Tuesday, October 21, 2008

EVASIÓN DE FRONTERA (Ltda.)

As vezes, voces podem pensar que eu censuro partes que poderao me constranger, como idiotices, erros. Embora eu nao quisesse que isto entrasse em minha biografia, vou lhes contar uma coisa que espero que seja motivo de uma boa chacota etílica no futuro, a pesar de a indignacao ter turvado minha capacidade de projetar este fato como algo positivo.

Estava eu satisfeito em La Paz por conta de, pela primeira vez, ter a sensacao do progresso capitalista que me permite consumir sem a preocupacao de bater a cabeca no meu teto orcamentário, quando entrei no Departamento de Imigracao boliviano para pegar um “visto de recordacao” (para mim isto existe).

Somente depois de ser atendido pelo funcionario me dei conta da adaptacao fisiológica inconsciente pela qual meu organismo havia pasado. A mania de querer as coisas mais difíceis, desafiadoras, havia sido assimilada de tal forma pelo meu corpo que meu cerebro nao reagia mais a escolhas absurdas, idiotas… Era como se, na ausencia de emocoes externas, meus atos convergissem, ainda que estúpidamente, para a satisfacao desta necessidade.

Sem mais tergiversacoes, o fato é que eu havia entrado no país de maneira ilegal e deveria pagar uma multa de 280 bolivianos para nao ser deportado. Fiquei sentado no banco de espera por quase uma hora para restabelecer meus batimentos cardíacos. Foi o tempo de eu condenar qualquer tentativa ilícita de me safar (um funcionario tentava flertar comigo a grana da cerveja) e de vislumbrar penitencias a altura da burrada.

Se eu fosse um mexicano desempregado tentando ganhar a vida nos EUA, uma afega fugindo do fundamelismo taliba, ou até mesmo um boliviano perdido no Acre por conta do conflito político em Cobija, nao coraria diante da pregunta (a mesma que me fiz e que me farao) feita pela moca em que fui pagar a multa:
“¿Mas por qué evasión de frontera?”

Vou emoldurar e pregar na parede


Como explicar o raciocinio de uma decisao errada é mais difícil do que de uma correta, prefiro contar outra coisa idiota para que esquecam a estupidez anterior.

Já de volta ao alojamento repleto de vendedores, pensei comigo mesmo: “voce está no amago comercial de La Paz. Pessoas viajam centenas de quilómetros para levar mercadorías daqui e vender em suas ciudades. Deve haver alguma coisa que voce possa vender!”.

Antes de sair a procura de alguma coisa barata e nao volumosa fui conversar com Jose, funcionario do local, que me disse que era possível fazer algum dinheiro, a pesar de eu estar me dirigindo a uma regiao de frontera com o Peru. De qualquer maneira, sua idéia de me focar nos turistas me animou.

Assim, ao ver os Stickers, nao hesitei em inaugurar o negócio EVASIÓN DE FRONTERA Ltda., com o capital inicial de 75Bs (um pouco mais de 10 dólares) para a aquisacao de adesivos da Walt Disney, Puka-Puka, Hello Kitty, Vila Sésamo. Segue o briefing da empresa:

Missao: promover a felicidade dos gringos por meio do intercambio cultural proveniente dos Stickers com temas americanos, japoneses, brasileiros e bolivianos.

Visao: ser o melhor brasileiro, que pagou multa por evasao de fronteira da Bolivia, vendedor de Stickers da América do Sul.

Objetivos: fazer 15 dólares para amenizar a penitencia de reducao em 50% do orcamento diario.

Indicador de desempenho: dólares/dia.

Meta: 3,5 dólares/dia.

Balelas administrativas a parte, as quais podem parecer que o curso de administracao me serviu para algo mais além de me garantir uma cela especial (tá legal, é verdade que aprendi a usar a 12c também), o mais importante é que pude botar em prática um conceito financeiro muito bem lembrado pelo Allan (sempre instigando meu espírito) que deixaria profesores de financas orgulhosos: na ausencia de capital de giro, antes de recorrer a empréstimos a juros, é melhor atrasar o salário dos empregados (atrasei o soldo de meu único funcionario!).

