Monday, May 4, 2009

“I like George Bush!” - Região Autônoma do Curdistão/Iraque



Curdos vestidos com roupas tradicionais

Pseudo-peshmergan ("pseudo" porque ta sem a Kalash)

Sim, é possível! E no Oriente Médio. A frase mais politicamente incorreta dos últimos anos pode ser ouvida da boca de inúmeras pessoas no norte do Iraque, mais precisamente, na região autônoma do Curdistão iraquiano. Mas antes de falar sobre isso, preciso explicar como vim parar aqui (escrevo este post daqui).

Tudo começou quando conheci Taylor, o canadense das caronas. Ele estava com a ideia de ir ao Iraque e isto me estimulou a verificar a possibilidade de eu também vir para cá.

Entrei no fórum do Lonely Planet e descobri que, apesar de ser impossível conseguir visto de turismo nos consulados e embaixadas iraquianos, era fácil sacar um visto de dez dias na fronteira da região autônoma do Curdistão iraquiano, ao norte do país.

Quando li a informação “visto na fronteira de graça”, já me animei, mas ainda faltava verificar se não se tratava de uma passagem para o inferno (“Terceiro mandamento: Se é de graça, e não é passagem para o céu nem para o inferno, eu aceito”).

Assim, passei dezenas de horas na internet pesquisando sobre atentados terroristas, sequestros de estrangeiros e relatos de viagens envolvendo a região.

Com este visto poderia recorrer por três províncias: Dohuk, Arbil e Suleimania (não teria autorização para visitar áreas como Bagdá, Kerbala e Diyala, mas tão pouco tinha vontade). Uma região que me pareceu bastante segura, mas ainda assim se tratava do Iraque.

Os relatos de mochileiros do LP me tranquilizaram e me informaram das áreas que deveria evitar (Mosul e Kirkuk, cidades em que células da Al Qaeda continuam a fazer dezenas de vítimas em atentados à bomba),todavia, continuei cauto.

Conversar com outros mochileiros nem sempre é uma maneira prudente para a tomada de decisão. A maior parte nunca fez comentários que me recomendassem cautela e sempre eram calcados no raciocíno “você pode morrer na frente da sua casa, em qualquer lugar”.

Para alguém que vem de um país em que mais de 50.000 pessoas morrem todos os anos em homicídios, este argumento parece soar convincente. Mas, felizmente, nunca caí neste obscurantismo graças à preocupação iluminadora de minha família – “Fernando, antes de fazer qualquer coisa, lembre-se de que você tem pai, mãe e irmão”.

É claro que não podemos evitar a morte, mas podemos fazer escolhas que aumentem nossas chances de caminhar sobre este mundo de imperfeições. E, neste caso, refiro-me menos às escolhas do tipo: não consumir produtos com gorduras trans, ou não fumar e comer tempero de miojo porque causam câncer; do que das do tipo: não dirigir bêbado a 140 km/h, não brincar de roleta-russa ou não viajar de carona no Afeganistão.

Foi por isto que os dois únicos viajantes que concordaram com minhas opiniões e se mostraram preocupados com minha ideia de vir para cá se tornaram os melhores amigos que fiz na viagem, Bob e Dave.

Bob é um americano que conheci em Mar Mussa. Ele está viajando com sua namorada, japonesa, há nove meses e sem dúvida fez um discurso bastante eloquente para que eu pensasse muito bem antes de tomar qualquer decisão.

Ele me contou o famoso caso do “Koda Hotel” em Aman, Jordânia, que muitos de vocês devem conhecer, mas sem os detalhes. Em 2005 (se nao me engano), um japonês de vinte e poucos anos estava hospedado naquele hotel e disse a um de seus funcionários que queria ir a Bagdá.

O funcionário, ao invés de lhe fazer recomendações para que ele desistisse da ideia, arranjou um táxi que o levaria até a capital iraquiana. Algumas semanas depois o rapaz foi sequestrado pela Al Qaeda e o desenlace da história foi divulgado pelo You Tube.

