Thursday, January 29, 2009

Conhecendo Allah em Johaynath

As 8h30 da manha achei que ja era hora de sair de meu "esconderijo" (o bagageiro) e ter um pouco de paisagem, afinal, olhar para o teto do vagao nao era neum um pouco animador.
So nos poucos segundos que levei para para descer, todo o vagao ja havia reconhecido minha cara de forasteiro. Nao demorou muito e alguns jovens vieram se sentar ao meu lado.
Alguns minutos depois pude ver meu amigo Ambru Kara no outro vagao e me juntei a ele. Foi assim que conheci Tabet, rapaz de 30 anos que vive numa pequena vila de Esna, Johaynath.
Tabet queria que eu fosse com ele para sua vila passar o Festival do Sacrificio. Ja havia recebido outros dois convites antes para pousar em casas de recem-conhecidos, mas pelaprimeira vez fiquei realmente despreoupado com o fato de haver algum interesse secundario. Acho que o semblante de uma pessoa atesta toda sua ficha moral e Tabet tinha a expressaode um santo.
Infelizmente, nao estava disposto a mudar meu plano de ir a Aswan, porque isto me custariam alguns dias, e preferi fazer o seguinte acordo: iria a Aswan, ficaria duas noites la e,no sabado, estaria em Esna para passar o Festival, o qual comecaria no domingo.
Tabet ainda insistiu que eu fosse naquele mesmo dia, mas vendo que eu nao mudaria de ideia, apenas frisou: "Septi. Se Aruba. Mohammed Brazili." Querendo dizer que sabado, as 16h,quando eu chegasse na estacao, deveria ligar para ele e me apresentar como Mohammed Brazili,dado que meu arabe se restringia a dez palavras e seu ingles, a 20.
No sabado, cheguei exatamente as 16h na estacao. Tabet ja estava la me aguardando com uma galapeya (roupa masculina arabe) branca (ou era marrom?). Esna e uma cidade entre Luxor e Aswan, nao e muitovisitada por turistas e os cidados nao se vestem com trajes ocidentais.
Caminhamos por uma rua de terra movimentadissima, com vendedores ambulantes por toda a parte. Durante todo o percurso nao vi turista algum e isto me deixou muito feliz.
Passamos por um policial que, obviamente, abordou-nos. Nao compreendia o que Tabet e o guarda falavam, mas depois de meu amigo mostrar seu documento de identidade entendi que o policial queria que o acompanhassemos.Pesquei algumas palavras da dezena que aprendi e disse: "Sadick Tabet. Al hamd lellah!", que quer dizer, "Amigo Tabet. Gracas a Deus!" Dei um sorriso para o guarda e ele nos liberou.
Pegamos tres paus-de-arara e, uma hora depois, chegamos a Johaynath. Trata-se de uma vila bem pequena. Disseram-me que deve haver cerca de 3000 pessoas vivendo la, mas penso que o numero deve ser menor.
chegamos a casa de Tabet e eu fiquei numa salinha recebendo os cumprimentos de familiares e amigos. Um detalhe: todos eram homens ou meninos, nao fui apresentado a nenhuma mulher.
Como ja havia passado o horario do Magreb (quarta oracao matinal) e estavamos jejuando por conta da proximidade do Festival, foi nos servindo o desjejum: uma refeicao fartissimacom carne de frango, carne de vaca, feijao, repolho, arroz, dois tipos de pao, salada...
Fomos orar o Eishah (ultima oracao do dia) numa mesquita proxima e pude ver carrocas e poucos tratores estacionados a frente de algumas casas.
Fiquei um pouco receoso de estar naquela mesquita, mas fui realmente bem acolhido, sendo cumprimentado por quase todos os presentes.
Apos a oracao, tomamos cha na casa de um comerciante e, finalmente, conheci alguem que falava ingles, Issa, o qual se tornou meu interprete em Johaynath.
Naquela noite, ainda recusei convites para jantar novamente e outros para dormir em casas de amigos de Tabet.
Alem disso, joguei futebol com as criancas da vial que, pela primeira vez em minha modesta carreira futebolistica, faziam questao de que eu estivesse em seus times. Nem nas peladasde latinha do Juliao (ginasio) eu era o primeiro a ser escolhido...
Dormi numa cama de casal enorme e fiquei constrangido ao ver Tabet e seu irmao dormindo num "sofa" de madeira. Tabet me cobriu e seu irmao ligou o radio na estacao quefica 24 horas por dia recitando o Corao.
Naquele instante, passei a ser envolvido pela metafisica da cama (este movel em que fomos concebidos, temos nossos sonhos, choramos nossas dores e medimos nossos escrupulos).Senti-me como na cama de meus pais quando era colocado para dormir com oracoes apos algum pesadelo ou durante uma gripe, febre.
Uma lagrima de gratidao correu pelo meu rosto, mas nao tive mais tempo de continuar com meus pensamentos porque a hospitalidade dos habitantes de Johaynath e como uma sombradiurna que, a noite, instala-se ao pe da cama e recapitula a agenda do dia seguinte antes de dormir.Foi assim que Tabet se lembrou de que jejuarimos no dia seguinte, sendo melhor comer algo ate as quatro da manha, isto e, antes da primeira oracao.
Assim, ele se levantou e veio me explicar, com gestos, se eu preferia comer naquela hora, 22h32, ou depois - 1h, 2h ou 3h da manha! Sem sentir um pingo de fome, achei que seria melhor comer naquela hora do queacordar ele e as mulheres da familia durante a madrugada. As 23h estavamos comendo pao, melado de cana e queijo, e tomando leite com acucar.
No dia seguinte acordamos as 4h30 e fomos orar. Dormimos noavmente ate as 7h e fomos a fazenda. Em Johaynath se plantam tomates, beringelas, capim para os animais, cana de acucar, melao...Tudo com um sistema de irrigacao do deserto incrivel.




