Wednesday, October 22, 2008

Editorial do Estadao de hoje

O consenso, na Bolívia

Após 12 dias de negociações, na madrugada de ontem a Comissão de Conciliação, composta por representantes dos quatro partidos com assentos no Congresso boliviano, chegou a uma solução de consenso para pôr fim à violenta crise política - pelo menos 30 pessoas morreram em conflitos de rua - deflagrada pela decisão do presidente Evo Morales de convocar um referendo para a aprovação da nova "Constituição bolivariana" em janeiro e pela reação dos Departamentos da chamada "meia-lua", contrários ao texto constitucional e favoráveis à autonomia de suas regiões. Em seguida, numa reunião que durou 18 horas, o Congresso aprovou leis que consagraram os principais pontos do consenso. Foi confirmada a convocação do referendo para o dia 25 de janeiro, como queria Evo Morales. Mas ele teve de abrir mão dos dispositivos da nova Constituição que lhe permitiriam governar, em sucessivas reeleições, até 2019. Também teve de concordar com a reforma de pouco mais de 100 dos mais de 400 artigos da Constituição "refundadora".Evo Morales havia convocado uma manifestação monstro para forçar o Congresso a aprovar a convocação do referendo. Pretendia repetir o estratagema utilizado para a aprovação da Constituição, em dezembro do ano passado, quando uma multidão cercou o quartel onde se reunia a Assembléia Constituinte e impediu que os parlamentares oposicionistas tivessem acesso ao recinto. Desta vez, prevenidos, os oposicionistas montaram acampamento no Congresso e não se intimidaram com as ameaças de cerco prolongado e até de invasão feitas pelos líderes da manifestação, que foi, de fato, monstruosa. Segundo o governo, havia 1 milhão de pessoas nos últimos 15 quilômetros da marcha; a imprensa local estimou a multidão reunida ao redor do Congresso em 100 mil; a oposição falou em "dezenas de milhares".Ontem, às 7 horas, Evo Morales, que desde a véspera liderava a manifestação, fez um discurso pedindo calma à multidão, pois o Congresso já iniciara a votação dos projetos. Prometeu, também, sancioná-los à vista de todos. E assim desarmou-se uma situação explosiva.Com os "ajustes" e "correções" que foram feitos, agora há poucas dúvidas de que o novo texto constitucional seja aprovado no referendo de janeiro. Os pontos que provocavam as maiores reações à Constituição "bolivariana" foram ou completamente alterados ou bastante abrandados. As próximas eleições gerais ocorrerão em dezembro de 2009. Evo Morales poderá candidatar-se à reeleição nesse pleito, mas não no de 2014. Fica reconhecida a autonomia dos Departamentos, que poderão ter suas próprias Assembléias Legislativas e administrar seus recursos fiscais. Mas os Estatutos Autonômicos terão de ser adaptados à Constituição.Ainda no capítulo da organização política do Estado, os magistrados do Tribunal Supremo de Justiça continuarão sendo eleitos por sufrágio universal, mas os candidatos não mais serão selecionados pelo Controle Administrativo e Disciplinar da Justiça - órgão sujeito à influência do Executivo -, mas pela Assembléia Legislativa. Além disso, a participação popular na tomada de decisões a respeito de políticas públicas cede lugar para a participação no planejamento dessas políticas - com o que se atenua a "democracia direta e participativa" que era parte do projeto bolivariano.No capítulo dos direitos econômicos, poderá haver desapropriação em caso de necessidade ou de utilidade pública, mas mediante lei que a autorize e indenização prévia e justa - o que o texto original não contemplava. Há, também, o reconhecimento dos estabelecimentos privados de ensino, que estavam proscritos na Constituição bolivariana. Não menos importante é o reconhecimento da propriedade da terra a todas as pessoas jurídicas legalmente constituídas no país. Em referendo será decidido se será considerada latifúndio a propriedade com 5 mil ou 10 mil hectares, mas o que for definido somente se aplicará às propriedades adquiridas após o início da vigência da nova Constituição.As adaptações atendem às reivindicações de importantes setores da sociedade - os mais produtivos - que haviam sido marginalizados pela Constituição bolivariana. Resta esperar que, com isso, a paz social retorne à Bolívia.

Experiencia off-road - Santa Maria: este foi macho!

De 4x4, ate a minha mae que nao sabe usar controle-remoto. Agora em onibus de turismo como este... UHUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Tuesday, October 21, 2008

A maior declaracao de amor...

Durante estes dias que estive atualizando o blog, recebi o primeiro e-mail de minha mae. Antes, nao podia acreditar que a mulher que havia tido tanto trabalho para me colocar neste mundo nao conseguisse mudar o canal da teve sem pedir ajuda a seus filhos. Agora, nao posso acreditar que a mesma mulher que nao sabia manejar um controle remoto, aprendeu a enviar e-mail e a acessar blog.

A mais bela declaracao de amor que ja recebi, talvez nao seja tao boa assim, como meu proprio irmao comentou, afinal, para mae, uma gripe é dengue, um dia sem prato de comida é desnutricao, uma noite mal-dormida é uma semana de insonia (neste caso, para ela)...

Experiencia off road - Perú (caminho para Santa Maria)

Frequently Asked Questions

1 – O que voce busca?
As vezes, penso que seria menos decepcionante para as pessoas se eu dissesse que meus país morreram, ou que tenho uma doença terminal e que quero aproveitar intensamente meus últimos días de vida. Menos dramático seria dizer que trabalho na Discovery Channel, ou que quero escrever um libro sobre a viagem. Isto porque o fato de eu dizer que nao busco nada especifico, somente a melhor experiencia possivel e, talvez, uma alema, avulta a consciencia dos que nao aceitam o fato de eu viajar sem ter nenhuma outra motivacao mais, como dizer, profunda (?). Assim, natural e jocosamente, estas pessoas descambam para seguinte explicaçao: sou louco.

2 – De onde veio a ideia?
Como ja disse, ate os meus 20 anos de idade, viajar era ir a praia com meus amigos ou visitar meus parentes no Parana no final de ano.
A dimensao atual eu extrai, precisamente, do relato de um amigo do DAGV, Joao Zanini. Ele estava viajando de primeira classe em um trem no Egito quando pensou que, para conhecer verdadeiramente o pais, seria necesario se juntar aos modestos passageiros da classe economica. Assim, largou os companheiros gringos e as batatas fritas para ficar sentado num assento quebrado rodeado de egipcios ate perceber que uma melhor opcao seria dormir no bagageiro do vagao… Nao espero que voces sintam o que senti quando li isto, tao pouco que entendam. Mas foi exatamente o que me incitou a fazer esta viagem.

3 – Por que tanto sofrimento?
Muitas vezes, apos dizer que passei frio ao dormir em rodoviarias, que dormi sobre frangos congelados, ou que viajei na carrocería de um caminhao por mais de dez horas, as pessoas me perguntam se tenho fetiche por chicote e cabresto.
Quando lia os relatos do Joao, nao tinha do, porque sabia que daquela forma, ele estava vivendo. Por favor, sintam algum outro sentimento mais elevado, como raiva e saudade, do que dó de mim.

4 – Seus pais estao vivos?
Vivos e bem casados, obrigado. Parentesis: essa pergunta me lembra outra bastante comum em Sao Paulo: “É casado? Tem filhos?”.

5 – Nao sente falta de seus pais?
Sakyamuni, ou Siddharta Gautama – o Buda, disse que e quente ter pai, mae, irmao e irma. E evidente que muitas vezes sinto frio.

6 – Por que nao pega dinheiro com seus pais?
Eu peguei. O seguro de saúde (achei o acento), a pesar (o Word insiste em deixar separado o “a” do “pesar”) de eu dizer que nao precisava, as vacinas e os livros foram custeados por eles. Além disso, quando os 300 dólares de minha conta bancária representam, na verdade, uma dezena de noites mal dormidas, centenas de horas-extras e algumas varizes, multiplico este valor por mil.

7 – Por que sozinho?
Viajar sozinho é mais fácil para tudo: pegar carona, conseguir um lugar para dormir, fazer novas amizades, pagar a passagem de volta para casa; mas também, para ser assaltado, cair numa cilada, cometer erros… De qualquer maneira, viajar sozinho também faz parte da busca pela melhor experiencia.