Hoje, ironicamente, tanto o hotel quanto o funcionário são celebridades para os japoneses. Muitos mochileiros se hospedavam lá para “consolar” o jordaniano com mensagens do tipo, “você não teve culpa”. E uma japonesa se sensibilizou tanto que acabou se casando com o cara.

Na opinião de Bob o jordaniano teve uma enorme resposabilidade sobre o ocorrido. E, basicamente, meu amigo norte-americano contou tudo isto para me dizer: “Não serei conivente com sua decisão”.

Já Dave é um britânico que conheci em Damasco. Passei apenas três horas com ele, mas, somente pelo fato de ele ter me dito, “Tome muito cuidado lá”, criamos uma fraterna cumplicidade.

Finalmente, decidi por ir quando passei a trocar e-mails com um curdo iraquiano de Arbil, capital do Curdistão, e quando meu colega de quarto do hotel El Riyad, em Damasco, Abu Rashedi, convidou-me para viajar com ele e ficar em sua casa.

Abu Rashedi me disse que sua família vivia em Suleimania, cidade a 250 km de Arbil, e ele iria visitá-la por conta do feriado de Nowruz. Havia criado uma amizade com o cara, apesar de às vezes ter minha privacidade invadida pelo que chamaria, de “altruísmo egoistico” (apenas como exemplo, ao menos cinco vezes o cara me acordou de madrugada, após voltar do trabalho, aos berros, convidando-me para comer).

Além disso, sempre me senti desconfortável com os presentes que ele me dava (camiseta, calça, comida…) e achava estranho vê-lo, dia sim, dia não, com alguma coisa eletrônica diferente (laptop, games de crianças, dicionário eletrônico...).

Infelizmente não poderíamos viajar juntos porque ele me disse que cruzaria a fronteira El Rabiyah-Síria/Rabiah-Iraque (a mesma que o comboio de caminhões de Day-Az-Zorn ia pegar), sob o controle do governo central iraquiano. Eu tinha de ir à Turquia e cruzar a fronteira Silopi-Turquia/Zakho-Iraque. De qualquer forma, ao menos tinha hospedagem garantida em Suleimania.

Conversei com Bob e tracei as seguintes diretrizes de segurança:

1 – Não me expor tentando pegar caronas na Estrada;
2 – Romper restrições orçamentárias e estar disposto a pegar táxis se necessário;
3 – Viajar direto para a casa de meus conhecidos se as condições de segurança não estivessem favoráveis;
4 – No pior dos cenários, contactar imediatamente a CIA.

Combinei com Abu Rashedi que assim que chegasse em Suleimania lhe ligaria. Parti na manhã do dia 21, início da primavera e do ano novo curdo e persa (Nowruz). Ele me disse que partiria na noite do mesmo dia.

Teria de cruzar duas fronteiras para chegar no Iraque: primeiro, Qmishile-Síria/Nusaybin-Turquia; depois, Silopi-Turquia/Zakho-Iraque. Ao menos nas duas os vistos seriam gratuitos.

Como queria chegar a tempo de ver alguma comemoração de Nowruz em Qmishile, cidade curda na Síria, peguei um ônibus ao invés de caronas.

Nove horas depois, às 19h, cheguei à cidade. Infelizmente tarde demais. Ao menos conheci dois jovens curdos num café que me disseram que, diferente dos anos passados (em 2004, segundo eles, 40 pessoas morreram e cerca de 300 foram presas. Em 2008, três morreram e ao menos 50 foram presas), as celebrações de Nowruz deste ano não tinham tido nenhum incidente com a polícia.

Gemaa e Hidayet também me contaram as dificuldades de ser um curdo na Síria. Eles não podem conversar em curdo em locais públicos; não podem estudar a cultura, a história e a língua curda nas escolas; não têm partido político, jornal ou canal de televisão.

No dia seguinte atravessei a fronteira às 8h30 da manhã. Foi estranho sair da Síria após quatro meses em países árabes e entrar na Turquia, com seus letreiros com letras latinas e palavras curdas e turcas totalmente desconhecidas (a única que podia entender era Fenerbahçe).

