Friday, November 28, 2008

Faca o que te assusta

Cortando cabelo no banheiro do hotel Cucaracha


Pela manha, em Maicao (Colombia), resolvi caminhar os 14 km que me separavam da Venezuela. Depois de oito quilometros, consegui umacarona grudado na carroreceria lotada de uma caminhonete por conta de amaveis policiais colombianos que me deram arepa (massa feita com milho) e refrigerante.




Depois descobri que aquilo, o pau-de-arara, se chamava chirricherra e chegava ate Maracaibo, a tres horas da fronteira. Apos pegar minha estampa venezuela, evidentemente que tentei embarcar num destes "meios de transporte economicos".




A que parou para mim estava abarrotada de gente. Todos eram indigenas de Maracaibo. Fiquei com o corpo mais para fora do que para dentro do veiculo, com dois cabritos amarrados de pernas para o ar que esporadicamente mijavam e cagavam ao meu lado (ainda bem que bosta de "chivo" sao so umas bolinhas que quase nao cheiram). Eles seriama parrillada do dia seguinte daquelas familias. No caminho, passamos em varios controles policiais, e fomos parados em todos eles, nao porque eu estava com o corpo pra fora em cima de uma carroceria, mas porque eu tenho cara de chines ilegal... Fora um guarda que disse que meu passaporte era falso, nao tive mais problemas.




De Maracaibo peguei um onibus ate Caracas e fiquei no hotel mais barato do Lonely Planet (LP) para ver se teria condicoes de me hospedar com meus pais la - era domingo, e eles chegariam na terca de manha. O hotel nao era ruim, mas fui conferir outras opcoes. Venezuela e um pais muito caro para se viajar. A inflacao para este ano esta prevista em mais de 20% e a taxa de cambio fixa em 2.15 dificulta ainda mais, apesar de no mercado negro a cotacao ser de quatro bolivares fuertes para um dolar. Alem disso, na descricao das opcoes mais baratas de hospedagem do LP figuravam palavras como "cucarachas" e "love hotel". Apesar de ter visto quase 20 hoteis diferentes, os melhores custariam cerca de 150 dolares a habitacao triple, e ja estavam todos cheios. Os mais simples que tinham vagas nao aceitavam reservas de um dia para o outro.




Na segunda-feira, depois de uma tremanda chuva, fui para o aeroporto passar a noite la a espera de Dona Marlene e Oshima-san (Sr. Oshima). Como eles chegariam por volta das 5h15 seria muito caro ir de taxi pela manha. Chegando la, acomodei-me na praca de alimentacao em frente ao portao de desembarque, fiz umas pulseiras para passar o tempo e fui completando uma lista sobre o titulo "Faca o que te assusta!".




Apos enumerar algumas coisas bobas, refleti que o que mais me assustava naquele momento era largar os planos iniciais, me arriscar em nao receber de volta o dinheiro da passagem para o Egito e ir ao Panama para tentar o veleiro. Fiquei atonito, e como um religioso que recorre ao seu livro sagrado no momento da perdicao, peguei o livro de Herman Hesse (meus pais as vezes me dizem que vao ler os livros que estou lendo, preocupados com meu materialismo. Mas ha tanta espiritualidade em Hesse, Caeiro e Nietzsche quanto em Massaharu Taniguchi, Dalai Lama e Santo Agostinho).




Ja havia termindo de ler Siddharta e relido uma serie de suas passagens, e a cada releitura aprofundava minha compreensao sobre o que o autor queria dizer e o quanto aquilo estava inserido em minha realidade. Um dos trechos que mais me tocou naquele momento foi o da parte em que Siddharta anuncia a seu pai a decisao de sair de casa para partir com os samanas (ascetas), iniciando seu proprio caminho em busca da verdade.




O preceito "faca o que te assusta!" nunca esta sozinho. Ele vem acompanhado de uma constante recomendacao materna: "antes de fazer alguma coisa, lembre que voce tem pai, mae e irmao". Foi isso que me travou. Estava disposto a largar todos os planos, mas nao sabia o quao dificil seria para meus pais, principalmente para minha mae, saber que eu havia mudado o projeto inicial - que ja havia sido dificil de se assimilar -tao drasticamante. Preferi anular a busca por uma resposta, e dormi.