PARENTESIS

Antes de continuar a falar de negocios, cabe um paresentesis. Na noite em que aconteceram estes fatos, um senhor se instalou em meu quarto. Era Davi, um campesino de Caranavi (Yunga), 38 anos, cinco filhos.
Ele voltava da caminhada de nove días dos manifestantes pró-Evo que se deslocaram de Cochabamba a Santa Cruz (principal Departamento opositor). Seus pés estavam cheio de feridas e ele caminhava vagarosamente apesar de ter tomando um “calmante” para aliviar a dor.
Conversamos animadamente até o primeiro pegar no sono. Eu quería saber sobre sua vida e as razoes de seu apoio a Evo; ele, sobre a cultura japonesa e os métodos para nao engordar.
Davi é um dos muitos yungueños que vive da platacao de coca nas montanhas andinas (cabe dizer que se trata, assim como no Perú, de producao legal). Ganha uma média de 40 soles (aprox. U$S5,00) por dia e desfruta de seu tempo livre tomando um “trago” que vai desde a venerada cerveja La Paceña, a álcool de cozinha misturado com agua.
Na televisao, em Brasiléia, as imagens da caminhada pró-Evo mostravam apenas dois homens armados. Segundo Davi, assim como ele, outros tantos campesinos guardavam armas em suas mochilas. Felizmente, o conflito contra os opositores se restringiu a xingamentos feitos por ambos os lados. Neste momento se ve como um conflito político pode descambar para um conflito racial. Entre palavroes como “mierda” e “carajo”, figurava a palabra “indio” (nao fui a Santa Cruz, mas outro viajante me disse que viu grafites com a imagen de Evo e a frase, “Indio de mierda”).
Basicamente, disse que é a favor do presidente porque ele quer acabar com os grandes latifundios, tirando terra de quem tem “em excesso”, para da-la a quem nao tem. Este tipo de discurso social-justiceiro é o que mais me assusta, principalmente quando feito pelo governo, que inebria as massas e se utiliza de aparentes meios democráticos para se perpetuar no poder (mais sobre isto no Equador). Nao tenho duvida de que a guerra civil que quase explodiu na Bolívia é culpa, em primeiro lugar, de Evo Morales.
Naquele mesmo dia, pela manha, havia ido ao Museu da Coca. Estava curioso para saber se em seu povoado havia “posos” (locais para a producao de cocaina), dado que as folhas de Cochabamba é que sao as mais usadas para fins ilegais (Evo iniciou sua vida política lá. Vejam o filme Evo Pueblo para saber mais nao somente sobre a vida sindical do atual presidente da Bolívia, mas também sobre o cultivo e uso da adorada folha de coca pelos andinos). A oportunidade de lhe perguntar aconteceu quando ele me inquiriu se já havia usado a droga. Respondi que nao e lhe perguntei o mesmo. Ele me disse que sim e que a droga é muito barata na regiao onde vive por ser produzida lá mesmo.
Antes de dormir, em relacao a sua preocupacao de nao engordar, dei o mesmo conselho que eu havia recebido em Yuba: “concentre-se nos destilados”, mas se por um lado tomar álcool de cozinha com agua nao faca engordar, por outro, os prejuizos para a saúde nao seriam piores do que a tradicional cerveja? Talvez seria melhor se eu tivesse dito para nao se preocupar com a barriga… ou consola-lo dizendo que o amor de sua esposa transcende aspectos físicos…




Davi, acabando de chegar da Marcha Pro-Evo



FECHA PARENTESIS

Início das operacoes

No onibus que peguei no dia seguinte para ir a Copacabana, Lago Titicaca, percebi que era a chande de dar início as atividades da empresa quando, numa parada, senhoras e mocos entoaram: “Jugos, jugos; naranjas, naranjas; pollo frito, pollo frito.” Ao coro afinado, juntou-se um acanhado “stickers, stickers”. Fiquei feliz quando a última pessoa a quem ofereci meu produto se prontificou a gastar 5Bs! Estava feita a venda inaugural, ainda por cima para um nicho de mercado diferente do que previa.


Turnaround

Finalmente em Copacabana, percebi o quanto havia me precipado em relacao a definicao do publico-alvo da empresa e fiz um dos maiores turnarounds do setor.
Sem a análise de mercado devida, julguei que o público-alvo mais receptivo seriam os estrangeiros, mas, depois de algumas tentativas, percebi que nem se eu dissesse I am starving, conseguiría sacar alguma coisa daqueles seres idolatrados e endeusados já tao assediados por locais com “Cómprame pan”, “Cómprame trucha”…

Hospedei-me em um alojamiento por 10soles e chorei pelo café-da-manha, uma xícara de café e um pao. A pesar de Dona Simona, uma senhora com mais de 80anos, ser severa nos negocios, ficamos muito amigos e ela até se tornou a primeira chola a comprar meus stickers.



