, percebi que, se fosse para ser caminhoneiro, eu o seria na Turquia.

Na fronteira, mostrei meu passaporte ao oficial turco e, de repente, ele o entregou a um taxista que me disse para entrar no carro. Tomei meu passaporte de volta e lhe disse que iria a pé. Comecei a caminhar e alguém gritou, “Pare, senhor! Pare!”, já imaginava que eu ia ouvir algo do tipo, “Não se pode cruzar a fronteira a pé”, e continuei andando. Mas quando um coro de oficiais (quatro ou cinco) gritou, fui vencido e deia meia-volta.

Disseram-me para eu entrar no táxi e eu disse que não tinha dinheiro. Imaginando que a discussão ia se prolongar, sentei-me no meio-fio e esperei. Vi que dois carros privados estavam chegando e fui tentar pedir carona aos motoristas. Nisto, por algum espasmo de altruísmo do taxista, talvez por conta do Nowruz, ele me disse que podia me ajudar a cruzar a fronteira de graça.

No outro lado da fronteira, uma placa desejava boas vindas à Região do Curdistão iraquiano e bandeirinhas coloridas, uma bandeira do Iraque e outra do Curdistão flamulavam.

Mal entrei numa sala ampla com piso limpo e paredes cor de creme recém-pintadas e um jovem me trouxe chá. Foi a primeira vez que me serviram uma bebida numa fronteira.

Por sorte, o passageiro que estava pagando a corrida no táxi falava inglês. Ele vinha da Alemanha visitar sua família em Dohuk. Os oficiais curdos me fizeram algumas perguntas e ligaram para Amer – o contato que obtive pelo fórum da Lonely Planet.

Uma hora depois consegui meu visto de dez dias. Os oficiais me recomendaram, “Não vá a Mosul, nem a Kirkuk”, e me arrumaram outra carona para que eu pudesse terminar de cruzar a fronteira dado que o alemão e seu taxista já haviam partido.

Alguns metros depois desci do carro e presumi que poderia continuar o trajeto até o portão de saída a pé. Fui caminhando até a portaria e ao meu lado uma quantidade enorme de caminhões esperava sua vez para sair. Um porteiro recolhia um pedaço de papel dos motoristas. Mostrei-lhe meu passaporte e disse Dohuk apontando para os caminhões. Ele entendeu a mensagem e começou a perguntar aos caminhoneiros para onde eles estavam indo.

Fiquei conversando com os funcionários da fronteira e aprendendo algumas palavras curdas enquanto esperava por uma carona. Um soldado veio falar comigo e pensei que ele ia me dizer que não poderia ficar ali. Apresentei-me e lhe desejei “Cejnata Pirozbe” (Feliz Primavera) e o rapaz começou a perguntar aos caminhoneiros se podiam me levar.

Uma hora e meia depois conseguiram uma carona para mim na carroceria de uma caminhonete. Eram 18h30 quando embarquei e dividi o espaço com outros dois jovens.

Zakho, a primeira cidade iraquiana após se cruzar a fronteira, estava com um tráfego bem movimentado. Muitas famílias voltavam para a cidade após terem feito piqueniques nas montanhas.

Resolvi me deitar na carroceria porque fazia muito frio. O céu estava lindo, apesar de não haver lua, e recordo-me de ter visto uma estrela cadente. Como não podia conversar com os jovens por conta do problema da língua, resolvi botar uma trilha sonora.

Alguns minutos depois, o rapaz ao meu lado me cutucou e apontou para fora da carroceria. Levantei minha cabeça e vi um comboio de caminhões escoltado por tanques de guerra americanos. Cada caminhão tinha em seu para-brisa uma folha A4 em que estava escrito “Mosul” e um número de identificação. O maior número que vi foi 53, mas talvez houvesse mais caminhões.

O motorista correu pra valer. Sem dúvida aquela foi a maneira mais perigosa de exposição ao risco no Curdistão: viajar na carroceria de uma caminhonete correndo a mais de 100 km/h.

Ao desembarcar em Dohuk, entrei no primeiro estabelecimento comercial que vi: uma alfaiataria. Lá conheci Mark, que tem um inglês impecável e trabalhou com o exército Americano de outubro de 2007 a fevereiro deste ano como intérprete (ele, além do curdo e do inglês, fala árabe).

Achei que sua opinião a respeito da situação do Curdistão seria a mais relevante obtida até então e fiquei mais tranquilo ao ouvir sua confirmação: Dohuk, Arbil e Suleimania são absolutamente seguros.

Ele, seu irmão, o alfaite e mais um cliente começaram a fazer ligações com seus I-phones e celulares top de linha procurando um hotel para mim. No final, levaram-me de Corolla até o Besire Palace, um hotel por 15 dólares.

No dia seguinte, fui convidado para uma partida de futebol. Desde minha primeira pelada no Egito já aprendi que, se os adversários tiverem mais do que a metade de minha idade, é melhor dizer que sou do Japão. Falar que sou brasileiro logo de cara cria uma carga de expectativas com a qual minhas habilidades futebolísticas não estão ao alcance para lidar. Assim, se eu der show, confesso minha origem. Se eu der vexame, já era esperado.

