Wednesday, July 16, 2008

Adeus, Nikon! Muito prazer, Aguapé!

A família Blanca mora em Formosa, na província argentina de mesmo nome. Iam a avó, a mãe e a filha (Rosa, 21) visitar Gustavo e sua esposa, irmão de Rosa, que teriam seu segundo filho na cidade de Luque, próxima à Asunción.

Troquei os 3,20 pesos que me restavam por 4000 Guaranis, mas ainda faltavam Gs1000 para poder pegar o ônibus até a rodoviária de Asunción, na qual passaria minha primeira noite no Paraguay. Graças a avó Blanca, pude pagar o transporte e, assim, tomamos o mesmo ônibus. No caminho elas me ofereçam Coca e biscoitos, além disso, Rosa me presentou com um pote de doce de leite, o qual se tornaria minha janta junto com o pão que havia na mochila. Trocamos contatos e combinamos de nos ver domingo (estavmos na quinta-feira).

Na rodoviária, fiz o reconhecimento de praxe e verifiquei que seria tranqüilo passar a noite lá. Como não queria gastar Gs1000 (R$0,44) para usar o banheiro e ainda era cedo, 19h30, fui procurar algum posto de gasolina nas redondezas. Encontrei um posto, pedi informações, usei o banheiro e enchi minha garrafinha de água. Também descobri que de lá partiam ônibus até a fronteira com o Brasil, em Pedro Juan Caballero, que poderia se tornar uma opção de transporte no futuro.

No dia seguinte, iria procurar abrigo na Seicho-No-Ie, que está próxima ao porto, no centro da cidade. Às 8h pedia informação no ponto de ônibus a uma senhora grávida quando o resonsável por minha decepção começou a acontecer. Subi no ônibus, que estava lotado, e a senhora instalou-se ao meu lado direito. Ela continuava a me explicar o percurso enquanto muitas pessoas trocavam empurrões para passar para os fundos. Não se passarm nem dez minutos quando verifiquei que o case de minha camera estava para fora do bolso, suspenso pelo gancho preso à calça. Era tarde demais, haviam levado-me a câmera. Tinha suspeitas de quem fosse e pensei em descer do ônibus e correr em direção aos pontos pelos quais havíamos passado, mas como não tinha certeza das feições do muchacho, achei melhor seguir meu caminho.

Fui à SNI me lamentando, não podia acreditar que com somente dois meses de uso já havia perdido o ativo mais caro e importante da viagem. Havia perdido registros de B. Aires, B. Blanca, Viedma, Carmen de Patagones, Trem Patagônico, Bariloche, Neuquén, Mendoza, Córdoba, Costa Blanca, Sgo Del Estero, Resistência. Só não perdi Yuba porque havia feito um dvd em B. Aires.

O fato de eu não ter podido fazer nada foi o que mais me perturbou. É péssimo se dar conta de algo que aconteceu só depois de seu desenrolar. Fui traído pela minha sensação de segurança, e estava me sentido um "boludo" (idiota). Estava tão envergonhado comigo mesmo que era incapaz de olhar para as pessoas. Cada rosto se tornava uma perturbadora inquisição.

Não quero dizer que preferiria ser roubado de outra maneira, mas a sensação que tive neste furto foi pior do que das vezes em que fui assaltado com arma, faca ou ameaças. Não se tratava de se estar puto com o responsável por isto, mas de se estar inconformado com o meu próprio descuido, que parecia me tornar o réu, e não a vítima, da situação. Não foi fácil conter as lágrimas, e preferi, naquele momento, não contar nada a ninguém.

Se não bastasse, quando já estava com a cara na sarjeta, levei uma bica: ao chegar na SNI, percebi que o meu presumido "bolso mais seguro da calça" estava aberto. O cara também havia levado Gs30.000 (R$13,00). Sabia que quando se viaja desta forma deve-se estar predisposto a assaltos, agressões... mas não estava preparado para isto. E o pior era ter achado que estava.

Às 9h, o Sr. José, vice-presidente da SNI de Asunción, chegou e eu recebi uma negativa no momento em que mais desejava um lugar tranquilo para ficar. Ao menos pude tomar banho e lavar minhas roupas (coisa que não fazia há um mês). Informaram-se que às 12h seria feita a siesta e, portanto, o prédio seria fechado. Assim, fiz uma oração e fui conhecer Asunción de bermuda e chinelo (todo o resto estava estendido para secar).

