Wednesday, July 16, 2008

Campo Grande/MS - Se eu tremo?

Foi na Subprefeitura de Isla Margarida que conheci Tuna. Ele me disse que arranjaria carona até Jardim (Mato Grosso do Sul), a mais ou menos 250km de Porto Murtinho, para às 12h do dia seguinte, sábado.

Aguardei até às 13h já desesperançoso quando, logo após almoçar, ele liga avisando que estava indo me buscar. A carona do meio-dia não vingou, mas ele havia conseguido uma outra. Foi assim que conheci Oscar, dono de um barco de pesca no Pantanal (http://www.barcosantamaria.com.br/), e cheguei rapidamente em Jardim.

Tomei um tererê à frente de sua casa e fiquei feliz de não estar afoito para pegar carona. Por volta das 16h30, seus amigos me levaram até um posto na saída de Jardim. O terceiro caminhonheiro a quem fui recorrer inicialmente me respondeu que não iria para Campo Grande, mas depois perguntou: "você conhece o Tuna?". Tratava-se da referida carona das 12h.

César possui um mercado em Porto Murtinho, mas mora em Jardim. Todos os sábados ele saí de Porto Murtinho, passa em sua casa em Jardim e vai ao Ceasa de Campo Grande. Naquele dia, por dar carona a duas pessoas, não pôde me levar até Jardim, mas me levaria até Campo Grande por conta de uma bolsa que esquecera. Ele já havia saído de casa quando sua esposa ligou dizendo que esquecera a bolsa. Assim, encostou no posto aguardando que o motoboy a levasse até ele. Foi o tempo de eu chegar e encontrá-lo.

Cheguei em Campo Grande por volta das 19h30. César me deixou próximo à rodoviária. Fui fazer o reconhecimento e, triste constatação, era uma das piores que já havia visto, só perdendo para a de Brasília. Fui pesquisar os preços dos hotéis em seu entorno, mas nenhum sairia por menos de R$10,00. Dado que era sábado, estava curioso para conhecer a tradicional feirona no qual os campo grandenses se reuniam para comer sobá (um prato japonês feito com macarrão, carne de porco e cebolinha). Também pensei que a feira fosse 24h e que talvez pudesse dormir lá.

Invejei a feira, dado que não há nada parecido nas noites de sabado paulistana. Num galpão enorme, inúmeras barracas, a maioria de japoneses, oferecem desde caldo de piranha até sobá. É um bom ponto de encontro de jovens, adultos, famílias e casais de namorados.

Peguei alguns mapas num guichê de informações turísticas e verifiquei se a feira era realmente 24h. Infelizmente não era, então preferi voltar à rodoviária. Ao menos me instalaria à frente de um posto policial. Eram 22h30 quando fui me apresentar aos policiais e avisar que passaria a noite no banco do lado de fora. Ao informá-los, o Policial Bastos respondeu: "Não. Cê treme." Achei que ele estivesse tirando uma com a minha cara e perguntei, "se eu tremo?". Até que ele me explico que CETREMI significava Centro de Triagem e APOIO (talvez seja Encaminhamento, vi os dois) do Migrante, o que na verdade era um albergue para desabrigados (que não necessariamente são migrantes).

Informou-me que a kombi passaria por volta das 23h e que poderia esperar no banco do lado de fora. Havia um outro senhor que também iria para lá e aguardava o transporte. Ele estava indo à Cuiabá, mas por falta de dinheiro só conseguira chegar até Campo Grande. Por volta das 23h30 a kombi chegou. Mais dois jovens se reuniriam a nós, Mateus e Juan. Eram de Floripa e estavam viajando desde fevereiro. Iriam a um encontro de malabaristas na Bolívia.

A kombi faria ronda pela cidade por mais uma hora e meia, mais ou menos, mas não me importei porque ouvia atentamente os relatos de viagem dos caras. Duas histórias me impressionaram bastante. A primeira, em Buenos Aires, estação de trêm Constituición. Era de madrugada e Juan aguardava a estação abrir para retornar para casa do trabalho de garçom, quando um garoto de mais ou menos seis anos de idade sentou-se ao seu lado e começou a puxar papo. Juan desconfiou, mas não interrompeou a iniciativa. O menino diz, "quer ver o que ganhei hoje?", Juan se assusta e fala que não, mas o garoto já havia aberto o bolso e pegado seu objeto de triunfo "Olha só: trinta pesos. E são meus!". No fundo, o menino só queria contar para alguém sua vitória.