8 – Já está na condiçao de “impegável”?
Quando sinto meu corpo suado e grudento após alguns dias sem uma chuveirada, ou vejo meu cabelo comprido e seboso, e minhas roupas de 150 dias manchadas e encardidas, surpreendo-me com a tara étnica que faria até o Mestre Miyagi (aquele do Karate Kid) se tornar irresistible para as caboclas amazonenses, as sertanistas baianas ou as cholas (tradicionais senhoras andinas) bolivianas.

9 – Quando viaja para o Egito?
Por enquanto, 17/11: Caracas-Madri-Cairo.

10 – Já pensou em desistir?
Nao vou ser boçal para dizer que desistir nao existe no meu vocabulario, a pesar (de novo o Word) de eu ser muito orgulhoso. Mas, em desistir, ainda nao. Contudo, a fase, única até o momento, em que questionei as razoes da viagem foi a da Argentina, ou melhor, foi a posterior a Yuba.
Logo no início da jornada, a pesar de me sentir convicto em relacao ao propósito da capoeira, me deparei com esta comunidade amarela que me fez cuestionar o significado de tudo, incluindo o de minha vida (pode parecer tosco, mas realmente foi profundo). Ha muito tempo nao sentia uma paz como aquela, e tive uma forte síndrome de abstinencia nos dias posteriores.

11 – Esta se alimentando direito?
Pregunta frecuentemente feita pelas mulheres (inclui mae, prima, amigas). Estou me alimentando bem, a pesar de nao comer tanto quanto como quando estava em casa, obviamente. Alem disso, tenho reserva, a qual, pela primeira vez, parece estar diminuindo (mais por nao tomar cerveja, penso eu, do que por comer menos).

12 – Quando volta para o Brasil?
A única pregunta que, no momento, nao sei responder. Mas fiquem tranquilos, pois nao me tornarei um hippie ou alguém que tenha a viagem como um estilo de vida… Este vírus ainda está no seu auge, mas um dia deixa este hospedeiro.

PS: o autocorretor do Word pode ter alterado algunas palabras (viram?).

Evasión de Frontera y Machu Picchu

Seguem os relatos dos últimos 30 dias (nao é bem verdade, porque ainda falta Equador). Percebam que melhorei bem a periodicidade e espero continuar assim.

Fiquei pouquíssimo tempo na Bolívia porque prolonguei demais minha estadia no Brasil, mas ainda assim foi suficiente para acompanhar um pouco do conflito político pelo qual o país está passando. Também foi o suficiente para fazer aquilo que considero a cagada-mor da viagem (nao me importarei se pularem esta parte).

Perú se destaca por Machu Picchu, mais por nao ter me arruinado moralmente do que propriamente pelas ruínas incaícas. Foi o momento de realmente botar a prova a frase “o caminho é a meta” (novamente, extrai uma citacao do Allan). Também aprendi um pouco de artesanto, que, se nao foi suficiente para me libertar das amarras financeiras, ao menos as afrouxou consideravelmente.

Em Lima, após dividir uma cama com um argentino (é melhor já fazer a minha defesa. Trata-se de algo absolutamente normal para viajantes mochileiros ou hippies), fui calorosamente acolhido pela familia do Minoru, amigo da Seicho-No-Ie, com quem pude abandonar o portunhol e conhecer uma das melhores coisas de um país, a culinária.

Adicionei mais fotos também, embora o conteúdo nao esteja tao extenso quanto da última vez.

Desejo-lhes uma boa votacao no domingo. E se me perguntarem em quem votaria, dou uma dica: é solteiro e nao tem filhos.


PS: desculpem os erros ortográficos ou a constante atuacao do auto-corretor do Word. Depois de ter descoberto que o blogspot pode dar tiuti, preferí digitar tudo no programa da MicroSoft.

PS2: nao precisam ler de baixo para cima. Seguem, em orden cronológica:

- Refugiados políticos bolivianos y Evasor de fronteras brasileño
- Evasión de Frontera (Ltda.);
- Machu Picchu: o caminho é a meta.

Refugiados políticos bolivianos y Evasor de fronteras brasileño ii

Rio Branco - Acre

Além de gastar muitos reais para atualizar o blog, aproveitei meu tempo em Rio Branco para obter informaçoes sobre a situaçao em Cobija/Bolívia, onde aconteceram os conflitos entre camponeses pró-Evo e os opositores pertencentes ao governo local.
Ao menos, graças ao Cuartel General da Policía Militar e a Sandrinha, funcionária da PM que me acolheu em sua casa, nao precisei me preocupar com hospedagem.
Embora eu nao tenha saído muito pela cidade, algunas coisas valem destacar (tô usando a idéia dos bullet points):

1 – A espessa fumaça das queimadas que cobria a cidade as vezes de manha a tarde;

2 – As grandes construçoes (Palácio de Governo, Ponte sobre o Rio Acre) contrastadas com o fato de nao haver água tratada em boa parte, se nao forem todas, das torneiras parecem ser uma tentativa de afirmacao de uma capital (talvez de um prefeito?) complexada.

3 – Tacacá: sem dúvida a coisa mais estranha que já comi. Feito com tucupi (tipo um caldo da mandioca), camarao, goma (tambem derivado da mandioca) e jambu (um mato que debe ter alguma propriedade anestesica). Parece anestesiar a boca, como se bochechassemos xilocaina… Sendo menos exagerado, como se bebessemos Coca-Cola depois de escovar os dentes.

4 – Angelim: a pesar de as pesquisas indicarem sua vitoria no primeiro turno, sua campanha infestava a cidade com bandeiras e o irritante barullo de apitos.

5 – Kibe de macaxeira: como um bolinho de carne com a massa feita de mandioca. Sensacional!

Brasiléia – Acre

Naturalmente, as pessoas rio-branquenses me aconselhavam a nao ir a Bolivia, ainda mais por Cobija, a pesar de terem se passado quase dez dias desde o conflito.
Tentei me calcar em fatos concretos e decidi ir a Brasiléia, fronteira com Cobija, pelos seguintes motivos:

- A Folha de SP dos dias 18 e 19 de setembro diziam que os dialógos entre governo federal e oposicao estavam caminhando positivamente;
- A namorada de um soldado da PM, Felipe, tinha ido a Cobija visitar um parente e informara que estava tudo voltando ao normal;
- O noticiário local de Rio Branco mostrava as ruas de Cobija movimentadas e as lojas abertas:
- Sabrina, uma señora vendedora de muambas, havia acabado de chegar de lá e garantiu que as coisas estavam seguras;
- Nao queria mudar meu programa, que previa Bolivia como proximo destino.

