Thursday, January 29, 2009

Dahab - Egito: Mergulhando no blog

E la vamos nos de novo. Se me perguntassem qual e a maior dificuldade que tenho enfrentado diria que e a de ter disciplina.
E vejam so voces, mal comecei a escrever este relato e uma coreana veio me dizer: "Voce parece tao entediado. Precisa mergulhar!"Estou em Dahab, Egito, um dos melhores, e mais baratos, lugares do planeta para se conhecer o fundo do mar. Ja me decidi que seterminar estes posts logo, vou dar uma relaxada marinha.
Mas voltando ao que importa, nestes dois meses sem dar noticias estive no Egito e em Israel. E por ai ja se ve que nao estou cumprindomeu cronograma.
Alem disso, apesar de no Egito conseguir passar um dia com seis dolares, em Israel houve dias em que gastei quase 30. Portanto, meu orcamentotambem foi pra cucuia.
O que voces vao ler a seguir da uma boa nocao da impotancia que a viagem tem tido para mim, das licoes que a mestra, a estrada, tem meproporcionado, e das experiencias que tenho deixado passar.
Ate daqui dois meses! Agora eu vou la procurar o Nemo.

Agradecimentos

Nao posso comecar esta nova etapa da viagem sem registrar o ultimo carinho que recebi das pessoas que conheci pelo Brasilzao. Da Venezuelaconsegui falar pelo telefone com alguns que compuseram esta capoeira.
O soldado Francisco (Cuiaba/MT) me perguntou, com rigidez militar, se tenho ligado para meus pais e deu um discreto suspiro de satisfacaoquando soube que eles estavam comigo.
Seu Waldomiro (Goiania/GO) lembrou-me de que sempre pede a Deus para "proteger este varao [eu] dos perigos das trevas". Agradeci com um "Amem".
Lia (Sao Luis/MA) me disse que "meu pai", Seu Welington, nao via a hora de receber noticias minhas. "Nos te amamos" foi o que me falou antes dedesligar.
Claudia (Ibotirama/BA) nao disse quase nada que eu pudesse entender porque nao parava de chorar. E, modestia a parte, era um choro tao desesperado.Nunca alguem chorou daquela forma por mim.
Pessoas com quem convivi tao pouco tempo - algumas menos de 24 horas, outras nao mais que cinco dias - entraram em minha vida de uma maneira tao,como dizer?, brasileira.
Este singelo post e so pra agradecer pelas oracoes, pelo choro desesperado, pelo amor incondicional, pela carinhosa discricao militar.

Rumo ao Egito

Nao foi sem nenhuma dificuldade que atravessei o portao de embarque. Quando se esta viajando ha quase seis meses vindo de solidao em solidao e dificilassumir o papel de filho e deixa-lo levando toda sua suposta auto-suficiencia.
A cumplicidade de meus pais vem desde a preocupacao de minha mae em comprar cada um dos livros que pedi, ate o compartimento secreto que meu pai criou -ou melhor, costurou - no meu cinto para que eu nao tivesse de esconder dolares na cueca.
Mas, ainda que me cortasse o coracao perceber que meus pais estavam imoveis em frente ao vidro do portao de embarque por horas seguidas esperando umabreve aparicao minha a 40 metros de distancia, havia muitas preocupacoes em minha mente. A maior delas era em relacao ao visto egipcio. Sabia que poderiatira-lo no aeroporto de Cairo, mas a funcionaria da Iberia fez tanto escarceu no check-in que fiquei assustado.
Ela me disse que eu podia ser deportado por conta de nao ter passagem de volta. So pra garantir, fiz uma reserva de voo. Alem disso, ainda nao tinha ideia de ondeia ficar em Cairo. Nao havia comprado guia de viagem e talvez mal soubesse localizar a capital egipcia num mapa.
Na verdade o que mais me assustava era exatamente nao saber o que sentiria ao desembarcar. Isto porque viajar de aviao e muito comodo. Em 30 horas se chega a qualquerparte do mundo sem fazer nada. O maximo de esforco que se faz e ao se levantar para ir ao banheiro. A comida vem ate voce, e ate uma cerveja, um whisky, um vinho.Nao se tem paisagem, exceto as dos filmes que sao exibidos. Nao ha uma interacao com locais durante o percurso... Tudo isso contribui para que o choque cultural sejadevastador no momento do desembarque.
Em Madri, sentado em frente ao portao 49, comecei a ter uns espamos de solidao. Nao havia nenhum outro passageiro em um raio de 50 metros. Comigo havia apenas o relogioque indicava mais cinco horas para o meu voo, um pe direito elevadissimo e uma faxineira que esfregava o chao... "A mi soledades voy, de mis soledades vengo".
Ja no aviao, alguns minutos antes da aterrissagem recebemos o formulario da imigracao. "Nome", ok; "Sobrenome", ok; "Endereco"? Enrosquei. Achei que poderia ser um problemadeixar o espaco em branco e, discretamente, consultei o que a senhora ao meu lado havia escrito, "Oasis Hotel".
As 22h30 locais, chegou a hora da verdade. O Cassio, num dos seus relatos de viagem, escreveu que se sente estrelando um filme a la James Bond quando desembarca em aeroportos.Minha sensacao ao sair do aviao foi de peao indo pegar o metro.
Atravessei um corredor estreito e com pe direito baixo. Um carpete azul esburacado e sujo so piorava o visual. Logo em seguida ja me deparei com um monte de funcionarios de hoteissegurando plaquinhas com "Mr. Samuelson", "Mr. Hussen". Fiquei assustado porque pensei que tivesse errado o caminho e pulado procedimentos imigratorios. Mas logo em seguida viuns guiches e algumas catracas. Um senhor me disse que deveria comprar minha estampa numa daquelas bilheterias e depois entrar numa fila.
Todo papo da embaixada egipcia de que sao necessarios foto e vacina contra febre amarela para se tirar o visto, bem como o escandalo da funcionaria da Iberia era tudo balela.Os funcionarios da imigracao simplesmente colaram a estampa no meu passaporte e carimbaram. Estava pronto meu visto, em menos de cinco minutos.
Recolhi minhas malas e nem precisei comprovar que elas eram de fato minhas. Logo na saida fui abordado por um funcionario de uma agenca de turismo. Assim, mal tive tempo de pensarem choque cultural ou nas diversidades que estariam por vir. Como sabia que ia passar a noite no aerporto, deixei me levar pelo jovem rapaz. Conversamos por algumas horas e, as 2h,dormi num dos bancos do terminal.
As 5h30 da manha fui procurar o onibus que me levaria ate o centro da cidade. Por sorte seu numero era 400 e tive alguma pista para identifica-lo: dois simbolos iguais representadoos zeros. A partir deste momento so comecei a apanhar com a barreira do idioma e com algumas verdades obvias. Transformados em mandamentos, diria-se:1 - nao espere que taxistas te ensinem como pegar o onibus para o centro da cidade;2 - nao perguntem em hoteis sobre outras acamodacoes mais baratas;3 - saiba que se voce nao estiver disposto a negociar o preco do falafel (um tradicional sanduiche arabe), morrera de fome.
Assim, talvez haja somente uma explicacao astrologica para o fato de eu ter conseguido um quarto privado com teve e banheiro por quatro dolares no primeiro hotel que entrei. O dono mechamou, mais tarde, para dizer que seu funcionario tivera um acesso de altruismo quando se prontificou a me dar um quarto de 25 dolares por aquela mixaria e pediu que eu ficassesomente aquela noite. Mas, para mim que estava esgotado, era o tempo que precisava para descansar e poder procurar um outro lugar no dia seguinte.
Dormi algumas horas e fui caminhar pelo centro de Cairo. Acho que estava estampado na minha testa "turista recem-chegado" e, a cada dezena de passos, era abordado por alguem. Meudeslumbramento com a cidade ia dos entulhos as moscas, e nao recusei nenhum convite que recebi. Em menos de quatro horas ja havia bebido mais de cinco xicaras de cha e fumado dois cigarros, apesar de dizer que nao fumava.
No final do dia estava acabado. Sentia que todos com quem havia estado tinham sugado minhas energias. Apesar de nao ter gastado um vintem, foram inumeras as vezes em que as pessoasso queriam meu dinheiro ou algum bem material que possuisse (flertaram ate com o meu relogio do Paraguai).
Para se ter uma ideia, o dono de um hostel, apos fazer pose oferecendo cha e cigarro, ao me ouvir barganhando o preco foi categorico: "Va embora. Este lugar nao e para voce. Este lugarnao e para gente pobre".
Tive dificuldades para dormir naquela noite e fui acordado pelo funcionario do hotel ao meio-dia e meia. Fui procurar um albergue barato e, depois de muitas horas, encontrei o Sultan Hostel que cobrava apenas tres dolares por uma cama que ja vinha com "bed bugs" (nao sei se eram carrapatos, mas definitivamente nao eram pulguinhas graciosas). Foi laque passei a maior parte no Egito.
Ja disse que estava vivendo um romance com Cairo, mas ainda nao se direito o porque. Se eu fosse descrever a paisagem, ao dizer "gatos, mosquistos, entulho, poeira e carros" jadaria uma imagem 90% verossimil.
E, apesar da poluicao que me permitiu ver uma unica estrela no ceu da grande cidade, do incessante barulho das buzinas, dos falafeis embrulhados em papel sulfite que deviam serrefugos de copiadoras, do cigarro fumado pelo meu vizinho no vagao do trem ou pelo cozinheiro enquanto ele me servia uma porcao de full (um creme feito com feijao), sou louco de paixaopela capital egipcia.
Adorava passar os finais de tarde tomando leite com acucar e canela e fumando uma sheesha (narguile) nos tradicionais cafes egipcios no meio da rua. Adorava ser abordado por criancase ter de acionar, eu mesmo, suas paixoes futebolisticas diante da perplexidade de verem um rapaz com cara de asiatico dizendo que era brasileiro (o Zanini so tinha de dizer, "Brasil, Brasil"que os egipcios retrucavam, "Ronaldinho, Ronaldinho". Eu tenho que falar, "Brasil, Brasil", encarar uma feicao de ponto de interrogacao, e completar, "Ronaldinho, Ronaldinho").
Ate mesmo pelo transito tinha uma atracao particular (acho que se trata de uma das coisas mais caricaturais das grandes cidades). E conclui, apos receber a ajuda de um menino dedez anos para cruzar uma avenida, que uma crianca em Cairo aprende duas coisas prematuramente: recitar o Al Fatiha (a abertura do Corao) e atravessar a Sharia Tahrir (a "rua" maislouca da cidade).
Talvez pela companhia de Ronald, um alemao que viaja ha oito anos e sempre tem uma historia bizarra para contar (de suas experiencias sexuais no Ira ao mercado de AK-47s por cincodolares no sul do Sudao), e pelo sentimento de onipotencia diante dos precos que me permitiam comer chocolate e beber cerveja quase que diarimante, Cairo foi tao inesquecivel.