Caminhei até a estrada que me levaria à Silopi, a 130 km de Nusaybin, e sentei à frente de um posto para descansar. Menos de vinte minutos depois, um jovem de 13 anos que trabalhava de frentista no posto veio conversar comigo. Ofereceu-me chá e água, além de me ajudar a pegar carona.

Dorgan, motorista do Volvo F440, é caminhoneiro há 30 anos e já viajou para Frankfurt, Tel Aviv, Warsaw, Belgrado, Budapeste, Moscou, Astana...

No Brasil, quando eu pegava carona, muitas vezes ouvia dos motoristas que eu havia escolhido a profissão errada. O mais correto, dado minha paixão pela Estrada, seria ser caminhoneiro ou agente de turismo, diziam eles. Depois que vi o passaporte de Dorgan, o qual daria inveja a muito mochileiro, percebi que, se fosse para ser caminhoneiro, eu o seria na Turquia.

Na fronteira, mostrei meu passaporte ao oficial turco e, de repente, ele o entregou a um taxista que me disse para entrar no carro. Tomei meu passaporte de volta e lhe disse que iria a pé. Comecei a caminhar e alguém gritou, “Pare, senhor! Pare!”, já imaginava que eu ia ouvir algo do tipo, “Não se pode cruzar a fronteira a pé”, e continuei andando. Mas quando um coro de oficiais (quatro ou cinco) gritou, fui vencido e deia meia-volta.

Disseram-me para eu entrar no táxi e eu disse que não tinha dinheiro. Imaginando que a discussão ia se prolongar, sentei-me no meio-fio e esperei. Vi que dois carros privados estavam chegando e fui tentar pedir carona aos motoristas. Nisto, por algum espasmo de altruísmo do taxista, talvez por conta do Nowruz, ele me disse que podia me ajudar a cruzar a fronteira de graça.

No outro lado da fronteira, uma placa desejava boas vindas à Região do Curdistão iraquiano e bandeirinhas coloridas, uma bandeira do Iraque e outra do Curdistão flamulavam.

Mal entrei numa sala ampla com piso limpo e paredes cor de creme recém-pintadas e um jovem me trouxe chá. Foi a primeira vez que me serviram uma bebida numa fronteira.

Por sorte, o passageiro que estava pagando a corrida no táxi falava inglês. Ele vinha da Alemanha visitar sua família em Dohuk. Os oficiais curdos me fizeram algumas perguntas e ligaram para Amer – o contato que obtive pelo fórum da Lonely Planet.

Uma hora depois consegui meu visto de dez dias. Os oficiais me recomendaram, “Não vá a Mosul, nem a Kirkuk”, e me arrumaram outra carona para que eu pudesse terminar de cruzar a fronteira dado que o alemão e seu taxista já haviam partido.

Alguns metros depois desci do carro e presumi que poderia continuar o trajeto até o portão de saída a pé. Fui caminhando até a portaria e ao meu lado uma quantidade enorme de caminhões esperava sua vez para sair. Um porteiro recolhia um pedaço de papel dos motoristas. Mostrei-lhe meu passaporte e disse Dohuk apontando para os caminhões. Ele entendeu a mensagem e começou a perguntar aos caminhoneiros para onde eles estavam indo.

Fiquei conversando com os funcionários da fronteira e aprendendo algumas palavras curdas enquanto esperava por uma carona. Um soldado veio falar comigo e pensei que ele ia me dizer que não poderia ficar ali. Apresentei-me e lhe desejei “Cejnata Pirozbe” (Feliz Primavera) e o rapaz começou a perguntar aos caminhoneiros se podiam me levar.

Uma hora e meia depois conseguiram uma carona para mim na carroceria de uma caminhonete. Eram 18h30 quando embarquei e dividi o espaço com outros dois jovens.

Zakho, a primeira cidade iraquiana após se cruzar a fronteira, estava com um tráfego bem movimentado. Muitas famílias voltavam para a cidade após terem feito piqueniques nas montanhas.

Resolvi me deitar na carroceria porque fazia muito frio. O céu estava lindo, apesar de não haver lua, e recordo-me de ter visto uma estrela cadente. Como não podia conversar com os jovens por conta do problema da língua, resolvi botar uma trilha sonora.