Cheguei em Brasileia por volta das 15h30 de sábado. Caminhando um pouco, vi um grupo de bolivianos conversando na porta de um hotel que estaba cheio de refugiados políticos. Falavam sobre o novo prefeito interino de Pando, um militar nomeado por Evo, e nao me deram muita bola.
Enquanto caminhava a procura dos abrigos para refugiados mantidos pelo governo federal brasileiro, um helicóptero de nosso Exercito sobrevoava a regiao. Tentei nao sair perguntando a todo mundo em quais lugares estavam concentrados os refugiados, mas por sorte perguntei a um senhor quando estaba exatamente a frente de um. Tratava-se de uma igreja evangelica que mantinha 23 pessoas, sendo tres delas crianças. Praticamente todos trabalhavam no governo de Pando.
Conversei com o pastor da igreja e este me autorizou a passar a noite lá. Os refugiados me ofereceram comida, agua, cobertores para preparar meu colchao (todos dormiam no chao, nao havia camas), e logo começaram a me explicar o que havia acontecido, ou melhor, a justificar sua inocencia. Como ja dizia o velho samba, a razao esta sempre com dois lados, e nao quis me aprofundar nestas explicacoes de quem comecou a atirar, ou de quem armou emboscada para quem (a pesar de ter conviccao de que tenha sido o lado oposicionista).
Logo de cara, me surpreendi com os celulares que nao paravam. Sempre havia alguem a receber ou a fazer ligacao. Alem disto, a noite seria tranquila, com direito a culto, refrigerante e bolo na igreja se nao fosse por uma caminhonete vermelha que deixou as mulheres apavoradas e os homens alertas pelas ruas. A policía brasileira deteve o motorista, boliviano, que estaba com uma lista contendo nomes de refugiados e uma camera fotográfica.
A crianca mais nova que estaba conozco tinha tres anos de idade e era filha de um político de Cobija. Muito provavelmente nao corria riscos em sua cidade natal, mas nao quería ficar longe do pai com medo de perde-lo. Sua mae me disse que ela falava, ciente da situacao, “Nao quero que meu pai morra.”
A madrugada passou tranquila, embora tevê e luz se mantivessem acesas e houvesse uma vigilia constante de ao menos um homem que se mantinha sempre acordado.
No domingo, fui pessoalmente verificar a situacao em Cobija. A fronteira estaba aberta, mas o Exercito brasileiro registrava o nome e o numero do documento de identidade de todos que entravam no país. Do lado boliviano, nao solicitavam nada. Nas ruas havia grande movimiento de carros e motos, e os militares estavam por toda a parte. A pesar de as coisas parecerem ter voltado ao normal, as companhias aéreas ainda nao estavam operando.
Como nao havia onibus para La Paz naquele dia, passei mais uma noite na igreja e pude acompanhar a visita que uma familia – esposa e quatro filhos - fez a um refugiado político. Foi doloroso ver um pai boliviano olhar seus filhos voltando para casa pela ponte que separa os dois paises.
Nesta noite, embora o Exercito nao tenha cumprido sua promessa de transferir todos para um outro abrigo por conta do incidente da caminhonete, uma equipe medica atendeu os bolivianos e outra pessoa, boliviana, trouxe agasalhos para todos os refugiados. Alem disso, as refeicoes sempre eran bem fartas, sobrando comida para mim. Antes de dormir, vimos pela tevé a marcha de trabalhadores rurais pró-Evo que se deslocavam de Cochabamba até Santa Cruz.

Na segunda-feira, deixei o refugio bem cedo para pegar o onibus que sairia as 8h de Cobija. Seriam aproximadamente 48 horas de viagem num onibus off road (definitivamente, nao e como aqueles onibus da Andorinha. Tem o chassi mais elevado e apenas um par de rodas traseiros ao inves de dois) que parecía uma enorme axila marrom, por conta do cheiro e da sujeira de terra, muita terra.





Por volta das 10h passamos por Porvenir, onde aconteceram os conflitos que resultaram na morte de dezenas de campesinos. No camino havia os restos de dois caminhoes incendiados, alem de outro com buracos de tiro em seu vidro dianteiro.
A viagem se deu, 97.5% do tempo, em estradas de terra, e apesar dos pulos por conta dos buracos e dos frios na barriga que lembravam uma montanha-russa velha, o meu esforço para ler nao se comparava a aventura de Greg Mortenson na Cordilheira do Karakoram para construir escolas no Norte do Paquistao (A terceira xicara cha, Ediouro).
Recortando uma densa floresta tropical que as vezes assumia a feicao de pasto recem-formado, atravessamos tres ríos: dois com balsas puxadas por barcos e uma, com poucos metros de largura, puxada por homens (vejam a foto para entender).
Preferi economizar dinheiro e, ao inves de comprar agua mineral, comprei agua de procedencia duvidosa que me deu, as 4 horas da matina, a maior prova do “Se vira nos 30” que meu esfincter ja teve. Como nao havia banheiro no onibus, dei sorte de ele parar exatamente na hora em que minhas vísceras comecaram a agonizar. Peguei minha lanterna e passei, cuidadosamente, por cima das criancas que dormiam no corredor do onibus. Se nao bastasse, o motorista nao me esperou voltar. Vi o onibus partindo e corri, ainda sem fechar a calca, pensando: “Literalmente, que merda!”.
Gracas as pilulas – nao sei o que sao – que ganhei no CONPLEI, as quais fazem voce passar da maior diarreia para a mais dura prisao de ventre (uma pilula igual a um boi), pude aguentar as 20h restantes da viagem.

Em Yucuno, apos gastar mais um peso boliviano para me certificar de que o “boi” ainda estava na barriga (“agua barata, banheiro caro”), fui convidado para almoçar por dois senhores de Porvenir e um joven de Cobija. Um destes senhores havia estado do lado dos campesinos durante o conflito e fugiu para nao ser ferido, segundo ele. Foi estranho estar ao lado de pessoas tao gentis (se me convidam para comer, sao os mais nobres do mundo) que haviam se enfrentado em lados opostos sem imaginar as atrocidades que ocorreram naquela infeliz manha de 11 de setembro (imaginar estas coisas a mesa é um pecado).
Depois do almoco comecamos a viagem pelas montanhas dos Yungas. Foram horas e horas subindo e descendo cerros por uma pessima estrada de terra que as vezes se estreitava a ponto de ficarmos a beira de um precipio de algumas dezenas de metros. A noite, como a altitude passou a se elevar, a temperatura deve ter caído abaixo dos 10ºC.





Comecando a subir a Montanha dos Yungas




Ja do lado de dentro do onibus, exceto o frio, as coisas nao mudaram muito: cheiro forte de sobaco (mas acho que ja estaba assimilando) e, de tempos em tempos, de cocô do meu companheiro de viagem de um ano, Dominique, que se sentava no banco atrás do meu; pessoas entediadas tentando dormir e pulando de suas poltronas por conta dos buracos…









Dominique, o "Chino", quebrava a monotonia do meu olfato




Em Caranavi, Guillermo, o rapaz que trabalhava em Cobija e me convidara para almoçar, alcançou o patamar mais elevado de nobreza comigo ao me convidar para tomar cerveja. Em um bar de 5 x 8, com luz negra e algumas daquelas toalhas com imagens de mulheres semi-nuas que se encontram no Brás, o boteco tinha mais ar de puteiro, a pesar de haver uma única mulher, a qual nos atendía, e duas meninas com menos de dez anos de idade.

Por volta das 6h da manha, apos as diversas tentativas de me aquecer com meu saco de dormir, chegamos em Villa Fatima, um bairro de La Paz. Como Guillermo viajaría ate Potosi somente a noite, passamos o dia juntos.

Alguma coisa me atrai aos grandes mercados ou centros comerciais, e é verdade que realmente eu aprecio observar a sua loucura característica e, muitas vezes, acabo ficando em hoteizinhos baratos da regiao. Nao foi diferente em La Paz.
Logo apos sair do terminal de onibus, Guillermo e eu fomos parar na 25 de Março pacenha com suas vans japonesas a correrem em busca de passageiros, senhoras a venderem todo tipo de coisa imaginavel (feto de lhama a papel higienico) no meio da rua, carregadores a transportar dezenas de quilos nas costas… Tudo isto me fez pensar que deveria haver algum lugar que fizesse meu tipo.
Assim, durante a procura, descobri que ha pelo menos tres tipos de quarto:

1 – Alojamiento acima de um bar ou sauna: seria o nosso motel, mas bem mais funcional, porque só te oferecem a cama (nem ducha tem). Varia de 15 a 20 bolivianos (R$4 a R$6).

2 – Alojamiento para vendedores: tem diversos tipos de quarto, mas o mais barato é coletivo. 15 bolivianos (+/-R$4.50)

3 – Hostal, Hotel, Residencial: tem instalaçoes melhores. Variam de 40Bs a 50Bs (R$11 a R$14).

Fiquei no Alojamiento Buenos Aires, tipo 2, que tem banheiros coletivos, ducha fría e quarto para tres pessoas. Além de asegurar a ausencia de ruidos (gemidos…) noturnos, coisa que o do tipo 1 nao poderia oferecer.


25 de Marco Paceña, rua do meu alojamiento


Se dizer que uma coisa sò se ve na teve é sinal de algo espantoso, as vezes ruim, dizer que so se havia visto tal coisa no Chaves é pior ainda. Tive esta constataçao ao ver as tendinhas de suco nas ruas bolivianas. É necessário ter muito cuidado ao escolher o balde, porque voce pode tomar o suco de tamarindo, com cara de laranja e gosto de limao… Fora o risco de ingerir a agua para lavar os copos.