As 4h30 comecei a ter a sensacao de "encontro de namorados" que minha usou em um e-mail de uma semana atras quando dizia que estava fazendo as malas. Finalmente, as 5h45, meus pais chegaram e, se eu estava vivendo ate aquele momento nas CNTP (condicoes normais de temperatura e pressao), a partir dali passei a me sentir na cratera de um vulcao. A temperatura, lembrando a frase de Gautama que diz que e quente ter pai, mae, irmaos, subiu extrondosamente. E a pressao tambem, no sentido de responsabilidade, preocupacao e estresse por conta de me sentir tutor daquelas preciosas vidas num pais tao inseguro como a Venezuela.




Logo depois de trocarmos beijos e abracos, minha mae anunciou, resoluta: "Eu vim aqui para saber quando voce volta para casa!". E completou: "Eu fico preocupada porque me parece que com voce viajando por ai, isso pode se tornar algo como a reforma de uma casa". Referia-se ao processo tao costumeiro de mudar os projetos iniciais durante uma reforma, do tipo que se resolve do nada fazer um puxadinho aqui, uma churrasqueira ali; logo se passando para a piscina e, de repente, sem perceber, se esta no ofuro construido no meio do jardim japones.




Pegamos um taxi e fomos ate um hotel. Meus pais ficaram me esperando no carro e o recepcionista me informou que nao havia quartos livres. Depois de irmos a um outro, no qual a cena se repetiu, minha mae indagou: "Sera que nao e melhor voce tirar essa blusa?". Dei risada pensando que ela estava brincando ao se referir a minha jaqueta suja e costurada, e ao nao encontrar um sorriso como resposta, percebi que realmente ela acreditava que os recepcionistas podiam nao estar indo com a minha cara por conta das minhas roupas.




Ficamos num hotel bem simples que se inclui na categoria "cucarachas" do LP. Minha mae foi logo sacando as coisas que trouxe para mim e compunham metade das malas. Em seguida, cortou meu cabelo no banheiro do quarto, estando eu sentado na tampa da privada. No dia seguinte fomos a Ilha Margarida, menos caotica do que a capital, apesar de recebermos a companhia de Hugo Chavez que estava em campanha para os candidatos do PSUV (nao tenho nenhuma vontade de falar sobre isso. nao desejo nem a um militante do PSOL ou PC do B o mal de escutar um jingle que mais se parece "funk do Tio Hugo". Como nao ha palavras para se descrever o tremendo mal gosto, vou ver se acho na internet).




Foi otimo ficar na tranquilidade de uma praia caribenha, ouvir minha mae dizer que era bom para meu pai ter um momento de ferias como aquele, e ve-lo boiando com a cara para dentro d'agua. Alias, quando eu era pequeno e via o corpo do meu pai boiando enquanto ele prendia a respiracao, as vezes ficava com medo de ele morrer. Coisa de crianca. Desta vez, com 23 anos, senti uma enorme paz. Percebi que ele adora fazer isto pela sensacao de unidade que se tem com o mar. A mesma sensacao de unidade que talvez seja a busca de todo o ser humano. A busca de se sentir um com a natureza, um com o ser amado, um com Deus...




Meu pai me disse que um de seus amigos admirava meu despreendimento. Encarei como um elogio, apesar de nao ser asceta e ter a carencia de cerveja gelada em roda de bamba, para ficar nas coisas que posso citar. Mas o que talvez este senhor e os meus pais nao saibam e o quanto esta viagem aumentou meu sentimento de uniao com esta baixinha e este homem desengoncado que chamo, respectivamente, de mae e de pai. Dizem que so tendo filhos se pode compreender o amor dos pais, mas eu diria, despretensiosamente, que antecipei esta percepcao. Enfim, como voces sabem, posto do Egito... O Pacifico vai continuar la, a me esperar.

1 comment:

Anonymous said...

Este post ficou realmente emocionante..!