Thursday, January 29, 2009

O viajante e um egoista

Ha alguns dias lia a entrevista de Saramago para a Folha, ou melhor, lia os comentarios de Reinaldo Azevedo sobre ela.
Saramago disse que e um "comunista hormonal". Assim como cresce sua barba, assim como respira, assim como vai ao banheiro, ele e um comunista.
Quando li isto so nao fiquei com nojo porque fiz Federal (valeu, Maya, por esta perola!). Eu tambem, por alguns anos, pensei que era uma necessidadehumana votar no PT, assim como colaborar em projetos sociais e pensar em formas de "conscientizar" os que so se preocupam com suas vidas pessoais.
Ja a viagem possuia todo uma mistica romantica a la Che Guevara, mas isto foi antes de comecar esta viagem, Al hamd lellah (Gracas a Deus!)!
Muitos amigos meus tambem nao deixavam de fazer a relacao: perguntavam-me se iria fazer a mesma rota que Che quando sabiam que eu ia viajar pela America do Sul, e outros, criticos,imaginavam que esta "experiencia humanizadora" consistia em fumar maconha com gente pobre.
Essas coisas todas ecoaram na minha cabeca quando me vi no cenario que, ha tres anos, foi palco de meu mentor da mochilagem. O palco onde Zanini havia me contaminado com a paixao pela estrada.Estava na estacao de trem de Cairo aguardando o "newspaper train", uma maneira elegante para definir o ultimo trem que, no Brasil, seria chamado de "pinga-pinga".
Por conta do Festival do Sacrificio, que lembra a ocasiao em que Abraao estava disposto a sacrificar a Deus seu filho Isaac, a estacao estava lotada de gente que voltava para suas cidadespara celebrar a data. Eu me sentia na Estacao da Luz em final de expediente, com a pequena diferenca de que a viagem duraria 16 horas, ao inves de uma ate Parelheiros.
Tentei me misturar aos demais passageiros e fiquei longe de policiais com medo de ser impedido de viajar no trem exclusivo para egipcios (desde um atentado terrorista, se nao me engano em 2002,ha carros especificos para os turistas). Levei tres horas tentando comprar meu bilhete antecipado na terceira classe, ate descobrir esta proibicao. Assim, o jeito era tentar fazer como boa parte dos locais:entrar no vagao e pagar para o bilheteiro.
Minha cara, ate aquele momento, nao permitia que eu passasse despercebido e sempre alguem tentava puxar conversa comigo - em arabe, claro. Finalmente, apareceu alguem que falava ingles,Ambru Kara, e pode me ajudar na comunicao.
Nao sabiamos em qual das plataformas o trem chegaria e haviamos combinado com outros dois rapazes que sentariamos juntos, sendo que estes dois ficaram responsaveisde pegar lugar para mim e Ambru.
As 23h15 vimos o trem se aproximando. Quando percebemos que ele pararia na plataforma oposta, saltamos e cruzamos pelos trilhos mesmo, tudo numa questao de segundos.As pessoas nao esperavam o trem parar e tantavam entrar nos vagoes ainda em movimento para conseguir um bom lugar. Naquela loucura toda ja havia me perdido dos demaise optei por garantir o meu espaco.
Quando a porta de um dos vagoes passou por mim, pulei para dentro e nao tive duvidas de trepar no bagageiro. Estava tentando tirar a mochila das costas sentando no compartimentoquando um egipcio veio querer tomar meu lugar. Ele gritava em arabe e eu, em ingles. Percebendo que eu nao sairia de la, desceu para procurar lugar nos assentos, porqueo "setor horizontal" ja estava todo cheio.
Deitado a cinco palmos do teto, voltei meus pensamentos novamente para as razoes de estar ali. Conclui uma verdade obvia: o viajante e, antes de mais nada, um egoista. Nao ha nadade nobre, humanizador, em se viajar no pinga-pinga egipcio como poderiam imaginar os esquerdistas (e imaginava eu ao ver "Diarios de Motocicleta").
Naquele momento, tudo que queria era ser um local, e quanto menos as coisas se alterassem no cotidiano daquelas pessoas por conta de minha presenca, melhor. Nao queria mudar arealidade que presenciava, melhorar a vida daqueles individuos, ser um "agente transformador"... Tudo que desejava, no maximo, era um lugar no bagageiro.
A meia-noite e meia algumas pessoas ainda discutiam por assentos reservados, outras tantas viajavam de pe. A luz havia sido apagada e era possivel apenas se ver vultos e pontos luminososvermelhos: os cigarros acesos que competiam com o cheiro de urina.
Jantei deitado e tentei dormir. Pela primeria vez me passava por um local, e isto me realizava. Antes de dormir, pensei que ainda que no futuro o acumulo de"experiencias culturais" me facam ter uma dimensao da minha pequenez, nao terei sido menos egoista.

1 comment:

Anonymous said...

Eu achava que para os muculmanos o (quase) sacrificio nao teria sido de Isaac e sim de Ishmael...

(Pelo menos para a tradicao judaica Ishmael, o filho mais velho de Avraham, eh o "pai" dos povos arabes)