Sultan Hostel, japoneses e o virus da mochilagem



Achei incrivel o numero de japoneses que ha no Egito. Quando procurava um hostel acabei encontrando uns cinco so deles. E, no final, apos andar por mais de seis horasa procura do lugar mais barato, parei no Sultan, o qual contem quatro japoneses para cada cinco hospedes.
Muitas vezes os mochileiros tratam o desejo pela estrada como um virus dificil de se livrar. Eu diria mais. Diria que os japoneses possuem uma resistencia menor a ele. A maior partedos mochileiros da terra do sol nascente que conheci no hostel iriam viajar por mais seis meses, no minimo, sendo que ja haviam viajado, ate aquele momento, outros seis. Os destinostambem nao sao muito convencionais, e paises como Sudao e Yemen figuravam na lista.
Conheci um casal que viaja pelo mundo antes de se casar (estiveram inclusive em Yuba); duas irmas que viajaram por seis meses pela Africa e tocavam um instrumento esquisito daTanzania; um jovem formado em artes visuais que trabalhava meio ano com publicidade para poder se dedicar na outra metade a projetos pessoais, isto e, viagens; um outro que viajapara jogar em cassinos e um que ia fazer uma grana pesada em tres semanas na Alemanha para seguir mundo afora.
Darei mais detalhes sobre estes tres ultimos. Taka e o jovem que estudou artes visuais. Esteve viajando pela Africa por paises como Tanzania, Ruanda, Namibia, Uganda, Etiopia, Sudao para elaborar o seu mais novo trabalho: "Potato Project". Nao entendi qual era o seu objetivo, mas o projeto consistia em tirar fotos com o povo africano junto da sua batata de estimacao (?).

Potato Project: Uganda
Potato Project: Namibia
Hiro tem semblante sereno, falar manso e cabeca raspada. Duvidaria menos se ele me dissesse que era um monge do que um jogador de cassinos. Como no Japao o unico jogopermitido e o patinko (uma maquina daquelas do tipo caca-niqueis brasileira, mas com "muito mais matematica"), ele estava no Egito para jogar. Formou-se em Economia, mas preferefazer dois mil euros por noite no Black Jack ou no Texas Holdem. De Cairo vai para Budapeste e continuara assim por muito tempo.
O ultimo e Massa. E, antes de dizer o que o distingue dos demais, abro parentesis. Um amigo meu costuma brincar que, nos momentos de lisura financeira, sempre nos resta o corpopara se vender. Dado que a estrada ja me ensinou que ha diversas maneiras para se ganhar dinheiro, foi com um enorme espanto que vi a determinacao do japones.
Massahiro nao esta com as financas ruins, mas tem pressa e vai ganhar quase 150 euros por dia na Alemanha (mais do que muita prostituta de luxo no Brasil).Ele ira ceder seu corpo por tres semanas para um laboratorio farmaceutico que o usara em testes de um novo medicamento. Voce estaria disposto?Talvez o virus da mochilagem provoque delirios mentais.

Allah al Akhbar

Mourad desenhando meu retrato

Um dos dias mais especiais no Egito foi quando orei pela primeira vez com os mulcumanos numa mesquita. Em respeito aos que estavam orando, entrei na mesquista apos o Asser (terceira oracao diaria) e Mourad, um desenhista que chegara atrasado, convidou-me para orar com ele.
Realizamos o Wudu, purificao do corpo parecida com a feita na Seicho-No-Ie, lavando, nesta sequencia, a boca, as narinas e o rosto tres vezes; a cabeca e as orelhas uma vez, e as maos,bracos e pes tres vezes.
Mourad foi muito paciente e fez questao de que eu repetisse com ele as palavras da oracao. A unica que consegui dizer sem dificuldades foi "Allah al Akhbar" (Deus e grandioso).
Depois da oracao, fomos ate seu atelie de pintura e ele me falou mais sobre sua religiao. O Isla possui cinco pilares:
1 - O principio de que "Allah e o unico Deus e Mohammed seu profeta";2 - A oracao (no minimo cinco vezes diarias);3 - A Caridade;4 - O jejum durante o mes do Ramada; e5 - A peregrinacao para Mecca ao menos uma vez na vida.
E, por fim, passou-me os horarios das oracoes:
Sobehr - 5h07Dohar - 11h37Asser - 14h21Magreb - 16h46Eishah - 18h06
Ja de volta ao Sultan Hostel, Wael, recepcionista do albergue, presenteou-me com um Corao ao saber que eu tinha interesse em conhecer mais a religiao mulcumana.
Enquanto eu costurava minhas meias, que tinham buracos enormes nos calcanhares, a faxineira do albergue, Abo Sayed, disse que eu precisava de um nome arabe. Batizou-me de Mohammed, o nome do profeta islamico.