Saí decidido a ir direto ao porto buscar carona de barco até a fronteira com o Brasil. Lá vi um barco com porte suficiente para percorrer o trajeto (era o único, na verdade). Fui falar com seu comissário, Sr. Antonio, que me sugeriu pegar um ônibus. Contei-lhe o que havia acontecido e disse que poderia trabalhar no barco durante a viagem. Respondeu-me que eu deveria estar lá no dia seguinte , sexta-feira, às 16h. O barco monotor Aguapé partiria às 19h rumo à Isla Margarida, à frente de Porto Murtinho (Mato Grosso do Sul).

Fiquei radiante de alegria e aquilo possibilitou que eu aproveitasse mais o passeio pela cidade. Impressionou-me o Palácio Solano López (Palácio do Governo), construído à semelhança do Palácio de Versalles. Também a favela Chacarita me surpreendeu por estar às margens do R. Paraguai, lgo atrás das principais construções da cidade: Congresso Nacional, Cabildo, Palácio do Governo. O descaso dos políticos com aquela população vizinha era uma redução simbólica do descaso, principalmente, com o Chaco paraguaio. Os congressistas e o executivo naquele momento estavam mais preocupados com a renúncia de Nicanor Frutos do que com a paisagem que pode ser vista há anos pela janela de seus gabinetes.

Naquele dia, como disse, não queria passar mais uma noite no terminal. Então pensei muito se devia ou não ligar para Rosa pedindo abrigo. Acabei ligando e, apesar de não ter conseguido um lugar para ficar, marcamos de nos vermos no dia seguinte no Shopping Del Sol. Antes de me dirigir à rodoviária, liguei para os meus pais explicando que talvez não pudesse ligar no dia sete, aniversário de meu pai, como havia prometido porque talvez ainda estivesse no Aguapé. Gostaria de ter ligado em um momento melhor, e diante de tamanha compreensão e apoio (disseram-me para não me preocupar com o dinheiro utilizado na compra de uma câmera nova, valorizaram o fato de eu estar bem), confesso que meus olhos marejaram novamente.

Não fui direto à rodoviária, primeiro passei no posto para verificar se os ônibus que saiam de lá faziam parada na cidade de Concepción (400 km ao norte de Asunción) antes de ir à Pedro Juan Caballero. Estava preocupado com o carimbo de saída do país, que, segundo o próprio departamento de imigração paraguaio, não poderia ser obtido em Isla Margarida (destino do Aguapé). Assim, pensava em ir de barco somente até Concepción e de lá pegar um ônibus até Pedro Juan.

No posto encontrei o senhor (chamado Guido) com quem havia conversado na noite anterior. Ele me perguntou se eu havia seguido sua dica de um lugar para passar a noite e respondi que não, que havia dormido na rodoviária. Ao ouvir isto, o Sr. Guido, dono do posto (só soube depois), mostrou-me uma espécie de armário para vassouras do lado de fora do posto com a largura do meu ombro e cumprimento de mais ou menos dois metros . Dentro dele havia papelão forrado no chão e uma colchonete. Disse que eu poderia passar a noite lá, mas pensou melhor e me levou para um quartinho grande o suficiente para conter um armário e uma beliche. Disse-me que poderia dormir na cama de cima dado que os dois funcionários da noite se revezavam no trabalho. Assim tive meu desejo realizado e não dormi no banco da rodoviária.

Mais tarde, em um banco atrás do posto, sentei-me ao lado de um tímido garoto de onze anos para jantar (pão com doce de leite). Perguntei-lhe se já havia comido e respondeu que não. Reparti meu pão e percebi que o menino comia de forma afoita. Depois descobri que o garoto se chama Luiz e dormia há alguns anos naquele armário de vassouras que poderia ter sido meu quarto. Por algum motivo o menino não queria mais viver com sua mãe, que tinha conhecimento de que ele dormia lá.

No dia seguinte, dirigi-me ao Shopping no qual encontraria Rosa às 13h. Ela convidou-me para ir ao Mercado 4, que se parece com o Shopping 25 de março, amontoado com as feiras de domingo de São Paulo e o Largo da Batata. Lá, comi a famosa sopa paraguaya (um bolo salgado feito de milho, ovos e farinha), butifarra (linguiça de cervo), mandioca (base da alimentação paraguaya, acompanha todas as refeições) e dulce de maiz (doce de amendoim). Se não bastasse, concedeu-me uma recordação do Paraguay, um recipiente de madeira envolto por couro para se tomar mate.