Alguns minutos depois, o rapaz ao meu lado me cutucou e apontou para fora da carroceria. Levantei minha cabeça e vi um comboio de caminhões escoltado por tanques de guerra americanos. Cada caminhão tinha em seu para-brisa uma folha A4 em que estava escrito “Mosul” e um número de identificação. O maior número que vi foi 53, mas talvez houvesse mais caminhões.

O motorista correu pra valer. Sem dúvida aquela foi a maneira mais perigosa de exposição ao risco no Curdistão: viajar na carroceria de uma caminhonete correndo a mais de 100 km/h.

Ao desembarcar em Dohuk, entrei no primeiro estabelecimento comercial que vi: uma alfaiataria. Lá conheci Mark, que tem um inglês impecável e trabalhou com o exército Americano de outubro de 2007 a fevereiro deste ano como intérprete (ele, além do curdo e do inglês, fala árabe).

Achei que sua opinião a respeito da situação do Curdistão seria a mais relevante obtida até então e fiquei mais tranquilo ao ouvir sua confirmação: Dohuk, Arbil e Suleimania são absolutamente seguros.

Ele, seu irmão, o alfaite e mais um cliente começaram a fazer ligações com seus I-phones e celulares top de linha procurando um hotel para mim. No final, levaram-me de Corolla até o Besire Palace, um hotel por 15 dólares.

No dia seguinte, fui convidado para uma partida de futebol. Desde minha primeira pelada no Egito já aprendi que, se os adversários tiverem mais do que a metade de minha idade, é melhor dizer que sou do Japão. Falar que sou brasileiro logo de cara cria uma carga de expectativas com a qual minhas habilidades futebolísticas não estão ao alcance para lidar. Assim, se eu der show, confesso minha origem. Se eu der vexame, já era esperado.

De Dohuk peguei um táxi com mais três curdos até Arbil (Hawler em curdo), capital do Curdistão. Chovia e a pista estava molhada, mas isto não foi suficiente para fazer com que o motorista fosse mais cauteloso.

No caminho passamos por muito checkpoints, mas não enfrentei problema algum. A maior parte da Estrada era terrível, com trechos constituídos de pura lama e buracos. Talvez o caminho não tenha sido o dos melhores para que contornássemos por fora da cidade de Mosul.

Arbil é muito maior que Dohuk. O centro da cidade é um caos, com ruas cheias de caixas de papelão largadas pelos inúmeros lojistas de seus arredores. O comércio é muito ativo e há muitos centros comerciais em construção.

Muitas vezes estava caminhando pela rua e ouvia um, “brazili, brazili”. Virava achando que estavam falando comigo até que, finalmente, percebi que há muitos conterrâneos meus no Iraque. Na década de 80, o governo brasileiro fez um acordo com Saddam Hussein para a exportação de passates Volkswagen – dizem que, além dos carros, tanques de guerra também estavam envolvidos na negociação.

Reparando no trânsito de Arbil, não encontrei nenhum carro que parecesse mais velho do que os brazilis. Aqui o Brasil não é reconhecido somente pelo carnaval, café e futebol, também a resistência do brazili é elogiada, “É um bom carro, um bom carro!”, disseram-me muitos senhores.

Falei dos brazilis, mas já ia me esquecendo de outro elemento do cotidiano dos curdos iraquianos, o gerador. Não me parece que há hora marcada para acabar a luz, mas é certo de que pelo menos por doze horas diárias a energia advirá de geradores particulares.

Acabei deixando a cidade sem me encontrar com Amer, o contato que arrumei no LP, o qual estava muito ocupado com seu trabalho. Peguei um ônibus após me certificar de que ele não pararia em Kirkuk, e fui a Suleimania.

No ônibus, mostrei o telefone e o endereço de Abu Rashedi, meu colega de quarto do hotelzinho de Damasco, a um rapaz que falava inglês. Ele me disse que o telefone estava errado e que não conhecia aquele endereço. Percebi que minha intenção de passar um tempo em sua casa, principal razão que me incentivou a vir para o Curdistão, não iria rolar.