Fernando, ou Mohammed Brasili

O viajante e um egoista

Ha alguns dias lia a entrevista de Saramago para a Folha, ou melhor, lia os comentarios de Reinaldo Azevedo sobre ela.
Saramago disse que e um "comunista hormonal". Assim como cresce sua barba, assim como respira, assim como vai ao banheiro, ele e um comunista.
Quando li isto so nao fiquei com nojo porque fiz Federal (valeu, Maya, por esta perola!). Eu tambem, por alguns anos, pensei que era uma necessidadehumana votar no PT, assim como colaborar em projetos sociais e pensar em formas de "conscientizar" os que so se preocupam com suas vidas pessoais.
Ja a viagem possuia todo uma mistica romantica a la Che Guevara, mas isto foi antes de comecar esta viagem, Al hamd lellah (Gracas a Deus!)!
Muitos amigos meus tambem nao deixavam de fazer a relacao: perguntavam-me se iria fazer a mesma rota que Che quando sabiam que eu ia viajar pela America do Sul, e outros, criticos,imaginavam que esta "experiencia humanizadora" consistia em fumar maconha com gente pobre.
Essas coisas todas ecoaram na minha cabeca quando me vi no cenario que, ha tres anos, foi palco de meu mentor da mochilagem. O palco onde Zanini havia me contaminado com a paixao pela estrada.Estava na estacao de trem de Cairo aguardando o "newspaper train", uma maneira elegante para definir o ultimo trem que, no Brasil, seria chamado de "pinga-pinga".
Por conta do Festival do Sacrificio, que lembra a ocasiao em que Abraao estava disposto a sacrificar a Deus seu filho Isaac, a estacao estava lotada de gente que voltava para suas cidadespara celebrar a data. Eu me sentia na Estacao da Luz em final de expediente, com a pequena diferenca de que a viagem duraria 16 horas, ao inves de uma ate Parelheiros.
Tentei me misturar aos demais passageiros e fiquei longe de policiais com medo de ser impedido de viajar no trem exclusivo para egipcios (desde um atentado terrorista, se nao me engano em 2002,ha carros especificos para os turistas). Levei tres horas tentando comprar meu bilhete antecipado na terceira classe, ate descobrir esta proibicao. Assim, o jeito era tentar fazer como boa parte dos locais:entrar no vagao e pagar para o bilheteiro.
Minha cara, ate aquele momento, nao permitia que eu passasse despercebido e sempre alguem tentava puxar conversa comigo - em arabe, claro. Finalmente, apareceu alguem que falava ingles,Ambru Kara, e pode me ajudar na comunicao.
Nao sabiamos em qual das plataformas o trem chegaria e haviamos combinado com outros dois rapazes que sentariamos juntos, sendo que estes dois ficaram responsaveisde pegar lugar para mim e Ambru.
As 23h15 vimos o trem se aproximando. Quando percebemos que ele pararia na plataforma oposta, saltamos e cruzamos pelos trilhos mesmo, tudo numa questao de segundos.As pessoas nao esperavam o trem parar e tantavam entrar nos vagoes ainda em movimento para conseguir um bom lugar. Naquela loucura toda ja havia me perdido dos demaise optei por garantir o meu espaco.
Quando a porta de um dos vagoes passou por mim, pulei para dentro e nao tive duvidas de trepar no bagageiro. Estava tentando tirar a mochila das costas sentando no compartimentoquando um egipcio veio querer tomar meu lugar. Ele gritava em arabe e eu, em ingles. Percebendo que eu nao sairia de la, desceu para procurar lugar nos assentos, porqueo "setor horizontal" ja estava todo cheio.
Deitado a cinco palmos do teto, voltei meus pensamentos novamente para as razoes de estar ali. Conclui uma verdade obvia: o viajante e, antes de mais nada, um egoista. Nao ha nadade nobre, humanizador, em se viajar no pinga-pinga egipcio como poderiam imaginar os esquerdistas (e imaginava eu ao ver "Diarios de Motocicleta").
Naquele momento, tudo que queria era ser um local, e quanto menos as coisas se alterassem no cotidiano daquelas pessoas por conta de minha presenca, melhor. Nao queria mudar arealidade que presenciava, melhorar a vida daqueles individuos, ser um "agente transformador"... Tudo que desejava, no maximo, era um lugar no bagageiro.
A meia-noite e meia algumas pessoas ainda discutiam por assentos reservados, outras tantas viajavam de pe. A luz havia sido apagada e era possivel apenas se ver vultos e pontos luminososvermelhos: os cigarros acesos que competiam com o cheiro de urina.
Jantei deitado e tentei dormir. Pela primeria vez me passava por um local, e isto me realizava. Antes de dormir, pensei que ainda que no futuro o acumulo de"experiencias culturais" me facam ter uma dimensao da minha pequenez, nao terei sido menos egoista.

Conhecendo Allah em Johaynath

As 8h30 da manha achei que ja era hora de sair de meu "esconderijo" (o bagageiro) e ter um pouco de paisagem, afinal, olhar para o teto do vagao nao era neum um pouco animador.
So nos poucos segundos que levei para para descer, todo o vagao ja havia reconhecido minha cara de forasteiro. Nao demorou muito e alguns jovens vieram se sentar ao meu lado.
Alguns minutos depois pude ver meu amigo Ambru Kara no outro vagao e me juntei a ele. Foi assim que conheci Tabet, rapaz de 30 anos que vive numa pequena vila de Esna, Johaynath.
Tabet queria que eu fosse com ele para sua vila passar o Festival do Sacrificio. Ja havia recebido outros dois convites antes para pousar em casas de recem-conhecidos, mas pelaprimeira vez fiquei realmente despreoupado com o fato de haver algum interesse secundario. Acho que o semblante de uma pessoa atesta toda sua ficha moral e Tabet tinha a expressaode um santo.
Infelizmente, nao estava disposto a mudar meu plano de ir a Aswan, porque isto me custariam alguns dias, e preferi fazer o seguinte acordo: iria a Aswan, ficaria duas noites la e,no sabado, estaria em Esna para passar o Festival, o qual comecaria no domingo.
Tabet ainda insistiu que eu fosse naquele mesmo dia, mas vendo que eu nao mudaria de ideia, apenas frisou: "Septi. Se Aruba. Mohammed Brazili." Querendo dizer que sabado, as 16h,quando eu chegasse na estacao, deveria ligar para ele e me apresentar como Mohammed Brazili,dado que meu arabe se restringia a dez palavras e seu ingles, a 20.
No sabado, cheguei exatamente as 16h na estacao. Tabet ja estava la me aguardando com uma galapeya (roupa masculina arabe) branca (ou era marrom?). Esna e uma cidade entre Luxor e Aswan, nao e muitovisitada por turistas e os cidados nao se vestem com trajes ocidentais.
Caminhamos por uma rua de terra movimentadissima, com vendedores ambulantes por toda a parte. Durante todo o percurso nao vi turista algum e isto me deixou muito feliz.
Passamos por um policial que, obviamente, abordou-nos. Nao compreendia o que Tabet e o guarda falavam, mas depois de meu amigo mostrar seu documento de identidade entendi que o policial queria que o acompanhassemos.Pesquei algumas palavras da dezena que aprendi e disse: "Sadick Tabet. Al hamd lellah!", que quer dizer, "Amigo Tabet. Gracas a Deus!" Dei um sorriso para o guarda e ele nos liberou.
Pegamos tres paus-de-arara e, uma hora depois, chegamos a Johaynath. Trata-se de uma vila bem pequena. Disseram-me que deve haver cerca de 3000 pessoas vivendo la, mas penso que o numero deve ser menor.
chegamos a casa de Tabet e eu fiquei numa salinha recebendo os cumprimentos de familiares e amigos. Um detalhe: todos eram homens ou meninos, nao fui apresentado a nenhuma mulher.
Como ja havia passado o horario do Magreb (quarta oracao matinal) e estavamos jejuando por conta da proximidade do Festival, foi nos servindo o desjejum: uma refeicao fartissimacom carne de frango, carne de vaca, feijao, repolho, arroz, dois tipos de pao, salada...
Fomos orar o Eishah (ultima oracao do dia) numa mesquita proxima e pude ver carrocas e poucos tratores estacionados a frente de algumas casas.
Fiquei um pouco receoso de estar naquela mesquita, mas fui realmente bem acolhido, sendo cumprimentado por quase todos os presentes.
Apos a oracao, tomamos cha na casa de um comerciante e, finalmente, conheci alguem que falava ingles, Issa, o qual se tornou meu interprete em Johaynath.
Naquela noite, ainda recusei convites para jantar novamente e outros para dormir em casas de amigos de Tabet.
Alem disso, joguei futebol com as criancas da vial que, pela primeira vez em minha modesta carreira futebolistica, faziam questao de que eu estivesse em seus times. Nem nas peladasde latinha do Juliao (ginasio) eu era o primeiro a ser escolhido...
Dormi numa cama de casal enorme e fiquei constrangido ao ver Tabet e seu irmao dormindo num "sofa" de madeira. Tabet me cobriu e seu irmao ligou o radio na estacao quefica 24 horas por dia recitando o Corao.
Naquele instante, passei a ser envolvido pela metafisica da cama (este movel em que fomos concebidos, temos nossos sonhos, choramos nossas dores e medimos nossos escrupulos).Senti-me como na cama de meus pais quando era colocado para dormir com oracoes apos algum pesadelo ou durante uma gripe, febre.
Uma lagrima de gratidao correu pelo meu rosto, mas nao tive mais tempo de continuar com meus pensamentos porque a hospitalidade dos habitantes de Johaynath e como uma sombradiurna que, a noite, instala-se ao pe da cama e recapitula a agenda do dia seguinte antes de dormir.Foi assim que Tabet se lembrou de que jejuarimos no dia seguinte, sendo melhor comer algo ate as quatro da manha, isto e, antes da primeira oracao.
Assim, ele se levantou e veio me explicar, com gestos, se eu preferia comer naquela hora, 22h32, ou depois - 1h, 2h ou 3h da manha! Sem sentir um pingo de fome, achei que seria melhor comer naquela hora do queacordar ele e as mulheres da familia durante a madrugada. As 23h estavamos comendo pao, melado de cana e queijo, e tomando leite com acucar.
No dia seguinte acordamos as 4h30 e fomos orar. Dormimos noavmente ate as 7h e fomos a fazenda. Em Johaynath se plantam tomates, beringelas, capim para os animais, cana de acucar, melao...Tudo com um sistema de irrigacao do deserto incrivel.