Despedimo-nos por volta das 15h45 e fui para a direção do porto. Minha ansiedade de embarcar no Aguapé lembrou-me daquela sensação que se tem de criança às vésperas de viajar com o pai para pescar. Ao mesmo tempo, estava com receio de que por alguma razão o comissãrio voltasse atrás e desfizesse o trato. De qualquer forma, fui ao supermercado e comprei laranjas, bananas e pão por aprox Gs10.000 (R$4,50). Não sabia qual seria o esquema das refeições no barco, mas não queria chegar de mãos vazias.

Fiquei exultante de alegria quando mirei o Aguapé ainda atracado no porto. Eram 17h e praticamente quase tudo já havia sido carregado. Fui cumprimentando os marinheiros, pedindo desculpas pelo atraso e perguntando o que podia fazer para ajudar. E foi só quando acomodei minhas coisas no barco e fiz meu primeiro esforço para carregar alguma mercadoria sem ninguém chamar minha atenção, é que tive a certeza de que seria um de seus tripulantes.

Carregamos 22 motos, entre Biz e CGs, rolos enormes de cano de plástico e alguns móveis. Às 18h30 o barco estava pronto para iniciar a viagem. Acompanhei os marinheiros Palácio e Renato até o supermercado, no qual comprariam pão, biscoito, papel higiênico, xampu, sabonete etc, antes de partir. Por volta das 19h10 deixávamos Asunción. Começaria uma das partes mais bonitas da viagem deixando para trás minha Nikon... Ainda assim, não tive muito tempo para lamentar. Ao entrar na cozinha, recebi a acolhedora boas-vindas que sinalizaram que me daria bem na embarcação: ela olhou para mim e eu sorri para ela. Nunca foi tão poético lavar louças... à frente, a lua crescente e as Três Marias; atrás, as luzes de Asunción e seu belo Palácio de Governo.

Desceríamos o Rio Paraguay até San Antonio para pegarmos duas barcaças (Lili e Reina del Mar) vazias que seriam carregadas com pedra em Vallemi, antes de subi-lo em direção à Concepcion, nossa primeira parada.

Eu era o sétimo elemento do B/M Aguapé: quatro marinheiros, dois deles com suas respectivas namoradas, e eu. Tornei-me muito amigo do marinheiro Renato, 24, que aparenta ser mais velho por conta de sua enorme força. Durante a viagem, de praticamente tudo aquilo que Renato consumia, concedia-me 1/3.

Nos três primeiros dias de viagem (sábado, domingo e segunda), limparíamos as embarcações que transportam pedras. Trata-se de um trabalho pesado, pois tínhamos que tirar com pás as pedras e areia que restavam no interior da embarcaçao, e lançá-las para fora, no rio. Minha mão ainda estava calejada de Yuba, mas ainda assim ganhei novas recordações. Dado que o barco é um verdadeiro circuito de armadilhas, além dos calos das mãos, ganhei queimaduras no braço (enconstrei três vezes no escapamento do barco) e galos na cabeça. Nada grave.

Mesmo com este trabalho, a viagem estava sendo um verdadeiro cruzeiro. Fazia quatro refeições ao dia, dormia em cama (um marinheiro estava de férias), tomava banho diariamente e ainda lavava roupa com OMO. Sem contar que de vez em quando bebia cerveja. No domingo, por exemplo, após trabalhar na limpeza da Lili, tomei quatro latinhas de Brahma Paraguaya. Um saldo que dificilmente será superado na viagem.

Na terça-feira, atracamos em Concepción. Tinha que tomar uma importante decisão: continuar no Aguapé por mais três dias e arriscar de talvez não conseguir carimbo de saída em Isla Margarida, conforme o Depto de Imigração Paraguaia havia me informado; ou descer em Concepción e continuar a viagem por via terrestre. Os marinheiros diziam que muitos turistas já haviam viajado com eles e sempre conseguiam o carimbo em Isla... A verdade era que queria continuar no Aguapé... e preferi me arriscar.

A decisão se mostrou correta, pois na verdade o contato do Aguapé com o povo paraguayo só estava começando. Havia muita coisa a ser descarregada, inclusive no Chaco Paraguayo, região que, nas minhas condições, só poderia ser conhecida de barco mesmo.

Em Concepción embarcaram o comissário, Sr. Antonio, sua namorada e um oficial da marinha Paraguaya que também iria ate Isla Margarida. A partir de lá comecei a enxergar a pobreza do povo paraguaio. Concepción ao menos possuía ruas pavimentadas, ainda que, como eu veria no Chaco, a carroça puxada pelo burro de carga fosse um dos principais meios de transporte.