Dado o novo cenário, e como já havia passado três noites no país, senti-me compelido a entrar no ritmo habitual de contenção de custos. Após procurar por um hotel barato, encontrei um letreiro com letras árabes que dizia, “Fondok”, hotel em curdo e árabe.

Subi as escadas e quando vi o local senti-me no CETREMI (ver post de Campo Grande/MS). Fui até a recepção e tentei conversar com o funcionário que não falava árabe, tão pouco inglês. Em menos de três minutos metade do hotel estava a minha volta. Quando vi aquele monte de homens me medindo, pensei seriamente em procurar outro lugar, mas acabei ficando pelo preço: 3000 dinares iraquianos, o equivalente a 2,5 dólares.

Por sorte o hotel estava lotado e eu acabei ficando num quartinho onde são guardados as bolsas, mochilas e demais pertences dos hóspedes. Já acomodado, fui dar uma olhada no lugar.

Há uma sala de televisão que serve também de quarto, na qual três ou quatro pessoas podem dormir sobre o chão encarpetado. Nos fundos, há um banheiro que também servia de cozinha: um fogareiro com uma frigideira fritando batatas estava aceso no canto do corredor. O banho de água quente era na base da hora marcada e era necessário transferir, de canequinha, a água da pia para o balde.

No dia seguinte, fui pagar pela estada e o funcionário do hotel não aceitou. Cortesia curda, como já havia acontecido em outras ocasiões em que eu precisei insistir para que aceitassem meu dinheiro após pedir um falafel ou uma bebida.

Por volta do meio-dia parei para descansar no Parque Azadi (liberdade em curdo), no qual foram escondidos muitos corpos durante o regime ditatorial, e fiquei observando as crianças brincando num parquinho. Um senhor que estava com seu filho de três anos veio falar comigo.

Em seu queixo havia uma pequena deformação e ele me contou que fora por conta de um tiro que levara. Ele, e outros tantos homens curdos de sua idade, haviam sido peshmergans, isto é, guerrilheiros que lutaram contra o regime de Saddam.

Contou-me que, por mais de dez anos, ele teve de viver escondido nas montanhas ao redor de Suleimani, voltando para a cidade esporadicamente à noite somente para atacar os soldados de Saddam.

Com a revolução de 1991 e o controle dos curdos sobre a região, finalmente Mesut, o ex-peshmergan, pôde tocar sua vida particular. Hoje ele é casado e pai de dois filhos, além de ser membro do PUK (Partido Unido do Curdistão).

Antes de me despedir, ele também me disse que Jalay Talabani, atual presidente do Iraque, foi um de seus comandantes.

Despedi-me do senhor e fui ao “museu de Saddam”. Cheguei em frente a um enorme edifício e, pelos buracos de tiros na fachada, acreditei que se tratava do lugar que eu estava procurando.

Tentei conversar com os soldados que estavam na portaria, mas nenhum deles falava inglês. Um jovem rapaz que estava à frente do portão se ofereceu para me ajudar.

Polla, mais conhecido como Jack (ele é fã de 24 horas), é aluno da Universidade Americana do Iraque em Suleimania (AUIS), a qual tem um par de anos de existência. Ele aguardava por seu professor, Ryan, e me convidou para a visita que fariam ao museu.

Ryan e seu irmão, Jonathan, o qual estava de férias, chegaram alguns minutos depois e me juntei aos dois americanos que contavam com a simpática colaboração de Jack, nosso intérprete.

O Museu Nacional Amna Suraka foi, por 12 anos (1979-1991), sede do regime Ba’athista de Saddam em Suleimania. O quarteirão de 16.889 metros quadrados também foi utilizado como prisão, e centenas de curdos e iraquianos dissidentes foram torturados e assassinados naquele lugar.

Depois de visitarmos as salas de tortura e as celas, entramos numa sala com paredes revestidas por fragmentos de espelhos e iluminada por centenas de milhares de lampadazinhas no teto. Os 4500 pedaços de vidro simbolizavam as vilas curdas invadidas por Saddam. Já as 182 mil lâmpadas representavam os curdos assassinados pelo ditador.