Membros da comunidade de Johaynath a frente da mesquita em que oravamos diariamente


Fomos ate a plantacao da familia de Mohammed, amigo de Tabet, e queria ajudar seu pai e seus irmaos a colherem capim, mas nao me deixaram. Em seguida, tomamos banho na Laem Sorna (aguas termais, a qual eu chamode "ofuro" ao ar livre) e fomos a casa de Mohammed para assistir aos hajis (peregrinos) em Mecca.
Laem Sorna, "Ofuro ao ar livre"
A noite, apos a ultima oracao do dia, reunimo-nos na casa de uma das autoridades islamicas da vila, onde criancas e adultos recitavam o Corao e faziam oracoes. EsporadicamenteIssa me traduzia o que era dito e, proximo do final, ele me disse que todos haviam orado para que Allah me proporcionasse tudo aquilo que desejava. Ao ouvi-lo, fiquei crispado de emocao.
No meu segundo dia na vila comecei a perceber que estava sendo objeto de disputa. Sentia-me um profeta, sem pretensao, ou, mais modestamente, um politico.Todos faziam questao de me cumprimentar ou convidar para um cha; as criancas me seguiam e anunciavam minha presenca...
Ja Mohhamed e Tabet pareciam meus acessores. Eles controlavam, e disputavam entre si, minha agenda. Muitas vezes eu recebi um convite de alguem e eles ja cortavam dizendo, "No time. No time."Em linhas gerais, eu so tinha vontade propria na hora de ir ao banheiro, e era colocado em situacoes embaracosas do tipo: "Voce vem comigo, ou vai com ele?"
Fiquei pensando no porque de toda aquela obsessao por mim e enetdi a razao quando Issa veio se despedir ao final de um dia. Disse-lhe qeu era muito cedo e pedi que ficasse mais um pouco,ao que ele respondeu: "Nao posso. Tenho mulher e filhos."
Uma das minhas maiores alegrias naquela pequena vila era conversar com Ahmed, irmao de Mohammed de apenas dez anos. Ele e eu tinhamos uma linguagem propria. Seu vocabulariose restringia a "Yes", "Ok" e "No", e, ainda assim, gracas as expressos faciais e entonacao de voz, travavamos dialogos infindaveis:


Ahmed: - Yes, Yes?

Eu: - Ok... Ok...

Ahmed: - No, No!

Eu: - Yes, yes, ok, ok!

Ahmed: - Ok, ok!

Eu: - Yes... Yes...



Ahmed Yes-Yes-Ok-Ok e suas irmas cortando capim para animais




No primeiro dia do festival fomos orar normalmente o Sohber as 5h07 e, as 7h, apos nos vestirmos com nossas melhores roupas (por melhores, em meu caso, voces ja sabem o queesperar), lavadas e passadas na vespera, e passarmos perfume e cera no cabelo, fomos fazer as oracoes para celebrar a data.






Dia do Festival do Sacrificio



A noite, fomos a mesquita de uma vila nubia (os nubios vieram do sul do Egito e do Norte do Sudao. Sao reconhecidos por sua pele mais escura) vizinha.Apos a oracao, deslocamo-nos a um salao onde autoridades islamicas da regiao fizeram uma serie de discursos.
Como em qualquer ocasiao como esta, enquanto alguns ouviam dando vivas de "Allah Al Akbar" (Allah e grandioso!), outros chochilavam com a cabeca rodando sobre o pesco como aquelas personagens de filme de terror que estao para serem exorcidas.
Em seguida, como uma boa comunidade egipcia, foi feita a premiacao das criancas que decoraram mais capitulos do Corao em 25 dias, bem como daqueles que se mais destacaram nasegunda paixao nacional, o futebol.





Autoridades islamicas da comunidade nubia


No dia seguinte nao passamos no teste de fe matinal: acordamos as sete horas da manha, deixando de fazer a primeira oracao na mesquita. Ainda assim, estiramos o tapete no chaovoltados para Mecca e oramos o Sobehr atrasado.
Apos tomar o cafe-da-manha, Mohammed, Tabet e eu fomos de moto a vila Nagh Abu Hamad. La conheci Maged, professor de ingles da escola local, com quem conversei a beira do Nilosobre o Isla, principalmente sobre o matrimonio.
Sempre qeu ouco sobre a proibicao da mulher de se casar com um "infiel", enquanto os homens podem se casar ate com quatro mulheres, inclusive nao mulcumanas, e inevitavel nao pensar na superioridade moral do ocidente cristao. Mas vez ou outra encontro alguem que fala: "O Isla diz que o homem pode se casar com ate quatro mulheres sobre a condicao deoferecer, a cada uma delas, os mesmos direitos e beneficios. Em relacao aos bens materiais, tudo bem, e possivel proporcionar as mesmas coisas. Mas e em relacao ao coracao?Isto, para mim, e impossivel!" Quando ouco isto, penso comigo mesmo: "Eis o grande homem. Senhor de si proprio."
Participei das atividades recreativas com os jovens da comunidade jogando um pouco de futebol e competindo num "Quiz" com perguntas sobre o Corao e futebol. No final, fizeramuma arrecadao de fundos entre os presentes para ajudar os palestinos de Gaza.
Voltamos a Johaynath e fomos direto a mesquita orar o Asser (terceira oracao diaria). Ao final, um vovo veio me dizer alguma coisa, que respondi com um "Shukran", obrigado, por conta denao ter entendido. Issa me explicou que ele estava me chamando a atencao por nao ter ido a mesquita rezar as duas oracoes anteriores. Encarei a repreensao como um carinho e fiquei lisonjeado.
Antes de partir, fui deixar as fotos que tirei com minha camera no computador da unica "Lan House" (entre aspas porque nenhum dos dois computadores tinham conexao a internet) de Johaynath e levei um susto ao ver minha imagem transformada em papel de parede. Alguem havia tirado minha foto e a estampado no desktop.
O adeus foi bem cruel. Enquanto me despedia da familia de Tabet e de Mohammed na frente de suas casa, outros vizinhos vinham chegando para dizer "As salam" (como tchau). Quando me virei para o pequeno Ahmed-Yes-Yes-Ok-Ok, ele me surpredeu com uma palavra nova em seu vocabulario: "Bye, bye, Mohammed Brazili!"
Na moto, com Tabet e Mohammed, ia acenando para as pessoas pelas quais passavamos, "As Salam! Shukran!". E, enquanto eu escondia minha cara quando cruzavamos com algum policial, com medo de sermos paradose dar problemas aos meus amigos, Mohammed me revelava sua preocupacao: "Voce promete que nunca se esquecera de nos?"
Como os condutores de mini-vans locais se recusaram a me levar com receio de receberem repreensoes da policia, fomos ate a ferroviaria de Esna. Nao havia previsao de hora para o proximo trem e, dado que estava na hora do Magreb (quarta oracao diaria), decidimos rezar na mesquita da estacao.
Prostrados com nossas testas no chao, ouvimos o barulho do trem se aproximando. O senhor que puxava a oracao deu uma acelerada e entrei no vagao com somente uma das meias nos pes e as botas nas maos.
Para mim, a vila de habitos singelos, pessoas calorosas e "ofuro" natural e um pedacinho de "Ganna" (Ceu). E, ainda que nao tenha me tornado islamico, posso dizer que em Johaynath conheci Allah.