Tambem foi na Bolivia que obtive a resposta para a pregunta que me fazia no Japao ao ver toda aquela preocupacao com TQM (Total Quality Management). Perguntava a mim mesmo o que faziam com todo aquele refugo. Vi a resposta rodando nas ruas bolivianas. A quantidade de Suzukis, Daihatsus, Nissans, Mitsubishis de segunda mao que circulam nas calles so nao te fazem pensar que se esta na terra do sol nascente por conta da peca que esta entre o volante e o banco.

Também parece existir uma outra tecnología boliviana adicionada ao veículo japonés que aciona a buzina ao menor toque do freio. Assim, se o farol fecha, a buzina toca; se o pedestre atravessa na faixa, bibi; se a kombi ou taxista acha que voce é um potencial cliente, fom-fom…

Em algumas zonas mais afastadas do centro, a que eu estava, por exemplo, os faróis foram desligados e substituídos por guardas de transito. Parece-me que os motoristas sao daltónicos… ou preferem sentir a emocao de atravessar a toda velocidade o cruzamento. Mas, justica seja feita, talvez o transito de La Paz seja tao caótico porque ha muitos veiculos de transporte de passageiros (taxis, kombis, onibus). Assim, considerando que, como em qualquer outra grande capital latino-amercina, os “profissionais do transito” sao os que dirigem pior, me resignei e só pude pensar: “Que venham os riquixás indianos, as lambretinhas vietnamitas! Eu estou pronto!”.

Durante o dia que passei com Guillermo, fiquei impressionado com sua vaidade. Comprou uma camisa de manga comprida e se recusava a continuar a usar uma calça suja (na opiniao dele, nao na minha), adquirindo uma nova. Ele fez uma cara de espanto quanto soube que eu usava a mesma calça encardida ha mais de 120 dias, mas nao mudou de idéia.

Antes de viajar, fez questao de se banhar, colocar as roupas novas e engraxar os sapatos. Apenas no final do dia ele me confessou que ia a Potosi visitar sua mae enferma, e a minha ideia de vaidade se esvaneceu. Por ser um rapaz que saira de casa para morar a milhares de quilómetros de distancia, era mais que natural que desejasse estar apresentavel a quem mais lhe desejava sucesso.

Guillermo

EVASIÓN DE FRONTERA (Ltda.)

As vezes, voces podem pensar que eu censuro partes que poderao me constranger, como idiotices, erros. Embora eu nao quisesse que isto entrasse em minha biografia, vou lhes contar uma coisa que espero que seja motivo de uma boa chacota etílica no futuro, a pesar de a indignacao ter turvado minha capacidade de projetar este fato como algo positivo.

Estava eu satisfeito em La Paz por conta de, pela primeira vez, ter a sensacao do progresso capitalista que me permite consumir sem a preocupacao de bater a cabeca no meu teto orcamentário, quando entrei no Departamento de Imigracao boliviano para pegar um “visto de recordacao” (para mim isto existe).

Somente depois de ser atendido pelo funcionario me dei conta da adaptacao fisiológica inconsciente pela qual meu organismo havia pasado. A mania de querer as coisas mais difíceis, desafiadoras, havia sido assimilada de tal forma pelo meu corpo que meu cerebro nao reagia mais a escolhas absurdas, idiotas… Era como se, na ausencia de emocoes externas, meus atos convergissem, ainda que estúpidamente, para a satisfacao desta necessidade.

Sem mais tergiversacoes, o fato é que eu havia entrado no país de maneira ilegal e deveria pagar uma multa de 280 bolivianos para nao ser deportado. Fiquei sentado no banco de espera por quase uma hora para restabelecer meus batimentos cardíacos. Foi o tempo de eu condenar qualquer tentativa ilícita de me safar (um funcionario tentava flertar comigo a grana da cerveja) e de vislumbrar penitencias a altura da burrada.

Se eu fosse um mexicano desempregado tentando ganhar a vida nos EUA, uma afega fugindo do fundamelismo taliba, ou até mesmo um boliviano perdido no Acre por conta do conflito político em Cobija, nao coraria diante da pregunta (a mesma que me fiz e que me farao) feita pela moca em que fui pagar a multa:
“¿Mas por qué evasión de frontera?”

Vou emoldurar e pregar na parede


Como explicar o raciocinio de uma decisao errada é mais difícil do que de uma correta, prefiro contar outra coisa idiota para que esquecam a estupidez anterior.

Já de volta ao alojamento repleto de vendedores, pensei comigo mesmo: “voce está no amago comercial de La Paz. Pessoas viajam centenas de quilómetros para levar mercadorías daqui e vender em suas ciudades. Deve haver alguma coisa que voce possa vender!”.

Antes de sair a procura de alguma coisa barata e nao volumosa fui conversar com Jose, funcionario do local, que me disse que era possível fazer algum dinheiro, a pesar de eu estar me dirigindo a uma regiao de frontera com o Peru. De qualquer maneira, sua idéia de me focar nos turistas me animou.

Assim, ao ver os Stickers, nao hesitei em inaugurar o negócio EVASIÓN DE FRONTERA Ltda., com o capital inicial de 75Bs (um pouco mais de 10 dólares) para a aquisacao de adesivos da Walt Disney, Puka-Puka, Hello Kitty, Vila Sésamo. Segue o briefing da empresa:

Missao: promover a felicidade dos gringos por meio do intercambio cultural proveniente dos Stickers com temas americanos, japoneses, brasileiros e bolivianos.

Visao: ser o melhor brasileiro, que pagou multa por evasao de fronteira da Bolivia, vendedor de Stickers da América do Sul.

Objetivos: fazer 15 dólares para amenizar a penitencia de reducao em 50% do orcamento diario.

Indicador de desempenho: dólares/dia.

Meta: 3,5 dólares/dia.

Balelas administrativas a parte, as quais podem parecer que o curso de administracao me serviu para algo mais além de me garantir uma cela especial (tá legal, é verdade que aprendi a usar a 12c também), o mais importante é que pude botar em prática um conceito financeiro muito bem lembrado pelo Allan (sempre instigando meu espírito) que deixaria profesores de financas orgulhosos: na ausencia de capital de giro, antes de recorrer a empréstimos a juros, é melhor atrasar o salário dos empregados (atrasei o soldo de meu único funcionario!).