Membros da comunidade de Johaynath a frente da mesquita em que oravamos diariamente


Fomos ate a plantacao da familia de Mohammed, amigo de Tabet, e queria ajudar seu pai e seus irmaos a colherem capim, mas nao me deixaram. Em seguida, tomamos banho na Laem Sorna (aguas termais, a qual eu chamode "ofuro" ao ar livre) e fomos a casa de Mohammed para assistir aos hajis (peregrinos) em Mecca.
Laem Sorna, "Ofuro ao ar livre"
A noite, apos a ultima oracao do dia, reunimo-nos na casa de uma das autoridades islamicas da vila, onde criancas e adultos recitavam o Corao e faziam oracoes. EsporadicamenteIssa me traduzia o que era dito e, proximo do final, ele me disse que todos haviam orado para que Allah me proporcionasse tudo aquilo que desejava. Ao ouvi-lo, fiquei crispado de emocao.
No meu segundo dia na vila comecei a perceber que estava sendo objeto de disputa. Sentia-me um profeta, sem pretensao, ou, mais modestamente, um politico.Todos faziam questao de me cumprimentar ou convidar para um cha; as criancas me seguiam e anunciavam minha presenca...
Ja Mohhamed e Tabet pareciam meus acessores. Eles controlavam, e disputavam entre si, minha agenda. Muitas vezes eu recebi um convite de alguem e eles ja cortavam dizendo, "No time. No time."Em linhas gerais, eu so tinha vontade propria na hora de ir ao banheiro, e era colocado em situacoes embaracosas do tipo: "Voce vem comigo, ou vai com ele?"
Fiquei pensando no porque de toda aquela obsessao por mim e enetdi a razao quando Issa veio se despedir ao final de um dia. Disse-lhe qeu era muito cedo e pedi que ficasse mais um pouco,ao que ele respondeu: "Nao posso. Tenho mulher e filhos."
Uma das minhas maiores alegrias naquela pequena vila era conversar com Ahmed, irmao de Mohammed de apenas dez anos. Ele e eu tinhamos uma linguagem propria. Seu vocabulariose restringia a "Yes", "Ok" e "No", e, ainda assim, gracas as expressos faciais e entonacao de voz, travavamos dialogos infindaveis:


Ahmed: - Yes, Yes?

Eu: - Ok... Ok...

Ahmed: - No, No!

Eu: - Yes, yes, ok, ok!

Ahmed: - Ok, ok!

Eu: - Yes... Yes...



Ahmed Yes-Yes-Ok-Ok e suas irmas cortando capim para animais




No primeiro dia do festival fomos orar normalmente o Sohber as 5h07 e, as 7h, apos nos vestirmos com nossas melhores roupas (por melhores, em meu caso, voces ja sabem o queesperar), lavadas e passadas na vespera, e passarmos perfume e cera no cabelo, fomos fazer as oracoes para celebrar a data.