Tabet e Mohammed antes do As Salam (adeus)

Luxor e Feluca Gay

Atendendo a pedidos, revelarei um conteudo em que sempre fiz questao de passar o censor: a famosa tara etnica, a dos outros, nao a minha, nao vem somente das cholas, cocaleiras, vovos (acento agudo no o) e destentadas. Ela aparece entre estivadores guaranis do Paraguai e vai ate os mulcumanos egipcios. Mas vejam bem que frisei: "a famosa tara etnica, a dos outros, nao a minha."
Aqui comeca um capitulo de "novas experiencias" que nao fiz questao de provar. Tudo comecou em Luxor que, por sinal, detestei. Apos minha estada em Esna, ir a uma cidadecomo Luxor repleta de turistas que atraem os sanguessugas de carteiras foi desconsolador.
Dormi no telhado de um albergue, no qual a cama era mais barata, e as coisas so melhoraram no ultimo dia, quando conheci Fred, de Londres.
Conversamos normalmente e ele se voluntariou a ir comigo a estacao de trem verificar os horarios para Cairo a noite. So percebi que o cara jogava no outro time apos espera-lo por meia-hora e ve-lo com um modelito baby-look rosa. Sem falar nos oculos de sol.
Nao demorou muito e ele tocou no assunto, "Do you like swing?", perguntando se eu curtia trocar de, como dizer?, posicao?, buraco?, de vez em quando.
Apesar das tentativas de me persuadir, que as vezes eram um tanto quanto constrangedoras, gostei de conhece-lo porque descobri muitas coisas do turismo gay.
Fred disse que possui uma grande rede de contatos espalhada por todo o mundo. Sempre que viaja, alem das informacoes convecionais (hoteis, restaurantes e pontos turisticos), tem encontros engatilhados e "atracoes" para passar o tempo, como, por exemplo, a Feluca Gay.
Feluca e um barco a vela que faz o transporte de turistas entre Luxor e Aswan. Ja a Feluca Gay e um servico que inclui algumas "brincadeiras" entre o barqueiro e o turistaem pleno Nilo (este tipo de informacao nao tem no Lonely Planet).
Acabei indo com Fred e seu "amigo" local, Ahmed, que conhecera em site de bate-papo, a um casamento nubio realizado no vao entre dois sobradinhos. Havia um pequeno palcoa frente e inumeras lampadas coloridas iluminavam o quintal. Enquanto alguns rapazes fumavam haxixi na entrada, outros dancavam. Ja as mulheres ficavam ao redorda pista de danca improvisada observando os homens dancando, e so iam dancar quando estes paravam para descansar um pouco.

Casamento nubio

Em momento algum toquei no assunto homossexualidade com Ahmed e se Fred nao tivesse me contado seu caso com o jovem egipcio, seria impossivel saber que o rapaz estava interessado no londrino. Isto porque os mulcumanos sao naturalmente carinhosos com os amigos: andam de maos dadas, trocam beijos no rosto e piscadelas sem nenhuma malicia.
Era 1h52 da manha quando entrei no trem. Havia muitos assentos vagos, mas optei pelo "compartimento horizontal". Deitado no bagageiro, fiquei a pensar se, naquela noite,o egipcio havia triunfado em seu romance shakesperiano. Ahmed tinha ficado de ligar para Fred assim que conseguisse burlar a vigilia dos pais.
PS: Fred tambem me disse que, dentro dos paises islamicos, os iranianos de Mahmoud Ahmadinejad, o qual afirmou estupidamente que em seu pais nao ha homossexuais, dominam as comunidades e chats gays.

Deserto Branco

Antes de partir para Israel passei uma noite no White Desert. Fui com mais tres gringos e dois guias.
Apesar de o motorista ter quebrado a Toyota velha ao dar uma de piloto de Rally Dakar e ficarmos na estrada por uma hora, foi recompensador observar o ceu, sob a luzda lua cheia, contando as estrelas cadentes.

Carro quebrado no Deserto Branco

Antes de dormir, ao constatar que nao havia o canto de um grilo sequer, pensei: "como sera o barulho ao acordar?" As quatro acordei e percebi que ainda estava muito escuro,voltei a dormir e as oito ja abri os olhos para escutar alguma coisa. O maximo que ouvi foi um zumbido imaginario.
Na volta ainda tivemos de viajar de pe num onibus por cinco horas pagando o preco de turista, isto e, o dobro dos locais. Abri o jornal no dia seguinte e uma noticia sangrentainformava que mais de 50 pessoas haviam morrido por conta da queda de um onibus num canal.
Nao e a toa que uma vova de sessenta e poucos anos viajando sozinha pelo Oriente Medio me disse: "Aqui e mais provavel que um turista morra na estrada do que em um atentando terrorista."

Jerusalem: o sagrado e o profano

Vista apos cruzar a fronteira israelense: Mar Vermelho


O sol havia acabado de nascer quando atravessei a fronteira de Israel, apos alguns bons minutos de questionamentos feitos por uma jovem do exercito mais nova que eu.
Passei pelo detector de metais enquanto minhas malas estavam no raio-x. Tudo normal ate o soldado apontar para a minha mochila azul, na qual carrego livros. Foitirando um por um ate chegar no que eu havia guardado intencionalmente no fundao, o Corao, presente de Wael, funcionario do Sultal Hostel.
Como o cara nao falava ingles, ele chamou a referida mocinha mosrtando o livro sagrado islamico em uma das maos.
Ela me perguntou o porque de estar com aquele livro, o que eu ia fazer em Israel, qual era o meu Deus, o que meus pais achavam de eu esatr tendo contato com a religiaomulcumana...
Depois foi vendo os outros livros. Uma pena que ela nao conhecesse Nelson Rodrigues, Reinaldo Azevedo e Olavo de Carvalho. Mas ela conhecia, como os tutsis e os ianomamis,Barack Obama, "Por que voce esta lendo sobre Obama? Gosta dele?". Enchi a boca para dizer, "Todo mundo esta lendo, mas eu preferia McCain."
Achei que, pela primeira vez, ela tinha ficado satisfeita com uma resposta minha. Mas, ao saber que eu ia vijar por Siria, LIbano e Ira e precisava do visto em papelalheio ao meu passaporte, continuou: ""Nao acha Ira perigoso?"
Ainda passei por outra mocinha, esta mais calma, do tipo que vira a cabeca pro Mar Vermelho, da um suspiro de satisfacao, e volta a trabalhar mais resignada. Mas, ainda assim,levei um tempo la.
Talvez por ser brasileiro com cara de japones e viajar so com algumas miseras mochilas, ela tenha hesitado em me dar o visto de tres meses, dizendo que Israel era um pais muitocaro e bla, bla, bla...
Para nao por a extremidade de saida do seu sistema digestorio na reta, ligou para um superior e so depois me deu o visto de tres meses (quase que em meu passaporte!).
Era um dia lindo e a vista para o Mar Vermelho e realmente inspiradora. Optei por caminhar os dez quilometros ate a rodoviaria. Ja no caminho se constata o obvio: Israel esta muito mais para os melhores exemplos do mundo Ocidental do que para o Oriente Medio. Digo isto por conta da qualidade de sua infra-estrutura (porto, rodovias,onibus, construcoes) e do funcionamento de suas instituicoes (desde o rapaz que te vende a Coca de um UNICO preco, ate o bilhete de onibus comprado sem necessidade debarganhar).
Enquanto esperava o onibus para Jerusalem na rodoviaria de Eilat, senti um enorme vazio, mas nao era pela solidao. Vi garotos e garotas menores que eu com suas mochilas,fardas e uzis que batiam em suas costas como se fossem violoes. Jovens com quem, em comum, eu nao tinha nem a idade.
Deixando de lado esta breve divagacao, no onibus eu assisti a primeira briga entre um mulcumano e um judeu. Aquele perturbava os passageiros ouvindo musica com seucelular e este pediu para que ele o desligasse. Foi o comeco de uma longa confusao. Uma cena que, a parte religioes, podia acontecer em qualquer lugar. Mas na Terra Santapode ser potencializado por intolerancias (religiosas, etnicas).
Hospedei-me no hostel Al Arab no quarteira mulcumano da Cidade Velha, onde tudo e mais barato. Estava num lugar sagrado para tres grandes religioes - a crista, a mulcumanae a judaica -, mas, ainda assim, foram inumeras as vezes em que vi judeus e arabes trocando provocacoes. Os cristaos tambem nao se salvam do profano, e brigam entre si (armenios,sirios, gregos...) disputando as paredes, telhads e centimetros quadrados do chao da Igreja do Santo Sepulcro. Ouvi dizer que, quando fazem a limpeza da Igreja, a policia ficaa espreita para evitar confusoes do tipo: "Voce esfregou o meu territorio!"
Uma vez, quando eu estava caminhando pelo mercado mulcumano, um garoto de onze ano cujas feicoes me lembraram muito um amigo da Seicho-No-Ie, Artur, disse-me, sem protocolo,"Eu odeio os judeus!" Pra mim, que desde pequeno encarei a conjugacao do verbo odiar como uma coisa pudica, foi um grande espanto ouvir esta afirmacao.
A alguns dias do Natal, eu tentava buscar nao apenas papais-noeis e pinheirinhos, mas um pouco de espirito natalino. Nao precisa ser cristao para se ter fe na fraternidade dospovos, e era triste perceber que nao bastava orar cinco vezes na Al Aqsar ou tres no Kotel (Muro das Lamentacoes) para se enxergar no outro uma criacao divina.