Desde o começo, quando vi a pistola na cintura do Sub Oficial Benitz, fiquei incomodado. Talvez fosse um pressentimento do que estaria por vir à noite. Ele e eu jantamos juntos e, enquanto ele arrumava as coisas para se banhar, eu subi para me deitar. Já estava dormindo quando Renato, o marinheiro, veio me perguntar se por um acaso não teria pegado a carteira do oficial por engano. Respondi que não. Logo depois aparece o muchacho sozinho. Arma na cintura, dedo em riste, afirmava com convicção que eu havia roubado sua carteira e exigia que eu a devolvesse. Disse que não havia pego nada e ele disse que queria revistar minha cama. Comecei a pensar em teorias conspiratórias e chamei Renato para testemunhar a cena.

Minutos depois o oficial desceria para a cozinha junto com outro marinheiro e encontraria sua carteira caída debaixo do freezer. Isto me tranquilizou um pouco, mas continuava extremamente ofendido. Instantes depois ele veio se desculpar, mas insistia que alguém a havia pego. O fato me fez refletir sobre o furto de Assunción e nas consequências de um ato inquisidor que eu poderia ter cometido caso eu tive ido atrás do suposto rapaz que me roubou a câmera. Com certeza eu não saberia exatamente quem foi e, pensar que poderia fazer aquela injustiça a alguém me deixou mais tranquilo por ter me resignado com a situação.


O primeiro porto em que descarregamos coisas foi o Puerto Pinasco. Chegamos por volta das 21h de quarta-feira e teríamos muitas caixas de cerveja e sacos de farinha para descarregar. Enquanto passava as caixas para um senhor de 70 anos e pensava que ele me dizia "mais rápido, mais rápido" em guarani, enquanto na verdade estava dizendo para passá-las mais devagar, pensei como seria bom tomar uma daquelas centenas de brahmas em garrafa de quase 1L.

Meu chefe Renato realizou meu desejo comprando cervejas geladíssimas para bebermos enquanto trabalhavamos. E ali estava eu, com uniforme de marinheiro (que já vinha com cheiro de marinheiro), sob um lindo céu de lua crescente, trabalhando levemente ébrio e brindando com a família Aguapé.

Nas outras vezes que descarregaríamos mercadorias (Puerto Casado, Puerto La Esperanza e Vallemi), tomaríamos tererê por conta de ser de dia. Nessas ocasiões, podia observar melhor as cidades do Chaco Paraguayo, com suas ruas de terra batida, casas de madeira, burros de carga transportando caixas de brahma e meninos vendendo empanadas.


Às 21h30 de sexta-feira, 11/07, terminava meu cruzeiro de sete dias no Aguapé. Estava a 200 m de pisar em solo brasileiro, bastando apenas cruzar o Rio Paraguai para Pedro Murtinho. O Sub Oficial Benitz desembarcou comigo em Isla Margarida e, graças a ele, fui acolhido na Subprefeitura Marinha da ilha. Além de ganhar um lugar para dormir, tomaria café-da-manhã, almoçaria e arrumaria carona até Campo Grande graças ao oficial.

Curiosamente, o carimbo de saída de meu passaporte foi assinado pelo mais novo funcionário da subprefeitura, o mesmo Sub Oficial Benitz. Mal sabia eu que ao deixar Concepción no Aguapé, já tinha a solução bem ao meu lado... e o mesmo dedo que foi apontando para a minha cara, colaborou para a assinatura do meu passaporte. Lembrei-me da vez que encontrei o Cássio no DA com uma camiseta que mais parecia um pijama. Uma camiseta que por sinal eu também tinha e havia comprado no mesmo lugar. Nela estava escrito: "Não nasci para ter ódio nem ranconres, nasci par construir", frase de JK. Só naquele momento percebi o quanto a camiseta é feia, mas, enfim, a frase é bonita e vale à pena ser seguida.

1 comment:

Lourdinha Campos said...

Você é corajoso! Mas fiquei um pouco apreensiva com o fato de você correr tanto risco em viagem. Apesar de você ganhar "bagagem", o Paraguai não é um país que se possa correr tantos riscos, inclusive em embarcações. E se fosse um barco de "muambas?" Você até poderia ser preso como traficante ou coisa parecida, não?

Te cuida e não se arrisque tanto assim por uma aventura da próxima vez, ok?

Beijocas, Lourdinha.