De Dohuk peguei um táxi com mais três curdos até Arbil (Hawler em curdo), capital do Curdistão. Chovia e a pista estava molhada, mas isto não foi suficiente para fazer com que o motorista fosse mais cauteloso.

No caminho passamos por muito checkpoints, mas não enfrentei problema algum. A maior parte da Estrada era terrível, com trechos constituídos de pura lama e buracos. Talvez o caminho não tenha sido o dos melhores para que contornássemos por fora da cidade de Mosul.

Arbil é muito maior que Dohuk. O centro da cidade é um caos, com ruas cheias de caixas de papelão largadas pelos inúmeros lojistas de seus arredores. O comércio é muito ativo e há muitos centros comerciais em construção.

Muitas vezes estava caminhando pela rua e ouvia um, “brazili, brazili”. Virava achando que estavam falando comigo até que, finalmente, percebi que há muitos conterrâneos meus no Iraque. Na década de 80, o governo brasileiro fez um acordo com Saddam Hussein para a exportação de passates Volkswagen – dizem que, além dos carros, tanques de guerra também estavam envolvidos na negociação.

Reparando no trânsito de Arbil, não encontrei nenhum carro que parecesse mais velho do que os brazilis. Aqui o Brasil não é reconhecido somente pelo carnaval, café e futebol, também a resistência do brazili é elogiada, “É um bom carro, um bom carro!”, disseram-me muitos senhores.

Falei dos brazilis, mas já ia me esquecendo de outro elemento do cotidiano dos curdos iraquianos, o gerador. Não me parece que há hora marcada para acabar a luz, mas é certo de que pelo menos por doze horas diárias a energia advirá de geradores particulares.

Acabei deixando a cidade sem me encontrar com Amer, o contato que arrumei no LP, o qual estava muito ocupado com seu trabalho. Peguei um ônibus após me certificar de que ele não pararia em Kirkuk, e fui a Suleimania.

No ônibus, mostrei o telefone e o endereço de Abu Rashedi, meu colega de quarto do hotelzinho de Damasco, a um rapaz que falava inglês. Ele me disse que o telefone estava errado e que não conhecia aquele endereço. Percebi que minha intenção de passar um tempo em sua casa, principal razão que me incentivou a vir para o Curdistão, não iria rolar.

Dado o novo cenário, e como já havia passado três noites no país, senti-me compelido a entrar no ritmo habitual de contenção de custos. Após procurar por um hotel barato, encontrei um letreiro com letras árabes que dizia, “Fondok”, hotel em curdo e árabe.

Subi as escadas e quando vi o local senti-me no CETREMI (ver post de Campo Grande/MS). Fui até a recepção e tentei conversar com o funcionário que não falava árabe, tão pouco inglês. Em menos de três minutos metade do hotel estava a minha volta. Quando vi aquele monte de homens me medindo, pensei seriamente em procurar outro lugar, mas acabei ficando pelo preço: 3000 dinares iraquianos, o equivalente a 2,5 dólares.

Por sorte o hotel estava lotado e eu acabei ficando num quartinho onde são guardados as bolsas, mochilas e demais pertences dos hóspedes. Já acomodado, fui dar uma olhada no lugar.

Há uma sala de televisão que serve também de quarto, na qual três ou quatro pessoas podem dormir sobre o chão encarpetado. Nos fundos, há um banheiro que também servia de cozinha: um fogareiro com uma frigideira fritando batatas estava aceso no canto do corredor. O banho de água quente era na base da hora marcada e era necessário transferir, de canequinha, a água da pia para o balde.

No dia seguinte, fui pagar pela estada e o funcionário do hotel não aceitou. Cortesia curda, como já havia acontecido em outras ocasiões em que eu precisei insistir para que aceitassem meu dinheiro após pedir um falafel ou uma bebida.

Por volta do meio-dia parei para descansar no Parque Azadi (liberdade em curdo), no qual foram escondidos muitos corpos durante o regime ditatorial, e fiquei observando as crianças brincando num parquinho. Um senhor que estava com seu filho de três anos veio falar comigo.

Em seu queixo havia uma pequena deformação e ele me contou que fora por conta de um tiro que levara. Ele, e outros tantos homens curdos de sua idade, haviam sido peshmergans, isto é, guerrilheiros que lutaram contra o regime de Saddam.

Contou-me que, por mais de dez anos, ele teve de viver escondido nas montanhas ao redor de Suleimani, voltando para a cidade esporadicamente à noite somente para atacar os soldados de Saddam.

Com a revolução de 1991 e o controle dos curdos sobre a região, finalmente Mesut, o ex-peshmergan, pôde tocar sua vida particular. Hoje ele é casado e pai de dois filhos, além de ser membro do PUK (Partido Unido do Curdistão).