Padarias da Cisjordania

Muro de concreto que separa Ramallah, na Cisjordania, de Israel


Abbas e Arafat, icones da Autoridade Nacional Palestina

Inas e Randa

Meu loft-padaria

Tentando localizar a padaria

Cheguei a cidade de Ramallah, na Cisjordania, as 16h. Fazia muito frio e ja havia me decidido que, caso nao encontrasse um albergue barato, voltaria naquele mesmo dia para Jerusalem.
Apesar do imponente muro de concreto que separa a cidade de Israel, o micro-onibus entrou rapidamente. O controle era maior com os veiculos que estavam saindo. Nestes, ospassageiros palestinos precisavam sair e passar por uma forte fiscalizacao (raio-x, detector de metais, inspecao de documentos).
Comi um falafel, metade do preco de Jerusalem, e fui procurar um lugar para ficar. O primerio hotel que encontrei custava 20 dolares. Segui caminhando e fui pedir informacao a um cabeleireiro. Ele nao falava muito ingles, mas ao me convidar para tomar cafe, percebi que realmente queria me ajudar.
Fiquei la por uma hora, e nesse meio tempo ela ja havia especulado de eu ficar na mesquita, ou talvez na mercearia do vizinho. No final das contas, por volta das 18h, seu paime disse alguma coisa da qual captei somente "sleep" e "bakery".
Acompanhei-os de carro e no caminho algumas palavras do pai do cabeleireiro (que vergonha de nao lembrar os nomes) confirmaram meu pressentimento, "Ramallah cold. Bakery hot. God!"Aquela coisa de dormir em padaria me era familiar e lembrei-me do Waldomiro de Deus, o artista plastico de Goiania que em sua adolescencia dormia sobre um forno de assar pao (vejamposts antigos).
Passamos pelo campo de refugiados de Jelas, contituido apos a Guerra de 67, e, meia-hora depois, chegamos a vila de Einyabroud. A padaria ficava numa rua razoavelmente movimentada.O irmao e o cunhado do cabeleireiro eram responsaveis por ela.
Ofereceram-me Coca, biscoitos e paes e, as 20h30, fecharam o comercio e foram para suas casas. Deixaram-me sozinho no meu loft com banheiro privado, teve a cabo, "calefacao" eestoque de biscoitos para uma semana inteira.
As 5h30 eles ja regressavam para pegar no batente de novo. Duas horas depois, o cabeleireiro e seu pai vieram me pegar. Levaram-me de volta ate onde tudo comecou, o salao de beleza,e eu segui meu caminho.
Queria me comunicar com os locais, saber como era ser um palestino, mas estava dificil encontrar alguem que falasse ingles. Imaginei que, com a minha cara e conhecendo os arabes,nao demoraria muito para ser abordado por alguma pessoa.
Levei duas horas ate Mohaned me dizer, "How are you?". Ele e Rafat estavam numa padaria (ha alguma coisa de mistica com elas, so pode ser) comprando o cafe-da-manha quando eupassava pela frente.
Fui com ele ate o Instituto de Frances de Ramallah, onde estavam alojados, e conversamos poralgumas horas.
Rafat cresceu em um campo de refugiados e trabalh como ator. Mohanad naceu na Jerusalem Ocidental, mas se recusa a se identificar como um israelense e, no campo nacionalidadede seu documento de identidade se ve uma sequencia de asteriscos. Seu passaporte e jordaniano. Trabalha fazendo filmes e viajara para o Brasil em abril por conta de um progrmade intercambio cultural.
Em seguida, caminhamos pelas ruas da cidade e eles foram me mostrando as marcas da ocupacao pelas forcas israelenses em 2002: destrocos de uma casa, desniveis no meio-fio porconta dos tanques de guerra. Numa ocasiao, pararam-me para dizer que naquele lugar onde estavamos um militante respeitado e admirado pelos palestinos foi assassinado porum agente secreto israelense.
Muhanad tinha um encontro com um amigo a uma hora e me convidou para que eu o acompanhasse. No escritorio de uma organizacao nao governamental palestina que coordenaprojetos sociais orientados ao publico infato-juvenil, conheci Allah, que nascera em Gaza e havia conseguido se mudar para Ramallah ha alguns meses gracas ao seu trabalho.
Allah me mostrou em seu computador suas paixoes: a musica (havia gravado um clipe em Gaza de uma cancao que falava sobre a formacao do Estado Palestino) e a sua filha de umano, a qual exibia orgulhosamente.
Mohanad e Allah seguiram conversando, vez ou outra traduziam o que estavam falando. Uma delas foi que ambos acreditavam que Israel invadiria Gaza em breve (estamos no dia 23 de dezembro).
De la fui conhecer o antigo campo de refugiados de Kad'Ora. Numa mercearia fui abordado por uma jovem, RANDA, a qual me convidou para almocar hamburgueres. Achei engracado que,enquanto quase todos os mulcumanos com quem tive contato queriam me levar para o Isla, a primeira moca com quem conversava me pedia, humoradamente, para que eu a levasse de la.
Randa me apresentou sua amiga, Inas, que assim como ela trabalha como enfermeira num hospital da cidade. Falamos sobre a proibicao do namoro e a obrigatoriedade do turbante.Como boas mulcumanas, elas nunca haviam tido qualquer contato fisico com um homem (nem sequer um inocente selinho). Ao me mostrar a foto de seu passaporte palestino, naqual ela estava com os cabelos soltos, Randa resmungou: "Por que tenho que usar turbante? Eu nao gosto disto!"
Voltei para Kad'Ora e Mohamed, filho do dona da mercearia onde conheci Randa, convidou-me para dormir em sua casa.
Fui com ele ate um cafe no qual trabalhava todas as noites e fiquei conversando com seu amigo, Mustafa, enquanto ele gerenciava os negocios.
Mustafa me explicou como um jovem deve proceder caso se interesse por uma mulher: pede-se a sua mae, ou irma, que va conversar com a familia da moca. Marca-se um encontro,sempre sob os olhares dos pais da pretendente, e assim o futuro casal tem a oportunidade de se conhecer.
Ainda convesariamos sobre Arafat, idolatrado por muitos palestinos que conheci; Hamas, "preocupado com a defesa dos palestinos de Gaza"; e sobre o direito de Ira de detera bomba atomica, "um equilibrio de forcas mundiais necessario".
Como nao havia muitos clientes no cafe naquela noite, Mohamed pode voltar mais cedo para casa. Jantamos, fumamos uma sheesha e eu dormi enquanto eles assistiam a Al Jazeera.

Como fui parar na cidade de Jesus

Natal em Belem com mulcumanos

Estava eu caminhando pelas estreitas ruas do quarteirao mulcumano na Cidade Velha de Jerusalem quando vi um microfone da Globo. Conhecia o homem que o segurava de uma reportagem do Globo Reporter sobre Israel.
Tratava-se do primeiro brasileiro que via no Orinete Medio e segui meu impulso de trocar umas palavras em portugues. QUando percebi que o camera-man estava me filmando, fuiinocente a ponto de dizer: "Por que voce esta me filmando? Nao filma nao que eu so queria conversar..."
O reporter me aconselhou a ir a Belem, com certeza la eu encontraria arvores de Natal e papais-noeis. Segui o conselho de Alberto Gaspar (procurei seu nome na internet depois),correspondente da Globo no Oriente Medio, e fui para a cidade natal de Jesus Cristo.
Como ja havia estado em Ramallah, os muros que separam Belem de Israel nao me causaram o espanto inicial. Procurei um hotel barato e consegui me hospedar no As Salam por 13 dolares.Talvez o proprietario, mulcumano, tenha sido contagiado pelo espirito natalino, dado que comecara cobrando 50 dolares, media para a ocasiao de alta temporada.
Durante o dia, visitei a Igreja da Natividade e assisti ao desfile de uma fanfarra. A noite, fiquei ao redor de um palco montado na praca principal da cidade. As atracoes artisticaseram, em sua maioria, constituidas de espanhois. Nao me lembro de er ouvido uma cancao natalina e a unica vz que ouvi "I wish you a Merry Christmas" foi de um grupo de turistascoreanos.
Durante o show, fiquei com um grupo de rapazes mulcumanos. Um deles teria prova da faculdade no dia seguinte e se despediu mais cedo. Um momento que se destacou para o publicomasculino local foi quando uma cantora espanhola metida a Britney Spears subiu no palco. Quando ela jogou a jaqueta e ameacou tirar a blusinha, os homens entram em delirio.Nao duvido de que os niveis de testosterona somados tenham alcancado os dos homens na apresentacao feminina feita em comeco de Gioconda.
A grande maioria dos cristaos que conheci estavam trabalhando e comemorariam o Natal so em Janeiro porque seu calendario tem uma diferenca em relacao ao gregoriano.
O Presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, chegou por volta ads 21h e participaria da missa que seria celebrada na Igreja da Natividade a meia-noite. Umgrande contingente de soldados fazia sua seguranca e podia se ver militares armados dividindo os telhados dos edificios ao redor da praca com os cameras-man de emissoras detelevisao.
No dia seguinte voltei a Jerusalem. Liguei para meus pais e ouvi a reclamacao, "VOce podia ter avisado que tinha dado entrevista pra Globo." Dei risada e perguntei em qualhorario eu tinha aparecido. Fiquei mais tranquilo quando soube que a materia havia saido no Bom Dia Brasil.
Vi a reportagem pela internet e as maravilhas da edicao de imagens haviam cortado a parte em que eu resmungava para o camera-man. Como nunca tive a sindrome de "danca o siri' oude "filme eu, Galvao", nao vou divulgar o link.