PARENTESIS

Antes de continuar a falar de negocios, cabe um paresentesis. Na noite em que aconteceram estes fatos, um senhor se instalou em meu quarto. Era Davi, um campesino de Caranavi (Yunga), 38 anos, cinco filhos.
Ele voltava da caminhada de nove días dos manifestantes pró-Evo que se deslocaram de Cochabamba a Santa Cruz (principal Departamento opositor). Seus pés estavam cheio de feridas e ele caminhava vagarosamente apesar de ter tomando um “calmante” para aliviar a dor.
Conversamos animadamente até o primeiro pegar no sono. Eu quería saber sobre sua vida e as razoes de seu apoio a Evo; ele, sobre a cultura japonesa e os métodos para nao engordar.
Davi é um dos muitos yungueños que vive da platacao de coca nas montanhas andinas (cabe dizer que se trata, assim como no Perú, de producao legal). Ganha uma média de 40 soles (aprox. U$S5,00) por dia e desfruta de seu tempo livre tomando um “trago” que vai desde a venerada cerveja La Paceña, a álcool de cozinha misturado com agua.
Na televisao, em Brasiléia, as imagens da caminhada pró-Evo mostravam apenas dois homens armados. Segundo Davi, assim como ele, outros tantos campesinos guardavam armas em suas mochilas. Felizmente, o conflito contra os opositores se restringiu a xingamentos feitos por ambos os lados. Neste momento se ve como um conflito político pode descambar para um conflito racial. Entre palavroes como “mierda” e “carajo”, figurava a palabra “indio” (nao fui a Santa Cruz, mas outro viajante me disse que viu grafites com a imagen de Evo e a frase, “Indio de mierda”).
Basicamente, disse que é a favor do presidente porque ele quer acabar com os grandes latifundios, tirando terra de quem tem “em excesso”, para da-la a quem nao tem. Este tipo de discurso social-justiceiro é o que mais me assusta, principalmente quando feito pelo governo, que inebria as massas e se utiliza de aparentes meios democráticos para se perpetuar no poder (mais sobre isto no Equador). Nao tenho duvida de que a guerra civil que quase explodiu na Bolívia é culpa, em primeiro lugar, de Evo Morales.
Naquele mesmo dia, pela manha, havia ido ao Museu da Coca. Estava curioso para saber se em seu povoado havia “posos” (locais para a producao de cocaina), dado que as folhas de Cochabamba é que sao as mais usadas para fins ilegais (Evo iniciou sua vida política lá. Vejam o filme Evo Pueblo para saber mais nao somente sobre a vida sindical do atual presidente da Bolívia, mas também sobre o cultivo e uso da adorada folha de coca pelos andinos). A oportunidade de lhe perguntar aconteceu quando ele me inquiriu se já havia usado a droga. Respondi que nao e lhe perguntei o mesmo. Ele me disse que sim e que a droga é muito barata na regiao onde vive por ser produzida lá mesmo.
Antes de dormir, em relacao a sua preocupacao de nao engordar, dei o mesmo conselho que eu havia recebido em Yuba: “concentre-se nos destilados”, mas se por um lado tomar álcool de cozinha com agua nao faca engordar, por outro, os prejuizos para a saúde nao seriam piores do que a tradicional cerveja? Talvez seria melhor se eu tivesse dito para nao se preocupar com a barriga… ou consola-lo dizendo que o amor de sua esposa transcende aspectos físicos…




Davi, acabando de chegar da Marcha Pro-Evo



FECHA PARENTESIS

Início das operacoes

No onibus que peguei no dia seguinte para ir a Copacabana, Lago Titicaca, percebi que era a chande de dar início as atividades da empresa quando, numa parada, senhoras e mocos entoaram: “Jugos, jugos; naranjas, naranjas; pollo frito, pollo frito.” Ao coro afinado, juntou-se um acanhado “stickers, stickers”. Fiquei feliz quando a última pessoa a quem ofereci meu produto se prontificou a gastar 5Bs! Estava feita a venda inaugural, ainda por cima para um nicho de mercado diferente do que previa.


Turnaround

Finalmente em Copacabana, percebi o quanto havia me precipado em relacao a definicao do publico-alvo da empresa e fiz um dos maiores turnarounds do setor.
Sem a análise de mercado devida, julguei que o público-alvo mais receptivo seriam os estrangeiros, mas, depois de algumas tentativas, percebi que nem se eu dissesse I am starving, conseguiría sacar alguma coisa daqueles seres idolatrados e endeusados já tao assediados por locais com “Cómprame pan”, “Cómprame trucha”…

Hospedei-me em um alojamiento por 10soles e chorei pelo café-da-manha, uma xícara de café e um pao. A pesar de Dona Simona, uma senhora com mais de 80anos, ser severa nos negocios, ficamos muito amigos e ela até se tornou a primeira chola a comprar meus stickers.



Señora Simona



Aos sábados e domingos a cidade ficava cheia de turistas, bolivianos e gringos. Os primeiros, vinham para ceremonias religiosas realizadas na igreja – casamentos, missas, benzimento de veículos novos. Os segundos, para visitar as Ilhas do Sol e da Lua.

Tendo já adaptado os negocios, dedicava umas tres horas do dia para oferecer Stickers aos próprios vendedores locais. A mudanca de estratégia se revelou profícua quando, após dois días de venda, já havia recuperado o valor investido.

Oferecer stickers para os vendedores locais é ótimo porque:

1 – É uma boa protecao para o assédio. Se a pessoa fica a insistir, por exemplo, “Hay almuerzo completo”, “Cómprame postales”, eu revido, “Hay stickers” ou “Cómprame stickers”.

2 – Quando se quer comprar algo de um vendedor local, mostrar que se esta vendendo stickers é uma boa maneira de dizer: “eu nao sou um gringo cheio da grana”, o que favorece a negociao futura.

3 – Se pode conhecer os locais e fazer amizade. Foi o que ocorreu com Lucas, um menino de quatro anos, filho de uma vendedora de artesanato.
Eu estava vendendo stickers e pesquisando os precos dos gorros feitos com la de llama quando sua mae quis lhe comprar um sticker de abecedario (se soubesse, alias, havia comprado mais destes e menos de Smiles, porque foi o modelo que se vendou mais rapidamente). Lucas logo comecou a resmungar e percebi que isto ativara seu complexo de Édipo. Disse-lhe para nao ter medo de ir a escola, de se separar de sua mae, e resolvi presentea-lo com o sticker. Aí, pronto, fiz explodir seu complexo: o menino comecou a chorar copiosamente e a tentar rasagar o presente.
Achei melhor ganhar dois bolivianos a ver um desperdício e peguei de volta o produto. Mais tarde, quando passei para comprar meu gorro, o jovenzinho me emocionou ao querer andar comigo para me ajudar nas vendas. No final, ele vendeu um boliviano de mercadoría (como estavamos bem de capital de giro, paguei o salario devido).




Lucas, seu soldo e um sticker da alegria



4 – Se pode fazer escambo: papel higienico, pao, artesanato, almoco por stickers…

E mesmo para se fazer turismo era bom sempre ter em mao os stickers da alegría. Na Ilha do Sol, tudo era motivo para tirar dinheiro dos gringos. Assim, se voce sacava uma foto de uma paisagem e houvesse uma senhora, crianca ou llama na mesma direcao para o qual se apontara a camera, logo se ouvia: “Hay de pagar propina (gorjeta)”.
A pior coisa era quando chegavamos em alguma ruina, nítidamente sem nenhum tipo de manutencao, e uma senhora vinha com mesinha, banquinho e boleto cobrar entrada na saída. Ao invés de discutir com a chola que era um absurdo o que estava fazendo, saquei os stickers e falei “Mira, yo también necesito hacer plata”. E bastou para a senhora deixar eu ir embora.

No domingo de manha, sai cedo para cruzar a fronteira a pé (11 km). Dona Simona, a pesar de nao me deixar tomar banho naquele dia, disse que banho é apenas uma vez por hospedagem, quería me dar 2Bs para que eu pegasse uma kombi. Agradeci com um abraco e dei início a minha caminhada cruzando a zona rural de Copacabana. Passei por lindas planicies onde se cultivavam tubérculos e se criavam ovelhas, vacas e burros.



Zona rural de Copacabana


Tres horas depois, cheguei em Khasani, peguei meu selo de saída e entrei em Yunguyo, Perú. A idéia era chegar até o centro da cidade para se viajar em caminhao até Puno, a 130 km de lá.

Na caminhada, muitos triciclos buzinavam ou paravam procurando corrida, e por isto nao dei muita atencao quando uma van encostou ao meu lado e seu motorista me perguntou para aonde ia. Irritado, disse que nao quería seus servicos e, por bondade, o senhor insistiu e acabou me levando gratuitamente ate Puno. Isto me impressionou muito, porque na Bolivia era impossivel pegar carona na acepcao correta da palabra, ou seja, toda corrida era paga.

No caminho, conversamos sobre seus negocios, tem uma agencia de turismo em Puno, sobre o contrabando que rola entre os dois países – Bolívia e Perú, e sobre o “Chino” mais conhecido do país, Fujimori, que, a pesar de ter “metido la pata” (ter se dado mal no final [de seu governo]), é lembrado com saudades por muitos cidadaos peruanos.