Antes de me despedir, ele também me disse que Jalay Talabani, atual presidente do Iraque, foi um de seus comandantes.

Despedi-me do senhor e fui ao “museu de Saddam”. Cheguei em frente a um enorme edifício e, pelos buracos de tiros na fachada, acreditei que se tratava do lugar que eu estava procurando.

Tentei conversar com os soldados que estavam na portaria, mas nenhum deles falava inglês. Um jovem rapaz que estava à frente do portão se ofereceu para me ajudar.

Polla, mais conhecido como Jack (ele é fã de 24 horas), é aluno da Universidade Americana do Iraque em Suleimania (AUIS), a qual tem um par de anos de existência. Ele aguardava por seu professor, Ryan, e me convidou para a visita que fariam ao museu.

Ryan e seu irmão, Jonathan, o qual estava de férias, chegaram alguns minutos depois e me juntei aos dois americanos que contavam com a simpática colaboração de Jack, nosso intérprete.

O Museu Nacional Amna Suraka foi, por 12 anos (1979-1991), sede do regime Ba’athista de Saddam em Suleimania. O quarteirão de 16.889 metros quadrados também foi utilizado como prisão, e centenas de curdos e iraquianos dissidentes foram torturados e assassinados naquele lugar.

Depois de visitarmos as salas de tortura e as celas, entramos numa sala com paredes revestidas por fragmentos de espelhos e iluminada por centenas de milhares de lampadazinhas no teto. Os 4500 pedaços de vidro simbolizavam as vilas curdas invadidas por Saddam. Já as 182 mil lâmpadas representavam os curdos assassinados pelo ditador.

Por fim, fomos ao subsolo de um dos prédios que continha fotos do massacre de Halabja de 1988, quando, sob o ataque de armas químicas, morreram mais de 5000 pessoas. Meu horror, naquele instante, pode ser comparado ao que senti quando visitei o Museu da Bomba Atômica, em Hiroshima, e o Museu do Holocausto, em Jerusalém.

No final de nossa visita, Ryan convidou-me para acompanhá-los até o Lago Ducan, um dos lugares mais lindos que visitei no Oriente Médio e que, sem dúvida, ocupa uma posição de destaque no meu ranking “Subhan Allah!”.

À noite, como estava com todo meu equipamento de viagem (a velha companheira mochila Risca e minha biblioteca móvel) porque pensei que talvez encontraria Abu Rashedi na rua, fui dormir no alojamento dos estudantes mantido pelo governo.

Como não havia aulas durante toda a semana por conta do ano novo curdo, o alojamento estava vazio e Jack me disse que em seu quarto havia duas camas livres.

A “república” deixaria qualquer morador do CRUSP com inveja: um enorme prédio de cinco andares com capacidade para mais de 400 pessoas, quartos com ar-condicionado para três pessoas, banheiro e cozinha para cada seis quartos e área de estudo.

Logo na entrada, uma cena comum do cotidiano iraquiano: soldados curdos assistiam à televisão e fumavam cigarros tão à vontade quanto em suas casas.

Além de Jack, outro dedicado estudante havia permanecido no alojamento para estudar, Peshawa. Não sei se vocês compreenderam a dimensão do significado de se perder a mais importante comemoração do calendário curdo para ficar estudando sozinho num prédio deserto. É como se, no Natal, ao invés de família reunida e banquete, tivéssemos apenas a companhia dos livros e cadernos que já nos acompanham todos os outros dias do ano.

Peshawa significa líder em curdo, e não tenho dúvida de que naquele prédio conheci a nata política, empresarial e intelectual iraquiana dos próximos dez, quinze anos. Ele tem vinte anos e nasceu no Irã por conta do atentado de Halabja. Contou-me que seus pais sobreviveram graças à direção do vento e que eles fugiram para a fronteira após um senhor chegar a sua casa no dia do ataque com a boca espumando.

No dia seguinte, fomos a mais tradicional casa de chá da cidade, Chaickanay Shaeb, onde mais de 150 homens se reuniam para tomar chá, jogar dominó ou cartas, ler jornal, assistir à televisão ou conversar. Nas paredes com uma porção de fotos de mártires curdos, uma saía do contexto: a da seleção brasileira conquistando seu pentacampeonato em 2002. Quando reparei nisto, Jack me fez o favor de lembrar que, em 2006, após a derrota para a França, três iraquianos cometeram suícidio.

À noite, voltamos ao alojamento e alguns estudantes já retornavam de suas cidades natais para as aulas que começariam dois dias depois. Estava no quarto de Peshawa com mais cinco jovens quando eles falaram de “terrorismo”, entre aspas porque é em sentido figurado. Entre eles, há um código de conduta que consiste em não falar sobre determinados assuntos, classificados como “terrorismo”.

Hiperbolicamente, conversas sobre mulheres, namoradas e sexo entre aqueles jovens é tão condenável quanto explosões suicidas, ataques à bomba... Postura que tem muito mais relação com os estudos do que com a religião muculmana. Daí já dá pra ver a seriedade dos caras.