A outra aconteceu na Chacarita, a favela de Asunción que fica atrás do Congresso Nacional. Os dois acompanhavam a realização de um trabalho voluntário na comunidade. Um filipino tirava algumas fotos para serem utilizadas posteriormente na captação de patrocínios para o projeto quando uma mulher, de maneira meiga e vaidosa, pede a ele que saque uma foto. O filipino a fotografa e em seguida a feição da mulher muda completamente. Ela lhe pergunta de forma irônica, "E como você vai fazer pra me dar a foto?", e avança sobre o cara. Nisto, durante a disputa entre o filipiano e a mulher da Chacarita, um cara saca uma arma e aponta para a cabeça do filipino exigindo que ele lhe entregue a câmera. No final, fogem a mulher e o homem armado brigando para ver quem ficaria com o objeto.

Chegando nas instalações do centro, o qual fica próximo ao Parque dos Poderes (onde estão o executivo, judiciário e legislativo de MS), percebi que o CETREMI possuía um complemento não divulgado em sua nomenclatura: Centro de Triagem e Apoio ao Migrante e ao Morador de Rua. Para mim não mudou nada, dado que já imaginava isto por conhecer um albergue de São Paulo.

Já era 1h15 da manhã quando fui fazer minha ficha. Recebi meio sabonete e um corbertor e fui procurar uma cama. O albergue nada se parecia com o que conheci em Córdoba: o banheiro era extremamente sujo (havia roupa jogada no chão, o ralo estava entupido, o cheiro era péssimo); não havia lençóis para cobrir as camas, tão pouco travesseiros e fronhas; toalhas não eram disponibilizadas; as regras e os horários não estavam devidamente divulgados em um informativo; os horários estipulados não eram cumpridos; o albergue estava cheio mesmo sendo sábado.

Na manhã do dia seguinte entenderia que, apesar de não ser o caso da maioria, o CETREMIMOR (abreviação correta) estava mais para uma clínica de reabilitação do que para um albergue. Distante do centro da cidade e em uma enorme área verde, o Centro não determinava o horário de saída dos alojados (como em Córdoba, a qual era às 8h), mas sim, exigia autorização para sua saída. Dessa forma, se eu quisesse sair de lá, deveria ter autorização da assistente social de plantão. Além disso, após o café, todos deveriam colaborar para a limpeza do local. Não achei isto injusto, mas soou como algo para fazer passar o tempo, assim como o futebolzinho e a tevê, era quase que uma terapia.

Por parte dos albergados, logo pela manhã se podia sentir o cheiro de maconha no ar. Eles iam para os fundos dar um tapa durante a limpeza. Conversei com muitos viciados, tanto em drogas lícitas quanto ilícitas. Um deles, alcóolatra, 27 internações, explicou-me sobre o método dos 12 passos para recuperação de depedentes químicos e falou-me sobre sua vontade de se tornar coordenador. Outro, apelidado de China por conta de ter seus olhos fechados de tanto fumar baseado, perguntou-me se eu fumava.

O poder executivo local necessita rever seus conceitos. Se o CETREMIMOR é meramente um albergue, não deve controlar seus usuários, mas sim, estipular um horário máximo de saída para eles, drogados ou não, migrantes ou conterrâneos. Também não faz sentido exigir que os albergados não venham drogados (refiro-me ao álcool também) se a função da ronda é recolher TODOS os moradores de rua, sem exceção. Se a política é dar abrigo, não importa a condição. Agora, deve-se exigir e fiscalizar que não se usem drogas nas instalações do Centro.

Outro ponto importante é o respeito aos albergados. Por um lado, os funcionários fazem exigências a eles, mas por outro, não cumprem devidamente as suas obrigações. Respeitar os horários das refeições, realizar um atendimento bom e educado, manter as instalações limpas e proporcionar uma boa noite de sono, dado que se trata de um lugar para dormir, concedendo roupas de cama limpas, são coisas básicas que não acontecem.


Enfim, por volta das 9h de domingo, terminada a limpeza e tendo ouvido inúmeros comentários do tipo "olha só, é a primeira vez que vejo um japonês no trecho" ou perguntas como "você fugiu de casa? Brigou com seus pais?", solicitei minha autorização de saída para conhecer o Parque dos Poderes. Logo depois de atravessar o portão, dou de cara com um bêbado (que não estava alojado no CETREMIMOR). Lembrei-me do comentário feito por Juan, o jovem malabarista que estava indo para a Bolívia, minutos atrás durante a limpeza, acerca dos inúmeros bêbados vistos na rodoviária na noite anterior, os quais se assemelhavam ao Jeremias dos vídeos do YouTube.

Este Jeremias estava sobre uma bicicleta, com a mala nas costas e a garrafa de pinga na mão. Acompanhou-me por 1km desabafando seus problemas amorosos. Havia acabado de brigar (apanhar na verdade) com a (da) mulher. Estava totalmente arrasado, com um buraco enorme no peito por conta de um arranhão e com o olho esquerdo inchado devido a uma tamancada. Achava que eu era índigena e assistente social do Centro, "Meu vô sempre falava que os índigenas são pessoas boas. Você é assistente social, né?". E percebi o quanto ele estava desemparado quando afirmou ,"Graças a Deus eu tenho minha mãe. Só tenho ela. Se ela morrer... o que vai ser de mim?". Alguns minutos depois continuaria minha caminhada sozinho, pois o Jeremias estava muito cansado.