Centro Islamico em Arara - Israel

Numa das manhas que estava em Jerusalem visitei a mesquita Al Aqsar, uma das mais sagradas do mundo para os islamicos. O funcionarionao me deixou entrar dizendo que o acesso era permitido somente para mulcumanos. Contestei dizendo que so queria orar e, as perguntasque me fazia indagando se eu era islamico, eu replicava com "tergiversacoes diplomaticas" que nao negavam nem confirmavam.
No final, apos fazer uma par de perguntas relacionadas aos pilares do Isla e ao Wudu (purificacao do corpo feita antes da oracao), o homemme deixou entrar.
Fui orar na mesquita outras vezes e, numa delas, encontrei Sher Tariq (sher e um pronome de tratamento usado em respeito a islamicosdevotos), com que havia conversado pelos quarteiroes da Cidade Velha.
Ele me convidara para passar alguns dias num Centro Islamico no norte de Israel, cidade de Arara. Como planejava passar a vesperade Natal em Belem, combinamos que eu iria para la no dia 25.
No dia de Natal, apos o Eishah (ultima oracao do dia, apos o por do sol), peguei carona com um onibus que viera do norte com mulcumanos quevinham para Jerusalem orar na Al Aqsar. Tres horas depois, desembarquei em um posto de gasolina na rodovia onde Tariq e um amigo jame esperavam.
Fomos direto ao Centro, onde um grupo de "shers" nos esperavam para jantar. O predio ficava bem ao lado de uma mesquita e garotos e senhores ja dormiam em colchoes espalhados em um salao encarpetado.
Reunimo-nos a um grupo de cinco ou seis pessoas em outra sala. NO meio de lencois, travesseiros e colchoes estirados no chao haviauma farta bandeja com comida. Enquanto jantavamos, o Sher Ramada (nao me lembro de seu nome, na verdade), responsavel por aquele encontro islamico,foi falando sobre sua fe e suas viagens ao redor do mundo pregando os ensinamentos de Maome.
Como quem ja conhece o tipo de visita que eu fazia, isto e, aquela em que o turista so quer "saber mais a respeito", contou-me uma estoria:dois peixes, um pequeno e um grande, estavam em volta de um anzol a discutir se deveriam comer a isca ou nao. O pequeno queria devora-la,mas o grande o aconselhava a nao faze-lo porque iria para numa frigideira.
O peixe grande representava os profetas e "shers", os quais conhecem a verdade que transcende este mundo carnal, e, portanto, seguemos preceitos religiosos. O pequeno, os infieis que, ainda que tenha tido contato com a verdade, nao seguem seus preceitos e vao arder nona frigideira, quer dizer, no fogo do inferno.
E ainda completou, dizendo que entre o "infiel ignorante" e o "infiel que so quer dar uma olhada", o ultimo e o pior. Realmente, a ignorancia e uma bencao.
As 23h fomos para a casa do amigo de Tariq. Uma residencia de dois andares linda e espacosa com bandeiras da Arabia Saudita na fachadae uma mensagem de voz acionada ao se abrir a porta, "Allah e o unico Deus e Mohammed seu profeta".
Entramos e o aparelho de som estava ligando tocando um cd que recitava os capitulos do Corao.
As 4h45 do dia seguinte acordamos e fomos a mesquita orar o Sobehr (primeira oracao diaria). De la fomos ao Centro no qual todosja estavam reunidos em torno do Sher Ramada, o "Peixe Grande" (Tariq e eu o chamavamos assim). Ele estava sentado em uma cadeiraenquanto os demais, no chao.
Ao perceber minha presenca, chamou-me para que eu me sentasse ao seu lado. Ia me acomodar no chao, mas ele pediu que trouxessem umacadeira para mim. Nessa altura ja comecei a sentir certo mal-estar. E foi ai que ele me disse para repetir "Ahad an Lailah ila Allah waana Mohammed Rasur Allah", a frase escrita na bandeira da Arabia Saudita e acionado ao se abrir a porta da casa de Musa, amigo de Tariq.
Sabia o que aquilo significa, ano apenas literalmente. Trata-se do primeiro pilar do Isla, e um anuncio de que voce e um mulcumano.Fui pusilanime, com medo de cometer uma impostura, e repeti constrangido.
Em seguida, um por um, recebi os cumprimentos dos presentes. Havia gente ate tirando fotos e filmando com seus celulares.
Naquele dia fomos a mesquita mais quatro vezes. Na ultima, para rezar o Eishah, um senhor veio me dizer, do nada: "Voce sabia queSadam Husseim havia ordenado aos seus subordinados que encontrassem alguem para lhe ensinar ingles? Dez dias se passaram e Sadamfoi exigir explicacoes sobre a razado da demora. Seu secretario lhe disse que haviam encontrado tres americanos, mas julgaram melhormatar todos."
Ouvi aquilo sem saber o que fazer. Achei que o cara tivesse problema mental, mas depois Tariq me disse que por muito tempo elehavia trabalhado como comediante em Tel Aviv.
Ficamos na mesquita para jantar e Abed Mawassi disparava sem descanso um monte de piadas. Ao ouvir pilherias do tipo"como um gay se senta na cadeira?" Enquanto alguns riam a ponto de fazer Maome se revirar no caixao, Tariq e Mussa davam um sorriso de constrangimento e me diziam, "Isto era antes de ser um Sher, antes! Hoje ele eoutro homem."
Ouvindo Sher Mawassi vestido de galapeya (traje tradicional arabe) e com barba a la Profeta Maome, tive uma pequena visao do Paraiso.Imaginei judeus ordoxos, militantes do Hamas, soldados da IDF, padres armenios, Tariq, Mussa e eu reunidos naquela mesquita e soltandogargalhadas. E o bulicoso piadista continuava, para a alegria geral dos povos do ceu, "um padre, um sher e um rabino foram para o cabeleireiro..."

Maya, Arie e Teo

Maya e Arie

Sete anos depois de ouvir a estoria, ganho o livro! Obrigado, Maya!