Halabja

Fui com Caruan, colega de quarto de Jack, a Halabja, a uma hora de Suleimania. No ônibus encontrei o primeiro companheiro de mochilagem no Iraque, Joe, um canadense que vivi no Azerbaijão dando aulas de inglês.

Quando desembarcamos, Arsalan, outro estudante da AUSI, o qual nasceu em Halabja, já estava nos esperando. Fomos a sua casa e tomamos um chá com culinha, uns biscoitos com recheio de nozes e canela.

Em seguida, fomos ao novo monumento em homenagem aos mortos de 1988. O antigo foi destruído há alguns anos pelos moradores da cidade em protesto contra o governo, o qual, segundo Arsalan, Peshawa e todos os halabjanos que ouvi, não revertiam os fundos doados por organizações internacionais e governos de outros países para benifício da população.




Omer Hamar abraçando seu filho


Em seu interior havia fotos da comunidade antes e depois dos ataques. Uma delas, a de Omer Hamar abraçando seu filho de menos de um ano de idade após tentar salvá-lo, foi transformada em estátua e é um dos símbolos do massacre.



Mural com os nomes das vitimas


Voltamos para a casa de Arsalam para o almoço e pude conversar um pouco com seu pai. Ele me contou sobre o dia do ataque, quando perdeu uma filha que na época tinha três anos de idade, e sobre a fuga de sua família para o Irã. Demonstrou muita gratidão pelo país vizinho, que abriu suas fronteiras para acolher os refugiados curdos.

De volta a Arbil

Estava em uma livraria no centro da cidade procurando o filme Body of Lies por conta da atriz iraniana que compõe o elenco, recomendação de Jack, quando um curdo iraniano se prontificou a me mostrar onde poderia encontrá-lo.

Khalid não apenas me levou ao Mercado de DVDs piratas com todos os lançamentos de Hollywood, como me comprou o filme e me convidou para passar à noite no alojamento dos estudantes da Universidade de Arbil.

O prédio não era tão chique quanto os da AUSI, mas ainda assim o considerei mais confortável. No apartamento com dois cômodos moravam mais cinco colegas, todos do Irã.

Jantamos ao som de música persa e, depois da refeição, Khalid me perguntou se eu queria ver o jogo do Brasil contra o Equador. Respondi que preferia ver a atriz iraniana.



Hasam, Zelal, Khalid, Bawroz, Ayub e eu


Em seu laptop vimos Body of Lies. Não gostei tanto do filme, mas Golshifteh Farahani compensou. Khalid me disse que hoje, após a sua participação, ela está proibida de sair do Irã.

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Até havia me esquecido do título deste post, “Eu gosto de George Bush”. Eu ouvi a frase da boca dos estudantes da Universidade Americana de Suleimania, que, para suavizá-la, completaram com um, “Mas acho que Obama será melhor”. Depois de ouvir tantas histórias tristes envolvendo o povo curdo iraquiano, dá pra compreender o porquê, não?

Tem gente que acha que tirar Saddam Hussein do poder não foi lá grande coisa, afinal, não havia armas de destruição em massa no país. Por que mandar os americanos para cá então? “Deixassem curdos e xiitas morrerem até conseguirem resolver por si mesmos seus problemas”, pensavam calados os democratas e esquerdistas de pé-quebrado enquanto condenavam a imoralidade da guerra. Afinal, “a democracia não pode ser introduzida à força”.

Os xiitas, que antes viviam sobre a ditadura do regime Ba’thista, hoje podem, além de ir a Kerbala durante a Ashura (este ano, mais de 10 milhões de peregrinos passaram pela cidade), sair às ruas para pedir a saída dos soldados americanos que estão aqui para a sua própria segurança. Ou alguém acredita que o país estará mais seguro após a retirada das tropas americanas? Aqueles que acreditam nesta tese são os mesmos que colocam a culpa nos Estados Unidos quando uma sunita com explosivos presos ao corpo se explode no meio de uma mesquita xiita e mata dezenas de inocentes.

Os curdos, que conquistaram grande parte de sua liberdade no Iraque com a revolução de 1991, não escondem sua gratidão pelos Estados Unidos, não acreditam que o país esteja preparado para a retirada dos americanos, e estão sempre em alerta para a eclosão de uma eventual guerra civil no país. Acho que em matéria de segurança e sobrevivência, eles têm conhecimento de sobra para orientar Obama.

PS: detalhe importante. Perguntei a muitos curdos, “Se você estivesse no exterior, diria que é do Iraque ou do Curdistão?” Sempre obtive a mesma resposta: “Iraque!”

Conquer your heart

“Can you walk on water?
You have done no better than a straw.
Can you soar in the air?
You have done no better than a fly.
Conquer your heart; then you may become somebody.”

Khajah Abdullah Ansari of Herat (1.006 – 1.088 A.D.)

Família Ormek - Diyarbakir/Turkey

Parti do Iraque com a intenção de ir a Trabzon tentar o plano B para o visto iraniano.