Machu Picchu: o caminho é a meta











Cusco é uma cidade agradável, e se percebe o quanto a grana advém do turismo nao apenas pelos hoteis, restaurantes e cafés caríssimos, mas também pelas jaquetas da The North Face e pelas drogas oferecidas em varios idiomas nas ruas com albergues específicos para japoneses e israelitas, por exemplo.
Fiquei num hostel um pouco mais afastado do centro junto com alguns hippies. Ali, conheci Carlota e Lipo, española e venezuelano. Viajam juntos há mais de tres anos e estiverem em lugares como Camboja e Polinésia Francesa somente fazendo e vendendo artesanato (pulseiras e colares).
Fiquei impressionado com este fato e Carlota comecou a enumerar as pessoas que conhecera viajando pelo que faziam para ganhar dinheiro: “tem muita gente que paga a viagem fazendo trancas; conheci um japonés que fazia coisas absurdas com uma bola de futebol, ele poderia viajar assim, com certeza; tem outros que viajam escrevendo nome em arroz…”. Aproveitei a deixa para completar, “tem gente que tá vendendo sticker”.
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Por dois días, juntei-me as vendedoras de marcianos (geladinhos), cantitas (pipoca) e juegos (jogos e brinquedos de crianca) na saida de um grande colégio de Cusco para vender meus stickers. Numa dessas ocasioes, uma menina me disse que os precos estavam muito altos. Antes que isso pudesse me constranger, pensei em como é maravilhoso o livre-mercado.
Depois de trabalhar um pouco, ia passear pela cidade, mas sempre com os sticker ao alcance, porque Cusco estava cheio de jovens que realizavam sua viagem de formatura do secundário (ensino médio). Assim, se por um lado eu nao sou um fenómeno no mundo inteiro como Barack Obama, por outro, meus olhos nao deixavam de ser puxados por conta de eu ser brasileiro e a tara étnica continuará ativa até eu chegar na China.
Assim, a maneira mais elegante que tinha para aproveitar a situacao, sem pedir diretamente dinheiro pelas fotos que as meninas de 17 anos queriam tirar comigo, era oferecendo os stickers.






Jovens da "Promo" com seus stickers apos pedirem fotos.



Já de volta ao hostel, durante a noite, quando já dormía, um escoces se alojou em meu quarto. O rapaz nao podía esperar ate a manha seguinte para me conhecer e falava mesmo dormindo. Das coisas que entendi daquilo que falava, deu para perceber que sua língua nativa era o ingles, porque era a que mais utilizava, e certamente havia estado no Brasil, porque ele soltou um “puta que pariu” entre os “It is nice” e “Ok”.
De fato, Andrew, o rapaz escoces, havia passado alguns meses em nosso país. Agora subia até Cartagena, Colombia, de onde quería pegar um veleiro para subir a América Central.
Lipo e Carlota, após brincarem quando perguntei sobre a possibilidade de se viajar em cargueiros, disseram-me que era bem difícil a menos que eu me tornasse a mocinha dos marinheiros, também falaram que era possível cruzar o Pacífico de veleiro. Apresentaram-me o fantástico findacrew.com (site que relaciona proprietários de veleiros com viajantes a procura de uma boa aventura), ao qual aderi rápidamente.
Nao sei se vai rolar, principalmente porque já recebi respostas negativas de proprietários de veleiros que vao a Austrália mas estao mais a procura de um romance platónico com uma bela joven do que de mais uma viagem no seu lar flutuante (que partam entao para sites de namoro, encontros! Estao no lugar errado!).
Antes de iniciar minha viagem pela suposta “rota alternativa para Machu Picchu” (todos que nao tem U$S86 para ir e voltar de trem viajam por este caminho), preferí ter aulas de artesanato com Carlota a sair para vender stickers. Assim, aprendi quatro pontos e parti, lá pelas 16h, para comecar minha aventura rumo aquilo que de melhor esta preservado da cultura Inca.









Aula de artesanato com Carlota: Andrew, Jorge e eu.





O plano era:
1 – Viajar com caminhao – já havia negociado com um caminhoneiro – até Santa Maria. Previsao de viagem: sete a oito horas. Economia: 10 soles (o onibus custava 15 soles e levava cinco horas).
2 – Pagar uma kombi que me levasse até a estacao ferroviaria Hidroelétrica (10 a 15 soles).
3 – Caminhar pela linha férrea até Aguas Calientes (Machu Picchu). 8km, gasto zero.
4 – Dar um jeito para entrar nas ruínas.
Havia combinado com Ricardo, caminhoneiro, que ajudaria a carregar seu caminhao e lhe daría mais cinco soles em troca de uma carona ate Santa Maria. Cheguei as 17h, horario combinado, e acabei trabalhando para um outro caminhoneiro que antes nao quería me levar por julgar que eu tinha dinheiro para ir de onibus e nao estava disposto a fazer forca.
Carregamos sacos com garrafas pets, racao de chancho (porco), butijoes de gás, pedacos de vaca muito mal embrulhados, fardos com frangos congelados, placas metalicas… Tres horas depois, quando ja haviamos terminado de carregar o caminhao, ajudei a subir as ultimas “encomendas”: tres senhoras que voltavam para suas casas depois de venderem frutas em Cusco e uma senhora que levava as racoes de chancho para a sua irma.
Resolvi jantar depois de o senhor Elber, o caminhoneiro que nao tinha ido com a minha cara, me dizer que nao me cobraría pela viagem. Quando voltei o caminhao ja havia sido fechado e coberto com lona, mas havia um buraco por onde podía entrar. Sem enxergar absolutamente nada, instalei-me cuidadosamente, para nao golpear as senhoras, no único lugar possivel: em cima dos fardos de frango congelado.
Paramos por quarenta minutos em um posto de gasolina e, perdendo calor para aqueles pollos, comecei a pensar em alguma forma menos congelante de passar as próximas horas. Sabia que a parte mais fría seria na madrugada, quando chegassemos numa serra (disseram que se chama Porto Suarez) com posibilidades de neve, e julguei que seria melhor arrumar uma maneira de armar minha rede garimpeiro, adquirida em Rio Branco.










Minha rede garimpeiro armada na carroceria do caminhao.





Apesar da sua aparente fragilidade (além de ser de tecido bem fino e costura simples, estéticamente é de cor azul-bebe com coracoezinhos – a opcao mais leve e barata que tinha na ocasiao da compra), a rede aguentou os pulos que dava por conta da estrada sem pavimentacao. Razoavelmente bem acomodado, sentí-me a vontade para tirar as botas por conta do forte cheiro da racao de porco e comecei a pensar em algebra aplicada: se meu corpo é uma parábola e a superficie formada pelos fardos com frango for o eixo das abscissas, entao o delta desta equacao de segundo grau é igual a zero, porque há somente um ponto em que a parábola toca o eixo x: o ponto constituido pela minha bunda. Podem imaginar ou querem que eu desenhe (talvez desenhar seja melhor…)?
Como previsto, após a meia-noite nao podía mais aguentar o frio. Mesmo com o sleeping, minhas pernas congelavam, e eu acordava de tempos em tempos para esfregar minhas maos nelas antes de voltar a dormir. Ao menos imaginava que ja estavamos perto de Santa Maria, dado que a previsao era de sete horas de viagem.
O caminhao fazia paradas frequentemente – nao podíamos ver o porque – e as senhoras e eu só fomos perceber que uma delas durara horas quando ouvimos o cantar dos primeiros pássaros anunciando a alvorada. Logo as senhoras comecaram um coro em quechua - lingua indígena mais falada no Peru – dirigido ao motorista: Noka ispassa kawamanki! (Quando eu urinar, vou ficar melhor), ou Hariki Suyaishasunki! (Meu marido está esperando!). Foi nesta hora que aprendi a frase que, unida aos stickers, torna-se imbativel em qualquer negociacao: Warmick Wakaisha! A primeira vez que a usei foi em Cusco, ao regresar de Machu Picchu. Cinco paes saiam por um sole, e eu quería sete pelo mesmo preco. A senhora dizia que nao podía, que era o preco normal para todos. Até que soltei, “Señora, warmick wakaisha!”. Ela olhou para sua colega e disse, “Este joven sabe hacer negocio”. Tudo porque aprendi a dizer em quechua: “Minha mulher está chorando [a me esperar em casa].”




Companheiras de viagem.



As senhoras pensavam que o motorista havia parado para dormir e tentavam acordá-lo para apressar a viagem. Muito prontamente o senhor gritou que descessem para urinar. E ai vimos a fila de veiculos que se formava descendo a serra. Fui conferir o que havia acontecido, passando por caminhoes e onibus com pessoas ainda dormindo, e duzentos metros a frente me deparei com um amontoado de pedras no meio da pista devido a um deslizamento gerado pela forte chuva da madrugada.