Por fim, fomos ao subsolo de um dos prédios que continha fotos do massacre de Halabja de 1988, quando, sob o ataque de armas químicas, morreram mais de 5000 pessoas. Meu horror, naquele instante, pode ser comparado ao que senti quando visitei o Museu da Bomba Atômica, em Hiroshima, e o Museu do Holocausto, em Jerusalém.

No final de nossa visita, Ryan convidou-me para acompanhá-los até o Lago Ducan, um dos lugares mais lindos que visitei no Oriente Médio e que, sem dúvida, ocupa uma posição de destaque no meu ranking “Subhan Allah!”.

À noite, como estava com todo meu equipamento de viagem (a velha companheira mochila Risca e minha biblioteca móvel) porque pensei que talvez encontraria Abu Rashedi na rua, fui dormir no alojamento dos estudantes mantido pelo governo.

Como não havia aulas durante toda a semana por conta do ano novo curdo, o alojamento estava vazio e Jack me disse que em seu quarto havia duas camas livres.

A “república” deixaria qualquer morador do CRUSP com inveja: um enorme prédio de cinco andares com capacidade para mais de 400 pessoas, quartos com ar-condicionado para três pessoas, banheiro e cozinha para cada seis quartos e área de estudo.

Logo na entrada, uma cena comum do cotidiano iraquiano: soldados curdos assistiam à televisão e fumavam cigarros tão à vontade quanto em suas casas.

Além de Jack, outro dedicado estudante havia permanecido no alojamento para estudar, Peshawa. Não sei se vocês compreenderam a dimensão do significado de se perder a mais importante comemoração do calendário curdo para ficar estudando sozinho num prédio deserto. É como se, no Natal, ao invés de família reunida e banquete, tivéssemos apenas a companhia dos livros e cadernos que já nos acompanham todos os outros dias do ano.

Peshawa significa líder em curdo, e não tenho dúvida de que naquele prédio conheci a nata política, empresarial e intelectual iraquiana dos próximos dez, quinze anos. Ele tem vinte anos e nasceu no Irã por conta do atentado de Halabja. Contou-me que seus pais sobreviveram graças à direção do vento e que eles fugiram para a fronteira após um senhor chegar a sua casa no dia do ataque com a boca espumando.

No dia seguinte, fomos a mais tradicional casa de chá da cidade, Chaickanay Shaeb, onde mais de 150 homens se reuniam para tomar chá, jogar dominó ou cartas, ler jornal, assistir à televisão ou conversar. Nas paredes com uma porção de fotos de mártires curdos, uma saía do contexto: a da seleção brasileira conquistando seu pentacampeonato em 2002. Quando reparei nisto, Jack me fez o favor de lembrar que, em 2006, após a derrota para a França, três iraquianos cometeram suícidio.

À noite, voltamos ao alojamento e alguns estudantes já retornavam de suas cidades natais para as aulas que começariam dois dias depois. Estava no quarto de Peshawa com mais cinco jovens quando eles falaram de “terrorismo”, entre aspas porque é em sentido figurado. Entre eles, há um código de conduta que consiste em não falar sobre determinados assuntos, classificados como “terrorismo”.

Hiperbolicamente, conversas sobre mulheres, namoradas e sexo entre aqueles jovens é tão condenável quanto explosões suicidas, ataques à bomba... Postura que tem muito mais relação com os estudos do que com a religião muculmana. Daí já dá pra ver a seriedade dos caras.

Halabja

Fui com Caruan, colega de quarto de Jack, a Halabja, a uma hora de Suleimania. No ônibus encontrei o primeiro companheiro de mochilagem no Iraque, Joe, um canadense que vivi no Azerbaijão dando aulas de inglês.

Quando desembarcamos, Arsalan, outro estudante da AUSI, o qual nasceu em Halabja, já estava nos esperando. Fomos a sua casa e tomamos um chá com culinha, uns biscoitos com recheio de nozes e canela.