Como sempre os funcionários curdos da fronteira me arrumaram uma carona num táxi para que eu pudesse passar para o lado turco.

Parêntesis: a revista no lado turco foi a mais forte que enfrentei numa fronteira. Revistaram todas as malas e cada um dos passageiros, além de checarem cuidadosamente o carro. Isto porque nas montanhas do Curdistão iraquiano se escondem os gerillas, guerrilheiros do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistao), uma organização terrorista curda que luta pela formação do Estado Curdo na Turquia.

De tabela, Keinan, um empresário curdo de Diyarbakir que estava no carro, convidou-me para viajar com ele até a sua cidade. Conosco também viajou Kailid, um árabe de Mosul que ia a Istambul fazer negócios.

Chegamos na cidade às 20h. Diyarbakir é famosa por suas comemorações de Nowruz e é também a cidade curda mais populosa do mundo (mais de um milhão de habitantes).

Estava caminhando por um labirinto de ruas estreitas no centro da cidade com paredes repletas de cartazes politicos curdos escritos em turco (na Turquia, a propaganda política é proibida em curdo) e pichações dos dizeres PKK e APO (Abdullah Ocalan, fundador do PKK) quando encontrei uma manifestação política.

Centenas de jovens, crianças e adultos dançavam ao som de músicas curdas e balançavam bandeiras amarelas com a sigla DTP, partido curdo da Turquia.

Fiquei assistindo de longe, trocando palavras com o círculo de crianças que se formava ao meu redor, e esperando por alguém que falasse inglês.

Meia-hora depois, finalmente Zelal (para o governo turco, que não aceita nomes curdos, ela é conhecida como Gudbahai) apareceu. Ela me contou que a manifestação se dava em razão do sucesso alcançado pelo DTP nas eleições locais do domingo passado.

Fui até sua casa e pude conhecer sua família, toda engajada politicamente. De todos, quem mais me impressionou foi Medya, sua irmã mais nova de nove anos.

Como é proibido se lecionar a língua curda nas escolas do país, há dois anos a pequena vem ensinando, numa sala de aula improvisada em sua casa, a língua e história curda aos seus amigos da vizinhança. De domingo e segunda, de quatro a cinco horas, ela ministra suas aulas preparadas com informações recolhidas da internet.

Jornais turcos e curdos, bem como políticos do DTP, já vieram prestigiar a jovem professora.

Mais tarde, voltamos para a manifestação, que se estenderia até às 22h. Medya vestiu as tradicionais roupas curdas, shalshabeck (calça e camisa) e shitock (lenço que serve de cinto) e em sua testa ainda era possível ler a sigla DTP invertida (a garotinha havia escrito os dizeres com a ajuda de um espelho).

Mamoste Medya - Professora Medya


Eu estava com receio de sermos surpreendidos pela polícia (os curdos são proibidos de usarem roupas tradicionais e de fazerem manifestações culturais publicamente), mas felizmente nada aconteceu.


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Terrorista é a Al Qaeda

Certo dia fomos à sede do DTP na cidade. Abdullah Demirbas, ex-prefeito da cidade e atual secretario das manufaturas, recebeu-me para uma conversa bem rapida. Perguntei-lhe sobre a relação entre seu partido e o PKK. Ele me disse que são organizações distintas com os mesmos objetivos. A diferença consiste no fato de que o DTP segue as leis turcas, já o PKK não.

Repliquei se o PKK seria, então, uma organização terrorista. Ao que ele respondeu que não. Por fim, quis saber se o objetivo final do DTP era a criação de um estado curdo. Respondeu-me que, no século XXI, mais importante do que a criação de um novo estado, é a ampliação dos direitos da população curda na Turquia.

No jornal, encontrei um outro líder do DTP que afirmava, “é preciso ter cuidado com o uso da palavra terrorista. Deve-se diferenciar o PKK da Al Qaeda. O PKK só existe por conta da opressão do governo turco”.

Mas a Al Qaeda só existe por conta do imperialismo americano, nao? Esta lógica do opressor-oprimido sempre me oprime. Não seria o caso de pensarmos que, no século XXI, deveríamos saber que os fins não justificam os meios? Ou melhor, de saber que “a essência do esforço moral consiste em tentar ser justo numa sociedade injusta”, parafraseando Olavo de Carvalho?

A causalidade que não pretendo entender – Damasco/Síria


Complicada esta parte da viagem. Eu estava em Bingol/Turquia, a menos de 700 km de Trabzon, no qual pretendia tentar o visto iraniano novamente, quando resolvi voltar a Damasco.

Não vou me alongar tentando explicar o inexplicável, nem vou tergiversar com asneiras. Mas o relato de um fato talvez sossegue a alma e prove que, às vezes, a resignação é o que me resta.

Assim que cheguei no hotelzinho El Riyad, no qual passei boa parte de meu tempo na capital síria, Abu Abduh, dono do estabelecimento, me contou que meu colega de quarto curdo, Abu Rashedi, principal motivo de minha ida ao Curdistão iraquiano, havia sido preso.