Contei mais ou menos 50 pessoas trabalhando para formar um caminho pelo qual os veiculos pudessem passar, e outras 50 paradas olhando. Juntei-me as que trabalhavam e comecei a retirar algumas pedras. O fato de eu ter caído e rolado no chao (nas pedras) nao foi o bastante para distrair ou desanimar os demais, que trabalhavam e incentivavam os que estavam a observar. Foi alentador quando um grupo de 20 homens se juntou a nós.
Recordo-me de que no início de uma aula de Macroeconomia o Ferrari, amigo da GV, me mostrou uns vídeos de um rali do qual participara no final de semana em Minas Gerais. Ao ver a adrenalina dos jippies passando por caminhos bizarros, pensei: “Preciso fazer isto um dia.” Acho que a sensacao que tive ao ver os onibus e caminhoes passarem por aquele monte de pedras nao foi muito diferente da dele e nao me sentiría mal de riscar esta experiencia da minha lista de 100 coisas que tenho de fazer antes de morrer.
Um motorista de onibus corajoso se prontificou a ser o primeiro. Tomou distancia, acelerou… e queimou pneu. Homens ficavam em torno do caminho para verificar os ajustes necessários. Após rearranjarem as pedras, o mesmo onibus tentou novamente: tomou distancia, acelerou, passou pela inclinacao da subida, atravessou a correnteza da agua da chuva que ainda descia a serra, bateu o chassi na descida… As criancas, um pouco menos timidas que os adultos, pediam aplausos… Eu nao me contive e gritei: ¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡uhuuuuuuuuuuuuuu!!!!!!!!!!!!!!!!!
Outros deslizamentos haviam comprometido a estrada, mas nenhum como aquele. Seu Elber os atravessou sem muita dificuldade, e prosseguimos a viagem com quatro horas de atraso.
Por volta das 8h30, paramos para desayunar. Fui convidado por Seu Elber a comer cau-cau. Um senhor me trouxe um prato com arroz, batatas cozidas e uma carne branca picada que logo reconheci. Enquanto devorava a comida, recordei-me de que minha cara se contorcera como a Daiane Santos a fazer o salto duplo twist carpado quando comi pela primeira vez a, elegantemente denominada, dobradinha, ou seja, a famosa buchada. A pancita de vaca estava deliciosa e se tornou um dos meus pratos preferidos no Peru e no Equador (aquí se chama guatita).
Por volta das 10h30 cheguei em Santa Maria. Nao havia mais kombis que iam a Santa Tereza ou a hidroelétrica, mas arrumei uma “carona” (por 10 soles) com um funcionario desta última e cruzei o perigoso caminho de pedras, barrancos e desfiladeiros que me levaría a Machu Picchu numa Hilux com ar-condicionado.
Ao meio-dia comecei a caminhada pela linha férrea. Menos de trinta minutos depois, me deparei com dois homens e uma mulher. O rapaz mais jovem me perguntou: “Can you take a picture?”, respondi que sim e emendei, “Where are you from?”, ele disse, “Brazil”, finalizei, “Eu também!”.



Brasileiros que conheci na linha fèrrea que leva a Machu Picchu.



Depois de conhecer Elvira e os xarás Marcos, caminhamos juntos por mais duas horas e meia até Águas Calientes, cidade mais próxima das ruínas de Machu Picchu. Separamo-nos logo na entrada da cidade e fui procurar alguma hospedagem barata para ficar.
A cidade é bem pequeña e os únicos veiculos que possui sao os micro-onibus, os quais chegaram de trem, que levam os turistas até as ruínas. Ainda assim, rola muita grana em Águas Calientes por conta do turismo (depois da votacao virtual das Sete Maravilhas do Mundo, parece que milhares de gringos abonados limitaram seu escopo de opcoes turisticas).
Entrei no primeiro Hostal que vi, Hostal El Inka, e perguntei quanto estava a cama mais barata. Ao ouvir 30 soles, saquei meus Stickers da alegría e assim comecamos a conversar. Sai de la direto para a estacao de trem com uma cama, uma ducha fría, direito a tres refeicoes ao dia e um trabalho: “promotor” do hostel.
Meu servico era “ralar”, isto é, levar, turistas para o albergue. Assim, ficava na saída da estacao convencendo os gringos a se hospedarem no El Inka. Perguntaram-me se eu havia sido convidado a trabalhar lá tao rápidamente por conta de falar (o mais correto seria arranhar no…) japonés, español, ingles e portugués. Nao hesitei em responder que, muito provavelmente, foi porque falei em castellano uma frase: “viajé en camión sobre pollos congelados”.

Amigas do Hostel El Inka


E, apesar de Aguas Calientes nao ser o tipo de cidade que mais me atrai (muitos turistas, coisas caras…), fiquei lá por tres noites por conta de ter criado lacos com os locais. Assim que me instalei no hostel, sai para “ralar” e conheci uns hippies que me deram dicas para entrar nas ruínas sem pagar os 40 dólares (um absurdo!) da entrada. Há duas opcoes:
1 – Saltar um muro escondido durante a madrugada e esperar amanecer.
2 – Esperar a doacao do ticket de algum pagante que sai por volta das 11h e entrar dizendo que havia saido para ir ao banheiro.
Entrei num enorme conflito moral e resolvi subir o Putucusi, montanha da qual se pode ver as ruínas, antes de tomar qualquer decisao. A subida é dura e se dá por escadarias inclinadas a quase 90 graus. Depois de uma hora e meia, cansado e molhado de suor, cheguei ao topo e tive certa frustacao em meu frenesí ao ver um garoto de dez anos lá (“só podía ter chegado de helicóptero!”, pensei). Jack havia subido o Putucusi com seu pai, John. Sairam dos EUA há algúns meses e viajariam (pai, mae e tres filhos) por quase um ano pelo mundo – iriam para o Japao depois do Peru.


Escadas que levam ao topo do Putucusi.



Fiquei sozinho no cume depois que eles se foram e, observando Machu Picchu, comecei a pensar se deveria entrar. Descartei a opcao de pagar, nao simplesmente porque era caro, mas porque ja havia gasto 40 dolares na Bolivia (Evasión de Frontera, lembram-se?). Por um lado, lembrei-me da emocao que Pablo Neruda tivera ao ver aquelas ruinas de perto ("Me sentí infinitamente pequeño en el centro de aquel ombligo de piedra, ombligo de un mundo deshabitado, mundo orgulloso y eminente, al que de algún modo yo pertenecía. Sentí que yo mismo había trabajado allí en alguna etapa lejana cavando surcos, alisando peñascos. Me sentí chileno, peruano, americano. Había encontrado en aquellas alturas difíciles, entre aquellas ruinas gloriosas y dispersas, una profesión de fe para la continuación de mi canto.") e isto me instigou a escolher uma das duas opcoes ilegais. Por outro, me pus a questionar a legitimidade deste ato com sua legalidade e pensei nos movimentos sociais que pecavam por seus métodos.
Me fiz aquela pregunta básica de gringo no estrangeiro com medo, mas vontade, de meter a mao no bolso – quando voce terá a oportunidade de estar tao perto de novo?, e, aliviadoramente, a resposta ficou dentro dos dez anos…
Sempre disse que o valor da viagem estava menos no destino e mais no caminho e, observando Machu Picchu do local mais próximo que havia conseguido chegar, achei que já havia sido coroado com a melhor experiencia.



O maior perto que cheguei das ruìnas.