O passeio pelo Parque dos Poderes só duraria até às 11h, horário de almoço, quando deveria retornar ao Centro. Um policial explicou-me um caminho mais longo e tive que correr para não me atrasar. Cheguei às 11h03 e o almoço foi servido às 11h40. À tarde, encerraria meu período de hospedagem no Centro, pois queria caminhar até a rodoviária para conhecer a cidade. Também havia marcado de me encontrar com um estudante de jornalismo que havia conhecido na noite anterior, Joseph. No caminho, encontraria os malabaristas albergados se apresntando nos faróis. Deu vontade de aprender malabaris ao vê-los fazer R$10 em 20 minutos, mas sabia que não tinha paciência para isso.

Sentado no mesmo banco à frente do posto policial da rodoviária que seria minha cama na noite anterior, conversei com Joseph das 17h às 18h30. Estava esperançoso de receber um convite que não ocorreu, e peguei a kombi do CETREMIMOR novamente. Havia apenas um rapaz sentado no banco traseiro. Achei-o muito jovem e um pouco assustado e tentei puxar conversa. Imaginei que de repente pudesse estar receoso de ir ao Centro. Disse que tinha 19 anos e não era de Campo Grande; queria voltar para casa, mas acontecera um "desacerto". É, eu também não entendi, e percebi que cada vez que ele falava em "desacerto", havia um tom melancólico em sua voz e uma decepção em seu olhar.

Continuei insistindo e ele confessou: ficou preso durante um ano por 55 (furto). Percebi que falava com sinceridade sobre seu arrependimento e estendi minha mão para cumprimentá-lo pela soltura. Talvez desnecessariamente, mas não pude me conter, perguntei qual era seu maior desejo naquele momento e ele me respondeu que era ficar com sua família. Espero que esteja com sua mãe agora e tenha realizado sua vontade.

Outras surpresas nos aguardariam. A kombi havia recebido uma denúncia de um senhor que não sabia voltar para casa. Tratava-se de Seu José, portador de Alzheimer que desde às 15h, eram 20h quando chegamos ao lugar denunciado, estava na rua perdido. O procedimento padrão dos assistentes sociais é se dirigir a um posto de saúde para procurar o cadastro da vítima no SUS. Foi engraçado quando paramos na frente do posto e, alguns minutos depois, a jovem que estava parada na frente da kombi veio falar com o senhor, "Seu José, quê cê tá fazendo aqui? Tá todo mundo te procurando." Era a namorada de seu filho.

Descoberto o local de sua residência, fiquei mais tranquilo para conversar com ele. Falou-me sobre suas filhas, disse-me que tinha 32 anos de idade e me perguntou, "uma filha tem... 12 mais 1 é 13, né?". Fiquei decepcionado ao ver a reação da família quando o levamos para casa. Sua mulher estava com uma cara-fechada que dava medo. Parecia que tínhamos levado a ela um estorvo, e ao invés de ouvir as recomendações da assistente, tentava banalizar o fato dizendo que o velho sempre fazia aquilo.

Enfim, depois de fazer um tour nada convencional pela cidade, ver um cara que se fingia de bêbado para não apanhar e conhecer as quebradas de Campo Grande, dormiria (tentaria dormir) mais uma vez no CETREMIMOR. Novamente a noite foi difícil. Se não era pela coceira, era pelo cheiro de maconha. Havia um viciado duas camas ao meu lado que de tempos em tempos acendia um back, fumava, e voltava a dormir.

4 comments:

Anonymous said...

Fernando.
Estamos contigo nessa sua estrada. Tudo bem? sung choi.

Daniella Almeida said...

Querido, ler seu blog virou quase um vício.
Pelo menos assim dá pra descobrir o que você anda aprontando... ou o que o mundo anda aprontando com você rs e matar as saudades.
Você está escrevendo muito bem! =]
Se cuide, não deixe de escrever.
Muitas saudades e um grande beijo!
Dani

Unknown said...

Oshima,

Só descobri seu blog hoje. O Allan que me contou. Quanto perrengue! To com inveja do seu orçamento... Fico honrado por ter sido citado em alguns posts.
Em dezembro irei p Venezuela. Alguma chance de te encontrar lá?

Saudades, um abraço e votos de sorte nessa jornada.

Cassio

Lourdinha Campos said...

Fernando,

Saudade de você, só para variar! Adorei o seu blog. Já o adicionei aos meus "favoritos". Que lugar é este que você foi parar, hein? (CETREMIMOR) Que experiência! Adorei ler as suas aventuras e obrigada pela dica de não tirar fotos de pessoas estranhas. Posso ficar sem a minha máquina, né? Todo cuidado é pouco...

Beijos, Lourdinha de BH.