Três dias após a minha partida, a polícia o seguiu e prendeu no hotel às quatro da manhã. Ele e mais um bando de doze homens estavam assaltando casas da região. Eis a razão de ele voltar praticamente todos os dias de madrugada.

Já havia aprendido com Vinícius que a vida é a arte do encontro, mas, pela primeira vez, percebi nos desencontros amargurados, nas desgraças desnecessárias e nos erros estúpidos uma causalidade que está muito além de minha compreensão. Nessas horas, não resta muita coisa além de me sentar à janela e deixar a vida escapar.

“Oshima, vai fazer um topete!”

Tem gente que se vende por um sorriso, por um “bom dia”, por um pisão no pé seguido de um “perdoe-me, por favor”. Se querem saber, percebi que eu estava chegando a este ponto alguns meses atrás.

O maior sintoma da decadência de minha suposta fortaleza sentimental se deu quando uma amiga me cumprimentou pelo gtalk com um “olá, querido!” Quase chorei! Foi uma das mais acolhedoras demonstraçoes de carinho que recebi em um bocado de meses.

Compartilhei a sensação com alguns amigos, que agora me fizeram o favor de começarem seus e-mails com, “Querido Fernado”, ou “Fofucho Oshiminha”. Só queria agradecer pelo apoio!

Não são muitos os momentos em que a solidão me acomete. Há um método básico para despistá-la que consiste em se preocupar com questões não concernentes às profundezas da alma. Assim, quando encosto a cabeça no travesseiro, raramente reparo no teto encardido, nas paredes descamando do hotel.

Meu pensamento fica nos artigos que recolhi da internet, no livro que estava lendo, nas idiotices do Gustavo Chacra (tive que comentar, ao menos pra registrar como um desabafo), nos e-mails que troco com o Allan, o Cássio e a Maya sobre o Oriente Médio.

Mas há vezes que as bobagens estupidamente humanas e necessárias me arrebatam… e nessas ocasiões, minha autoestima se estilhaça como se eu tivesse buscado carona por 12 horas seguidas.

A Maya me pegou no msn quando eu estava assim. Recomendou-me, “Oshima, vai fazer um topete!” Sábias palavras de quem me conhece bem - ou ao menos leu o blog. Mas, felizmente, nestas situações não há topete que aguente.

Onze meses na estrada! Presente: visto iraniano – Trabzon/Turquia

Antes de ir à Turquia passei mais alguns dias em Mar Mussa, o monastério cristão ao norte de Damasco.

Reencontrei Dave, o britânico que me aconselhou a tomar cuidado no Iraque (como já disse, este tipo de coisa não se ouve muito de mochileiros) e conheci Igor, um russo que queria entrar no Irã pelo Curdistão iraquiano.

Ele me disse que havia conseguido o visto em Trabzon em apenas uma hora, o que apenas confirmou o que eu já havia ouvido antes (não ter ido direto para lá foi um dos erros estúpidos que cometi).

Por duas noites dormi em uma caverna nas montanhas a quinze minutos do monastério. O russo, um espanhol, um esloveno e eu conversamos a sua entrada olhando pequenos pontos luminosos – as fogueiras dos beduínos – no deserto.

Estava explicando a rota que Igor deveria percorrer até o Iraque e lhe recomendei que não tentasse viajar de carona lá. Depois começamos a falar sobre o Afeganistão. Não tinha ideia de que ele havia cruzado o país “a dedo”.

Igor nos contou da vez em que, ao revelar que era russo ao motorista, este lhe disse: “meu irmão foi morto pelos soviéticos.” Mas a pérola ainda estava por vir.

Falei de um vídeo em que vi um garoto de 12 anos decepando a cabeça de um homem envolto por um monte de talibãs que gritavam, “Allah Awakbar! Allah Awakbar!”. Ele replicou, “O talibã é bom”, referindo-se a vez em que lhe deixaram acampar numa área por eles controlada a alguns quilometros de Cabul.

Talvez este seja o “talibã moderado” com que Obama e Hillary querem negociar. Pena que o russo não pegou o telefone deles pra avisar a CIA de sua localização. Ao invés de bombas, Obama mandaria um vídeo que seria entregue por Richard Holbrooke, o mesmo que perguntou a um terrorista ex-detento de Guantánamo: "Give us advice on reconciliation with the Taliban".

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Em Trabzon, procurei um lugar para me acomodar por uma noite. Como a rodoviária fica próxima ao porto, tentei encontrar um hotel barato nas redondezas. O que se mostrou uma péssima ideia.

Trabzon fica às margens do Mar Negro e é porta de entrada para muitos russos que imigram para a Turquia. No primeiro “oteli” em que entrei, dei de cara com uma loirona. Um leão de chácara veio me atender falando em russo e lhe perguntei, só por curiosidade, quanto custava um quarto. O cara me pediu 40 dólares. A mesma coisa aconteceu mais umas cinco vezes.