Voltei ao albergue, transmiti minha resolucao as minhas companheiras de trabalho que estavam loucas para me ajudar a entrar, e fui a estacao ralar hóspedes. Por sorte, estava errado quanto ao fato de já ter obtido a melhor experiencia daquela empreitada a Machu Picchu, e conheci a Senhora Dora.
Ela veio em minha direcao oferecendo, “Chocolate cake, two dolares”. Nesta hora, nao tinha os stickers da alegría, mas estava com o cartao de visitas do hostel, “Mira, Señora, yo también estoy trabajando. Estoy ralando.” E foi o suficiente para ela me cortar um pedaco de bolo e dizer, “Te invito”. Acabamos ficando muito amigos (depois perceberia que ela desejava algo mais…).
Ela me convidou para conhecer sua pequeña tenda (comedor) acima do mercado central. Em um espaco de dois metros quadrados envoltos por um balcao, Dona Dora cozinhava desayuno, almoco e janta. Assim como ela, outras tantas senhoras possuíam seu comedor. Como havia tempo até o próximo trem chegar, me prontifiquei a lavar as loucas e a ajuda-la a fazer o almoco, o que fez com que nos conhecessemos melhor.
No comeco, nao entendía porque aquela senhora, solteira, com seus trinta e poucos anos e tres filhas, estava tao interessada em saber a minha ficha (perguntou se eu havia estudado, bebía, fumava…), mas depois da alegría com que ela me apresentou a uma de suas colegas, entendí tudo.
Minha mae costumava me repreender quando eu a abracava no ponto de onibus, por exemplo, mas eu nunca percebia os olhos inquisidores como aqueles que naquela hora de cebolas, panelas e tomates, estavam sobre mim a se perguntar: “quem é este joven com a Dona Dora?”. Por todos os lados, sentía que as suas colegas de trabalho estavam a me olhar… e nao se tratava de atracao pelos meus olhos puxados…
Aguas Calientes me impressionou pelo número de maes solteiras. Assim, Dona Dora se desdobra vendendo agua para os gringos desde as 4 da matina, servindo café-da-manha, almoco e janta para os locais, vendendo bolo na saida da estacao e cuidando de tres filhas sozinha.
Sempre que tinha um horario libre tentava ajuda-la em seus afazeres, o que lhe deixava muito contente. O que para mim era um passatempo, para ela era um romance… Tentava nao me importar, por exemplo, quando andavamos pela rua, eu carregando as suas sacolas, e ela respondia, para aqueles que perguntavam sobre mim, que eu era seu namorado.
Gracas a senhora, compensei os días que nao fazia uma refeicao decente: almocava e jantava duas vezes, nao simplesmente porque sou incapaz de recusar comida de graca, mas porque Dona Dora ficava tao feliz quanto minha mae ao me ver comer a refeicao que acabara de cozinhar.
Domingo, sua mae, sua filha mais nova de cinco anos e ela iriam visitar Machu Picchu. Como eu já havia lhe dito que nao havia subido as ruinas por conta do preco do ingresso, sugeriu-me que eu entrasse com elas como seu marido… A pesar de ser a opcao mais absurda e auto-denunciadora que tinha, pensei que se talvez falassemos que eramos primos, poderia rolar. Foi entao que percebi, condenando minhas ideias, o quao a serio estava levando aquilo que tinha como principal conselho da viagem, “tente ser o mais “local” possível!”. Esta opcao era tao ilegal quanto as outras que ja havia descartado, e, ainda pior, arrastaria cúmplices… Enfim, agradeci e disse que nao podía aceitar.

Mae de D. Dora, Dora e Quiarita


No domingo pela manha, desayunei com as tres: bolo de banana, chicha (bebida fermentada) de banana, pao com marmelada… Durante a refeicao, Dona Dora olhou para sua filha, Quiarita, e lhe perguntou o que achava da ideia de eu ser seu pai. Quase engasguei com o pao que mastigava… e so pude olhar para a pequeña e sorrir. Antes de partir, a pesar de Quiara nao ter respondido a pregunta de sua mae, Dona Dora me disse que nos casariamos quando eu voltasse.
Fiz o caminho de volta pela linha férra (aliás, meu tornozelo agradece imensamente pela doacao da bota da Timberland que meu amigo Minoru fez) em uma hora e meia pensando nas eleicoes paulistanas que estavam acontecendo: Kassab e Marta no segundo turno, anunciava o Data Folha de primeiro de outubro. Fantástico (refiro-me a Kassab, lógico)!
De volta a Cusco, renunciei a um convite para ir bailar salsa com umas gringas, fiquei na Internet acompanhando a apuracao - que virada! – e fui dormir pensando no segundo turno.
No dia seguinte, viajaría em direcao a Lima com Martin, um hippie argentino que havia trancado o curso de medicina para viajar até Cuba (claro que viajaba com a biografia de Che). Ele, inclusive, havia sido pego pela seguranca de Machu Picchu (fizera uso da opcao numero 1, isto é, saltara o muro), mas conseguiu se safar pagando meia (20 dólares).
Pela primeira vez estava com alguém que sabia ser tao pao-duro quanto eu, a pesar de ele se entregar mais aos desejos do paladar. Assim, nao tivemos vergonha de dividir a mesma cama para economizar gastos. Naquela noite, entendería a importancia da linguagem corporal, pois se um de nos percebesse que ambos estavamos para o lado de dentro da cama, logo viravamos para o lado de fora, nunca ficando com os corpos a convergir.
Depois de vendermos algumas pulseiras para senhoras com mais de cinquenta anos de idade, Martin pegou o onibus em direcao a fronteira com o Equador, avido por chegar na Venezuela, na qual se pode fazer muito dinheiro com artesanato.
Fiquei em Lima e resolvi visitar a tia do Minoru, amigo da Seicho, embora nao tivesse avisado previamente (tambem me impressiono com a minha cara de pau!). A pesar de nao me conhecerem, Silvia, Max, Elora e Gaby foram muito acolhedores, lembrando-me da hospitalidade que recebi dos meus parentes no Brasil.
Levaram-me para passear pelo incrível Shopping Larcomar, construido em um barranco a beira do mar, e pelos bairros Miraflores, das baladas, e Barranco, dos bares. Fui convidado para comer o melhor anchicucho - coracao de vaca assado - de Lima, o do restaurante El Tio Mário, e também pude conhecer o arroz chaufa de uma tradicional Chifa - restaurante chines (Lima é a cidade latino-americano com a maior quantidade de restaurantes chineses).

Elora, Gaby e Silvia (familia do Minoru)


Na sexta, fui ate a estacao de onibus Fiori, clandestina, para pegar um onibus ate Tumbes, muito próximo da fronteira com o Equador. A pesar de ter ouvido tao mal da estacao, que de fato nao é nada bonita e reúne inúmeros drogados a noite (nao fiquei para conferir, fiquem tranquilos), viajei nos assentos panorámicos e fiz uma das melhores viagens de onibus de ate entao (18 horas de viagem por U$S12).
Chegando em Tumbes, nao gostei da cidade e decidi ir direto a Aguas Verdes, fronteira com o Equador, que tao pouco possuia a calma que procurava encontrar. A coisa toda é uma bangunca, e a pesar de gostar de mercados, fiquei incomodado com aquele monte de vendedores, camelos, comedoros (tenda na qual se servem refeicoes) na rua ao lado do mal-cheiro das sarjetas, trombadinhas, triciclos…
Ao menos encontrei um local barato para me hospedar: a casa de Alejandro, um garoto de 14 anos que conheci enquanto caminhava na rua. Após ser assediado por inúmeros taxistas e motoristas de triciclos, que me fizeram pensar que estavam usando a estratégia petista de persuadir pela mentira (diziam para eu nao seguir meu rumo a pe porque havia muitos ladroes), resolvi acreditar no que disseram quando Alejandro me parou para dizer a mesma coisa. Aproveitei a bondade do joven e brinquei perguntando se ele nao tinha um sofá para alugar em sua casa. Coincidentemente, disse que sua mae alugava quartos.
Na casa de Alejandro, as paredes eram feitas de tijolos e bambus e o teto era constituído por telhas de aluminio. A casa possuía muitos quartos e pude me alojar por apenas 5 soles (U$S1,50). Logo cedo era acordado pelos gritos de sua mae, que dizia para ele se apressar para ir trabalhar carregando as bagagens dos passageiros que chegavam ao terminal de onibus. Embora estivesse bem acolhido na espacosa casa peruana, fui verificar a hospitalidade de seu país vizinho, que, pelo que sei, tem botado brasileiro para correr... A ver…

Familia de Alejandro