Em seguida, fomos ao novo monumento em homenagem aos mortos de 1988. O antigo foi destruído há alguns anos pelos moradores da cidade em protesto contra o governo, o qual, segundo Arsalan, Peshawa e todos os halabjanos que ouvi, não revertiam os fundos doados por organizações internacionais e governos de outros países para benifício da população.




Omer Hamar abraçando seu filho


Em seu interior havia fotos da comunidade antes e depois dos ataques. Uma delas, a de Omer Hamar abraçando seu filho de menos de um ano de idade após tentar salvá-lo, foi transformada em estátua e é um dos símbolos do massacre.



Mural com os nomes das vitimas


Voltamos para a casa de Arsalam para o almoço e pude conversar um pouco com seu pai. Ele me contou sobre o dia do ataque, quando perdeu uma filha que na época tinha três anos de idade, e sobre a fuga de sua família para o Irã. Demonstrou muita gratidão pelo país vizinho, que abriu suas fronteiras para acolher os refugiados curdos.

De volta a Arbil

Estava em uma livraria no centro da cidade procurando o filme Body of Lies por conta da atriz iraniana que compõe o elenco, recomendação de Jack, quando um curdo iraniano se prontificou a me mostrar onde poderia encontrá-lo.

Khalid não apenas me levou ao Mercado de DVDs piratas com todos os lançamentos de Hollywood, como me comprou o filme e me convidou para passar à noite no alojamento dos estudantes da Universidade de Arbil.

O prédio não era tão chique quanto os da AUSI, mas ainda assim o considerei mais confortável. No apartamento com dois cômodos moravam mais cinco colegas, todos do Irã.

Jantamos ao som de música persa e, depois da refeição, Khalid me perguntou se eu queria ver o jogo do Brasil contra o Equador. Respondi que preferia ver a atriz iraniana.



Hasam, Zelal, Khalid, Bawroz, Ayub e eu


Em seu laptop vimos Body of Lies. Não gostei tanto do filme, mas Golshifteh Farahani compensou. Khalid me disse que hoje, após a sua participação, ela está proibida de sair do Irã.

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Até havia me esquecido do título deste post, “Eu gosto de George Bush”. Eu ouvi a frase da boca dos estudantes da Universidade Americana de Suleimania, que, para suavizá-la, completaram com um, “Mas acho que Obama será melhor”. Depois de ouvir tantas histórias tristes envolvendo o povo curdo iraquiano, dá pra compreender o porquê, não?

Tem gente que acha que tirar Saddam Hussein do poder não foi lá grande coisa, afinal, não havia armas de destruição em massa no país. Por que mandar os americanos para cá então? “Deixassem curdos e xiitas morrerem até conseguirem resolver por si mesmos seus problemas”, pensavam calados os democratas e esquerdistas de pé-quebrado enquanto condenavam a imoralidade da guerra. Afinal, “a democracia não pode ser introduzida à força”.

Os xiitas, que antes viviam sobre a ditadura do regime Ba’thista, hoje podem, além de ir a Kerbala durante a Ashura (este ano, mais de 10 milhões de peregrinos passaram pela cidade), sair às ruas para pedir a saída dos soldados americanos que estão aqui para a sua própria segurança. Ou alguém acredita que o país estará mais seguro após a retirada das tropas americanas? Aqueles que acreditam nesta tese são os mesmos que colocam a culpa nos Estados Unidos quando uma sunita com explosivos presos ao corpo se explode no meio de uma mesquita xiita e mata dezenas de inocentes.

Os curdos, que conquistaram grande parte de sua liberdade no Iraque com a revolução de 1991, não escondem sua gratidão pelos Estados Unidos, não acreditam que o país esteja preparado para a retirada dos americanos, e estão sempre em alerta para a eclosão de uma eventual guerra civil no país. Acho que em matéria de segurança e sobrevivência, eles têm conhecimento de sobra para orientar Obama.

PS: detalhe importante. Perguntei a muitos curdos, “Se você estivesse no exterior, diria que é do Iraque ou do Curdistão?” Sempre obtive a mesma resposta: “Iraque!”

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