No dia seguinte, 22 de abril, precisamente quando completava onze meses de viagem, fui até o consulado iraniano. Cheguei às 8h15 e teria de esperar até às 9h. Sentei-me na calçada ouvindo as canções em farsi que Farnoosh havia me passado.

Alguns minutos antes das 9h um senhor acenou para mim da janela do prédio dizendo que eu subisse. O mesmo senhor sorridente me recebeu à porta e disse, em português claro, ao saber que eu era do Brasil, “Você é brasileiro?”

Sr. Mourat havia sido cônsul em Brasília por quatro anos antes de ser transferido para a Turquia. Ele solicitou meu passaporte e, vinte minutos depois, trouxe-me o número da conta bancária para o qual deveria fazer o pagamento de 50 euros. Quando ouvi esta notícia quase chorei. A informação que eu havia recebido de um japonês no meu segundo dia de Oriente Médio, no hotel Sultan-Bed Bugs, em Cairo, era verdadeira: visto iraniano em Trabzon no mesmo dia!

Antes de pegar a Estrada em direção a Diyarbakir, comemorei minha conquista com um combo de dois dólares do Mc Donalds. A busca de dois meses havia terminado.

“Diyarbakir Sempozyumu” - Diyarbakir/Turkey

Antes de ir para o Irã queria reencontrar a família Ormek de Diyarbakir.

Quando estava em seu bairro, no centro da cidade, acabei me perdendo naquele labarinto de ruazinhas. Pedi informação a algumas crianças que brincavam, dizendo, “Medya? Medya Ormek?”, e um escolta de mais de dez meninos e meninas me levaram até à frente de sua casa.

A escolta de crianças no quintal da casa da familia Ormeck


Zelal, a irmã mais velha que fala inglês, estava trabalhando como assistente de Abdullah Demirbaes, o político com quem havia conversado da outra vez.

Um dia, fui assistir a uma aula de grego em turco de Azad, irmão de Zelal, o qual está estudando arqueologia e, em seguida, fomos à municipalidade participar de um simpósio.

Quando estava sentado naquele auditório quente, ouvindo uma apresentação em turco, olhei para Shilan, prima de Zelal, e perguntei, “O que estamos fazendo aqui?”. Sua resposta me lembrou os tempos áureos de GV, “Espere mais uns minutos. Logo será servido o almoço.” Fiz uma cara de “então tá bom!”

O simpósio duraria três dias e fui um participante sempre presente. Não pude enteder uma palavra do evento além de “Afietossu” (algo como “bom apetite”), mas ainda assim recebi uma oferta de emprego.

Durante o coffee break, o Sr. Abdurrahman, um engenheiro de telecomunicações, ao saber que eu havia estudado administração de empresas, arranjou-me uma vaga na área de logística de uma construtora de Diyarbakir. Se me perguntassem o porquê da oferta, sem análise de CV nem entrevista, diria que, se não foi um devaneio do cara, foi meu topete.

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No domingo, o jogo de futebol entre Diyarbakir Sport contra Kasimpasa (um time de Istambul) era ansiosamente aguardado. Tratava-se de um duelo entre curdos e turcos valendo uma vaga para a primeira divisão da Turquia. Assisti ao primeiro tempo do jogo numa casa de chá. Infelizmente a partida terminou em zero a zero e o desejo dos curdos de comemorem pelas ruas do centro da cidade foi adiado.

Para mim, um jogo mais importante iria acontecer às 22h. Corinthians e Santos jogariam na Vila valendo a final do Paulista… e foi só alegria, com direito a golaço do Ronaldo! “Vamô, vamô, meu Timão!”

Meu cotidiano com os curdo-iraquianos de Arbil - Arbil/Iraque

E aqui estou eu… intercalando horas seguidas à frente deste laptop com páginas do cotidiano dos estudantes curdo-iranianos da Universidade de Arbil.

Já faz quase uma semana que estou no apartamento de Khalid e de seus cinco roommates (todos do Irã). Não poderia estar em lugar melhor para atualizar este blog e tenho certeza de que a despedida será uma das mais difíceis da viagem.

No dia em que cheguei, Khalid comprou cervejas por conta de uma brincadeira que fiz após conversamos sobre a proibição do álcool no Irã. Disse, “tenho que tomar todas aqui!”, e à noite ele apareceu com Heinekens e Milleres.

No dia seguinte, Bahruz, estudante de biologia, convidou-me para a apresentação de seu trabalho de conclusão de curso (TCC). Assisti a pelo menos mais três apresentações antes da sua e, numa delas, ouvi o professor fazendo um comentário que começou com “Bismi Lah Arahamen Arahim” (em nome de Allah, o todo Misericordioso, o sempre Misericordioso). Virei para Khalid e lhe pedi que traduzisse o restante. Ele me explicou que o professor estava corrigindo o trecho do Corão citado na monografia da aluna.

Na verdade a citação do Corão nos TCCs é opcional e a Universidade de Arbil (UA) é bastante liberal. Aliás, fazia muito tempo que eu não via uma concentração tão grande de mulheres bonitas e bem vestidas por metro quadrado. Sem dúvida, só na GV eu havia visto tantas garotas tão maquiadas para assistiram às aulas como na UA.

Voltando à apresentação de Bahruz… Ele estava bastante nervoso, mas se saiu muito bem. Ele e Ayub (roommate que estuda Física) terão mais dois meses de aulas e se formarão no final deste semestre.

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Numa noite fomos jantar na casa de um amigo de Khalid, Sr. Sirvan. Depois da refeição, enquanto estávamos tomando chá na sala-de-estar, ele me perguntou se eu não gostaria de provar rancotiyoga, as roupas tradicionais curdas. Claro que aceitei o convite.

Fui até seu quarto e vesti os trajes de mais de 250 dólares cuidadosamente. O mais divertido foi dar voltas para enrolar na cintura o lenço de quase cinco metros de comprimento que serve como cinto.

Tudo pronto, estava pousando para a foto quando o Sr. Zurar, pai de Sirvan, colocou uma arma na minha cintura. Achei que fosse de brinquedo, mas quando os vi tirando uma Kalashnikov de trás da porta percebi que se tratava de uma autêntica Colt. Pai e filho haviam sido peshmergans.

Sem dúvida, há dois fatos que marcam a vida da maoria dos senhores acima dos 40 anos no Curdistão iraquiano: a luta contra Saddam Hussein e a compra de um brazili (passat).

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Já numa tarde, Ayub me convidou para escolher o presente de aniversário de sua namorada. Recebi o convite como uma espécie de voto de confiança, dado que se trata de sua primeira namorada, e me dispus a fazer algo que julgava impossível: escolher uma bolsa feminina.

Fomos a um dos inúmeros shoppings centeres da cidade – em Arbil, só eles crescem com a mesma velocidade que as mesquitas - e, após entrarmos ao menos duas vezes em nove lojas diferentes, Ayub finalmente se decidiu por uma bolsa caríssima.

No dia do aniversário fomos ao maior parque do Curdistão iraquiano, Sami Abdulrahaman Park. Ayub estava visivelmente estressado e preocupado. Caminhamos por meia hora até que ele escolheu o melhor lugar para que fizéssemos a festinha.

Alguns minutos depois, Amin, sua namorada, e mais três amigas chegaram. Fiquei a maior parte do tempo conversando com Naska (a única, com exceção de Khalid, que falava inglês), uma garota de 22 anos que estuda computação.

Ela nasceu no Irã e cresceu sem seus pais, os quais tiveram de fugir para o Iraque por conta de fazerem parte do partido democrático curdo. Aos 18, muda-se para Arbil e finalmente reencontra sua família.

Depois cantamos “Tavaludet Mobarak”, “parabéns pra você” em farsi, e entregamos os presentes. Khalid deu um livro sobre a cultura curda; as meninas, um pingente; e, por fim, Ayub lhe entregou a preciosa bolsa.

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No final de semana fomos a um piquenique organizado pela universidade. Ao menos cinco ônibus saíram de cada uma das escolas. Khalid e eu fomos com os estudantes da faculdade de ciências humanas.

Encontramo-nos com suas amigas iranianas e ocupamos o fundão do ônibus. Havia somente umas dez garotas no veículo, sendo que as do Irã, nitidamente, eram as mais animadas. Elas cantaram músicas curdas a viagem inteira.

Uma hora depois paramos para fazer o primeiro piquenique (ao todo, foram três). Olhei para as montanhas ao redor e vi alguns homens dispersos em seu topo. Perguntei à Khalid se era normal soldados naquela região e ele me disse que eles estavam lá por conta dos estudantes da universidade. Alguns minutos depois, descobrimos que Masoud Barzani, presidente da Região Autônoma do Curdistão iraquiano, faria um discurso num palco montado próximo ao lugar onde estávamos.

Após o discurso, dirigido aos estudantes, fomos para outro lugar onde almoçaríamos. Estava jogando futebol com umas crianças quando fui dominar a bola com um movimento mais brusco que gerou um som de tecido rasgando. Não fazia nem dois meses que havia comprado esta calça nova e já tinha um buraco de quase um palco no meio das pernas.

Khalid conseguiu agulha e linha numa casinha próxima de onde estávamos e tentei costurá-la. Alguns minutos depois o buraco abriu novamente. As meninas já haviam percebido o incidente e tentaram me tranquilizar, “Relaxa, não tem problema.” Depois dessa, acabei desencanando mesmo e só costurei quando voltei pra casa com uma linha muito mais resistente: fio dental.


À noite, fomos para outro lugar para jantarmos kufta (beringela, abobrinha, tomate e cebola recheados com carne e arroz), meu prato curdo preferido. Dançamos músicas tradicionais e voltamos para Hawler (Arbil em curdo) às 20h. No ônibus, as meninas e Khalid ainda cantariam músicas iranianas.