Maya e Eu

Quem me conhece bem sabe de tres coisas: sou chorao, ranjo os dentes quando durmo e idolatro o Teo.
Vou deixar os dois primeiros pontos para outra oportunidade. O que importa agora e a estorinha do Teo. Para quem nunca ouviu falar, conto bem rapidamente.
Teo era um menino que descobrira que a cor azul tranquilizava as pessoas. Imaginou qeu se todos pintassem suas casas de azul, o mundo seria um lugar melhor. E, assim, escreveu cartas para aquelesque julgou como pessoas influentes: George Bush (presidente dos EUA), FHC (presidente do Brasil), Alckmin (governador de SP), Marta Suplicy (prefeita de Sao Paulo).
Depois de muito trabalho e nenhuma resposta, ele sentou-se sob uma arvore e, desiludido e cansado, comecou a chorar. Acabou dormindo e, quando acordou, percebeu que estava em frentea sua casa e que, pasmem, ela era amarela!
A partir do momento em que Teo pintou sua casa de azul e que as coisas comecaram a mudar. Pouco a pouco seus vizinhos, percebendo os beneficios da cor azul, pintaram seus lares, e assim, progressivamente, seguiram-seas vilas, as cidades, os estados...
Por muito tempo minha doutrina esta residida nesta pequena estoria, o que muitos ja devem saber. O que ninguem sabe e como o Teo entrou na minha vida. E e sobre esta historia que escrevo.
Tudo se passou no colegial. A Federal era, e deve continuar sendo, um circo de bizarrices intelectuais. Em todos aqueles adolescentes com rostos em que explodiam espinhas, pulsavauma insaciavel fome de saber, um desejo insano de transformar o mundo.
Apenas para que voces tenham uma ideia, havia o jovem que com quinze tinha terminado Casa Grande & Senzala e se dedicava a proxima escalada: a Enciclopedia Britanica. Outra, era a campeade todas as Olimpiadas de Matematica e ja se preparava para o ITA estudando integrais enquanto eu ainda tinha dificuldades com baskara.
Mas entre todas estas figuras ilustres, eu tinha uma especial admiracao pela garota que lia bulas medicas e havia lido a biblia para passar o tempo: Maya.
Ela e eu costumavamos passear pelo bosque. Acho que ela gostava de estar comigo porque eu a ouvia, enquanto minha atracao era que ela falasse daquele seu jeito peculiar quenao se cansa, nao da suspiros, nao para nem para aspirar um pouco de ar.
Muitas vezes quando eu a ouvia parecia que ela colhia as palavras corretas para definir toda as minhas angustias existenciais. E foi as vesperas de um debate em que ambos defenderiamoso anarquismo (ou era o comunismo?) numa aula de sociologia e que o Teo apareceu.
A historia passou a ser minha doutrina, ou melhor, meu atestado de culpa. Ainda que eu continuasse a querer "revolucionar" o mundo abominando a ALCA, a Walt Disney e o Roberto Marinho,a estoria nao deixava escapulir minha responsabilidade e isto me deu,apesar de continuar um jovem esquerdista, um pouco de autocritica.
O tempo passou. A Maya foi fazer filosofia na USP, eu, administracao na GV. Nao nos vimos mais e mal trocavamos emails. Foi no Acre que eu soube mais detalhadamente que os rumoresacacianos ("Amigos do Acacio" e um grupo de e-mails do colegial) de que ela ia se casar eram verdadeiros.
Para meu espanto, a ateia havia se tornado judia e estava morando em Jerusalem. Namorava um israelense russo e iria se casar na epoca em que eu estaria no Oriente Medio.
Oito de Janeiro de 2009, depois de vestir camisa, calca social e sapato, percebi que ainda nao estava realmente pronto para a cerimonia de casamento de minha querida amiga.Por sorte, a minha vaidade nao estava no armario da minha casa, mas a 200 metros de distancia, a cinco dolares de meu alcance.
Desde que o Leo Barone (amigo do DAGV) botou nome no meu penteado, Igreja da Pampulha, percebi que o tamanho do meu topete determina a minha auto-estima. Assim, passado o gel no cabelo,senti-me Fernando Narciso Oshima.
O casamento seria relativamente perto de meu hostel em Tel Aviv, mas como ja havia me perdido uma vez (ao procurar a rua Ben Gurion na cidade de Bat Yam, fui parar na Ben Gurion de Holon), julgueimelhor sair com duas horas de antecedencia.
Cheguei antes da noiva e, ao dizer isto, voces podem pensar: "Grande feito. A noiva e sempre a ultima a chegar." Sim ela e a ultima a chegar, e nao sem atrasar uns bons minutos, no mundo ocidental.Num casamento judaico, ela e a primeira a chegar porque tem uma sessao de fotos e, em seguida, recebe os cumprimentos dos convidados.
Depois de SEIS anos sem ve-la, foi assustador ver a coleguinha dos passeios no bosque se tornar mulher de veu e grinalda. Ao mesmo tempo, era curiosamente delicioso constatar queela seja a primeira da turma a se casar. A narradora da estoria de Teo sempre esteve na vanguarda por conta de sua constante busca de aprender, de ser uma pessoa melhor, dese sentir realizada.
Ao pensar nisto, quando vi Arie, o noivo, pisando a taca, que eu achei que era para celebrar o juramento mas que na verdade simboliza a destruicao do templo de Jerusalem,eu quase me junto ao seleto grupo de solucos lacrimejantes femininos.
O que se seguiu a cerimonia foi uma intercalacao de danca com refeicoes. Acho que os casamentos judaicos sao os mais fartos e animados.
Teo continua sendo um grande professor, mas hoje sinto que recebi um indulto. Enxergo uma cepa libertaria em sua estoria. Depois de Yuba e deste casamento, pintar a casa de azulnao e um meio para melhorar a humanidade, e um fim em si mesmo. Cultivar um lar, ser um bom conjuge, pai ou mae, tudo isto e que deveria realmente importar.
Nao hesito em dizer que a Maya esta no meu Top-5, com vacancia de duas posicoes, de pessoas que mais admiro por sua constante impaciencia que nao da tregua ao conformismo. Trata-sede alguem que tem consciencia de que e totalmente dona de seu destino. Uma caracteristica fundamental que define os genios.
Nesta nova etapa, desejo que se sinta cada vez mais plena. E tenho certeza de que seu lar sera repleto de paz, sempre cuidadosamente pintado de azul, ainda que ajam sobre eleos efeitos naturais da chuva e do vento, porque a tarefa de manter a casa azul e permanente.

"Tudo ok com seu Corao!"


Tel Aviv, Mar Mediterraneo. Dificil abandona-la...

Estava cruzando a fronteira de volta para o Egito e pensava mais no que deixara para tras do que encontraria pela frente.
Durante minha estada na Terra Santa, passei mais tempo com arabes do que com judeus, ate porque estes nao sao calorosos como os primeiros. Mas, ainda assim,despedi-me de Israel com uma profunda admiracao pelo seu povo.
Foi, pricipalmetne, dificil deixar Tel Aviv, mas seria impossivel passar mais tempo la, ainda que eu continuasse a fazer bicos limpando restaurantese colocando panfletos em caixas de correio. O custo de alimentacao e hospedagem eram muito altos para o meu orcamento.
Uma noite, caminhando pela praia, vi um casal e me perguntei o porque de eles nao poderem simplesmente viver aquele romance com todos as bobagens e delicadezas que lhe saoinerentes.
O povo israelita precisa estar sempre afirmando seu direito de existir, seja quando bocais como Chavez, MOrales e Lula abrem a boca, seja quando Ahmadinejad diz que Israeldeve ser varrido do mapa.
E por isso que entendo o motivo de se lembrarem, a todo momento e ate mesmo nas ocasioes mais felizes (o casamento, por exemplo), da destruicao do templo de Jerusalem. Sua historiae a medida de sua forca.
Mas, enfim, estava na fronteira...Divaguei demais porque estas coisas passavam pela minha cabeca enquanto minhas mochilas estavam no raio-x. Estava tao longe com meus pensamentosque nem me importei quando o oficial me disse, apontando para a mochila azul na qual carrego livros: "Livros? Quero ve-los!"
Alguem ja deve ter dito que se conhece uma pessoa por suas leituras... Pois bem, o oficial egipcio foi retirando cada livro ate que, em um deles, fiz questao de ressaltar: "Corao!"Se ao cruzar a fronteira israelense fazia questao de esconder aquele livro, agora queria levanta-lo para o alto.
Achei que nao haveria problema, mas o oficial chamou um outro, provavelmente superior. Como se o expediente do oficial que falava ingles houvesse acabado, chamaram um rapaz quefazia propaganda do Hilton Hotel para ser meu interprete. Comecou: "Por que voce tem tantos livros?"; "O que e este livro?" (apontando para Angustia, de Graciliano Ramos); "E este?" (agorasegurava Contra o Consenso, de Reinaldo Azevedo).
Em seguida, passou para os livros que falavam sobre o Isla. "Por que voce tem o Corao?"; "Voce e mulcumano?". E finalizou, "Aguarde sentado!", levando o meu livro sagrado islamico.
Como eles nao estavam com meu passaporte, fiquei pensando o que podiam estar checando que demorava tanto.
Vinte minutos depois fui chamado. Levaram-me ate um outro oficial que tinha a farda mais limpa e brilhante de todos os que ja havia visto. Este me dissem, com voz de "Sua Excelencia": "Sente-se! Estou verificando se seu Corao esta correto." Respondi com um "ok", como se dissesse, "entao ta bom".
Ele tinha um outro exemplar aberto em sua mesa e estava comparando folha por folha, Surat por Surat (capitulo por capitulo). Por fim, terminou, "Ok. Sua versao esta correta. Pode ir."
Realmente nao sabia que os oficiais da fronteira de Taba, Egito, alem de verificarem passaportes e mochilas, tinham que aprovar versoes do Corao.