Dia do Festival do Sacrificio



A noite, fomos a mesquita de uma vila nubia (os nubios vieram do sul do Egito e do Norte do Sudao. Sao reconhecidos por sua pele mais escura) vizinha.Apos a oracao, deslocamo-nos a um salao onde autoridades islamicas da regiao fizeram uma serie de discursos.
Como em qualquer ocasiao como esta, enquanto alguns ouviam dando vivas de "Allah Al Akbar" (Allah e grandioso!), outros chochilavam com a cabeca rodando sobre o pesco como aquelas personagens de filme de terror que estao para serem exorcidas.
Em seguida, como uma boa comunidade egipcia, foi feita a premiacao das criancas que decoraram mais capitulos do Corao em 25 dias, bem como daqueles que se mais destacaram nasegunda paixao nacional, o futebol.





Autoridades islamicas da comunidade nubia


No dia seguinte nao passamos no teste de fe matinal: acordamos as sete horas da manha, deixando de fazer a primeira oracao na mesquita. Ainda assim, estiramos o tapete no chaovoltados para Mecca e oramos o Sobehr atrasado.
Apos tomar o cafe-da-manha, Mohammed, Tabet e eu fomos de moto a vila Nagh Abu Hamad. La conheci Maged, professor de ingles da escola local, com quem conversei a beira do Nilosobre o Isla, principalmente sobre o matrimonio.
Sempre qeu ouco sobre a proibicao da mulher de se casar com um "infiel", enquanto os homens podem se casar ate com quatro mulheres, inclusive nao mulcumanas, e inevitavel nao pensar na superioridade moral do ocidente cristao. Mas vez ou outra encontro alguem que fala: "O Isla diz que o homem pode se casar com ate quatro mulheres sobre a condicao deoferecer, a cada uma delas, os mesmos direitos e beneficios. Em relacao aos bens materiais, tudo bem, e possivel proporcionar as mesmas coisas. Mas e em relacao ao coracao?Isto, para mim, e impossivel!" Quando ouco isto, penso comigo mesmo: "Eis o grande homem. Senhor de si proprio."
Participei das atividades recreativas com os jovens da comunidade jogando um pouco de futebol e competindo num "Quiz" com perguntas sobre o Corao e futebol. No final, fizeramuma arrecadao de fundos entre os presentes para ajudar os palestinos de Gaza.
Voltamos a Johaynath e fomos direto a mesquita orar o Asser (terceira oracao diaria). Ao final, um vovo veio me dizer alguma coisa, que respondi com um "Shukran", obrigado, por conta denao ter entendido. Issa me explicou que ele estava me chamando a atencao por nao ter ido a mesquita rezar as duas oracoes anteriores. Encarei a repreensao como um carinho e fiquei lisonjeado.
Antes de partir, fui deixar as fotos que tirei com minha camera no computador da unica "Lan House" (entre aspas porque nenhum dos dois computadores tinham conexao a internet) de Johaynath e levei um susto ao ver minha imagem transformada em papel de parede. Alguem havia tirado minha foto e a estampado no desktop.
O adeus foi bem cruel. Enquanto me despedia da familia de Tabet e de Mohammed na frente de suas casa, outros vizinhos vinham chegando para dizer "As salam" (como tchau). Quando me virei para o pequeno Ahmed-Yes-Yes-Ok-Ok, ele me surpredeu com uma palavra nova em seu vocabulario: "Bye, bye, Mohammed Brazili!"
Na moto, com Tabet e Mohammed, ia acenando para as pessoas pelas quais passavamos, "As Salam! Shukran!". E, enquanto eu escondia minha cara quando cruzavamos com algum policial, com medo de sermos paradose dar problemas aos meus amigos, Mohammed me revelava sua preocupacao: "Voce promete que nunca se esquecera de nos?"
Como os condutores de mini-vans locais se recusaram a me levar com receio de receberem repreensoes da policia, fomos ate a ferroviaria de Esna. Nao havia previsao de hora para o proximo trem e, dado que estava na hora do Magreb (quarta oracao diaria), decidimos rezar na mesquita da estacao.
Prostrados com nossas testas no chao, ouvimos o barulho do trem se aproximando. O senhor que puxava a oracao deu uma acelerada e entrei no vagao com somente uma das meias nos pes e as botas nas maos.
Para mim, a vila de habitos singelos, pessoas calorosas e "ofuro" natural e um pedacinho de "Ganna" (Ceu). E, ainda que nao tenha me tornado islamico, posso dizer que em Johaynath conheci Allah.


Tabet e Mohammed antes do As Salam (adeus)

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