Señora Simona



Aos sábados e domingos a cidade ficava cheia de turistas, bolivianos e gringos. Os primeiros, vinham para ceremonias religiosas realizadas na igreja – casamentos, missas, benzimento de veículos novos. Os segundos, para visitar as Ilhas do Sol e da Lua.

Tendo já adaptado os negocios, dedicava umas tres horas do dia para oferecer Stickers aos próprios vendedores locais. A mudanca de estratégia se revelou profícua quando, após dois días de venda, já havia recuperado o valor investido.

Oferecer stickers para os vendedores locais é ótimo porque:

1 – É uma boa protecao para o assédio. Se a pessoa fica a insistir, por exemplo, “Hay almuerzo completo”, “Cómprame postales”, eu revido, “Hay stickers” ou “Cómprame stickers”.

2 – Quando se quer comprar algo de um vendedor local, mostrar que se esta vendendo stickers é uma boa maneira de dizer: “eu nao sou um gringo cheio da grana”, o que favorece a negociao futura.

3 – Se pode conhecer os locais e fazer amizade. Foi o que ocorreu com Lucas, um menino de quatro anos, filho de uma vendedora de artesanato.
Eu estava vendendo stickers e pesquisando os precos dos gorros feitos com la de llama quando sua mae quis lhe comprar um sticker de abecedario (se soubesse, alias, havia comprado mais destes e menos de Smiles, porque foi o modelo que se vendou mais rapidamente). Lucas logo comecou a resmungar e percebi que isto ativara seu complexo de Édipo. Disse-lhe para nao ter medo de ir a escola, de se separar de sua mae, e resolvi presentea-lo com o sticker. Aí, pronto, fiz explodir seu complexo: o menino comecou a chorar copiosamente e a tentar rasagar o presente.
Achei melhor ganhar dois bolivianos a ver um desperdício e peguei de volta o produto. Mais tarde, quando passei para comprar meu gorro, o jovenzinho me emocionou ao querer andar comigo para me ajudar nas vendas. No final, ele vendeu um boliviano de mercadoría (como estavamos bem de capital de giro, paguei o salario devido).




Lucas, seu soldo e um sticker da alegria



4 – Se pode fazer escambo: papel higienico, pao, artesanato, almoco por stickers…

E mesmo para se fazer turismo era bom sempre ter em mao os stickers da alegría. Na Ilha do Sol, tudo era motivo para tirar dinheiro dos gringos. Assim, se voce sacava uma foto de uma paisagem e houvesse uma senhora, crianca ou llama na mesma direcao para o qual se apontara a camera, logo se ouvia: “Hay de pagar propina (gorjeta)”.
A pior coisa era quando chegavamos em alguma ruina, nítidamente sem nenhum tipo de manutencao, e uma senhora vinha com mesinha, banquinho e boleto cobrar entrada na saída. Ao invés de discutir com a chola que era um absurdo o que estava fazendo, saquei os stickers e falei “Mira, yo también necesito hacer plata”. E bastou para a senhora deixar eu ir embora.

No domingo de manha, sai cedo para cruzar a fronteira a pé (11 km). Dona Simona, a pesar de nao me deixar tomar banho naquele dia, disse que banho é apenas uma vez por hospedagem, quería me dar 2Bs para que eu pegasse uma kombi. Agradeci com um abraco e dei início a minha caminhada cruzando a zona rural de Copacabana. Passei por lindas planicies onde se cultivavam tubérculos e se criavam ovelhas, vacas e burros.



Zona rural de Copacabana


Tres horas depois, cheguei em Khasani, peguei meu selo de saída e entrei em Yunguyo, Perú. A idéia era chegar até o centro da cidade para se viajar em caminhao até Puno, a 130 km de lá.

Na caminhada, muitos triciclos buzinavam ou paravam procurando corrida, e por isto nao dei muita atencao quando uma van encostou ao meu lado e seu motorista me perguntou para aonde ia. Irritado, disse que nao quería seus servicos e, por bondade, o senhor insistiu e acabou me levando gratuitamente ate Puno. Isto me impressionou muito, porque na Bolivia era impossivel pegar carona na acepcao correta da palabra, ou seja, toda corrida era paga.

No caminho, conversamos sobre seus negocios, tem uma agencia de turismo em Puno, sobre o contrabando que rola entre os dois países – Bolívia e Perú, e sobre o “Chino” mais conhecido do país, Fujimori, que, a pesar de ter “metido la pata” (ter se dado mal no final [de seu governo]), é lembrado com saudades por muitos cidadaos peruanos.


No comments: