Saturday, August 2, 2008

"Só nós dois" no Chico

Novamente ficaria por horas, cerca de oito, tentando carona no posto de Luiziânia. Passaria a me dirigir ao Rio São Francisco, na intenção de descê-lo de barco desde Pirapora/MG, início de sua parte navegável.
Gilberto, caminhoneiro, estava voltando para BH com sua prima e me ajudou. Iniciamos a viagem por volta das 20h, após jantarmos. Cheguei em Luislândia do Oeste por volta das 2h da manhã. Gilberto me deixou em um posto e fez questão de verificar se era seguro dormir lá. Descansei até às 5h30, quando comecei a tentar caronas para Pirapora.
Por volta das 10h30 da manhã cheguei na cidade. Fui logo em direção ao porto, mas qual porto? Na verdade não havia nenhum local específico para que os barcos ficassem atracados. Aliás, quase não havia barcos. O único que existia, de porte considerável, não fazia viagens, apenas excursões próximas ao município. Desta forma consegui somente algumas informações sobre a navegação no São Francisco com um tripulante desta embarcação de passeio. Descobri que seria difícil conseguir descer em algum barco de transporte de cargas e impossível em de transporte de passageiros, que não existiam mais, pois todas as pessoas se locomoviam de ônibus. Talvez conseguisse algo já no Estado da Bahia, em Bom Jesus da Lapa ou Ibotirama.
Retornei então no sentido da rodovia e, cumprindo a promessa que fizera para uma senhora bem velhinha, fui visitá-la. Dona Maria estava sentanda em uma caixa de madeira à frente da sua casa quando lhe chamou a atenção meus olhos rasgados. Não entendi bem qual vocativo/interjeição ela usou para puxar conversa comigo, mas de qualquer maneira, ficamos amigos e ela me pediu que na volta entrasse para tomar um cafezinho.
Dona Maria dizia ter 97 anos (nascida em 1911 em algum lugar da Bahia). Falava pouco sobre o passado, tendo algum recalque para tratar de suas reminiscências pessoais, mas disse algo interessante sobre sua infância: sua mãe escondera Lampião em casa. Trabalhara como cozinheira no Estado de Minas Gerais e não havia se casado, morando sozinha numa casinha de quatro cômodos. Esperava uma moça do interior de Minas com quem dividiria a casa.
Por volta das 16h parti para tentar carona para a Bahia. Como não consegui nada, retornei e aceitei o convite de Dona Maria para passar à noite no quartinho vazio. A senhorinha ficou tão feliz e acabou por se empolgar, "Para com essa besteiragem! Andá, andá, andá não tá com nada. Vou te dar R$100,00 até sexta-feira, aí você arruma um servicinho e mora comigo." Naquela hora, achei que ela fosse chorar, e quase me arrependi de ter voltado.
À noite, fomos ao supermercado comprar papel higiênico e pude observar a segunda infância daquela velha senhora. Não era raro ela parar, ficar olhando para uma pessoa e esperar algum contato visual, alguma reverência. Muitas pessoas também paravam para pedir sua bênção, estender-lhe a mão. Em outro momento, peguei-a saboreando com os olhos o churrasquinho de um rapaz: os vermes da barriga da velha-criança estavam como que a pedir coxinha, coca-cola, churrasco e geladinho... Também não entendi a princípio o que ela queria dizer com "Eu te vi! Tô te vendo! Não te vi!", mas depois percebi que ela brincava com os pássaros, bem-te-vis.
Sai às 6h30 da manhã do dia seguinte, dia da abertura dos jogos olímpicos. Fiquei esperando na rodovia novamente, mas após algumas horas de espera decidi caminhar até o posto de gasolina que estava alguns quilometros a frente. Chegando lá, um caminhoneiro que havia me visto no acostamento me pergunta: "Nada até agora, japonês? Tá indo pra onde?". Por sorte Amendoim também ia pra Bahia, e concedeu-me carona. Antes de partir, assistimos à cerimônia de abertura enquanto almoçavamos, alias, enquanto eu almoçava. Amendoim estava "arrebitado", não sentindo nem um pouco de fome.
O arrebite é um remédio de tarja preta (desobesi) utilizado para emagrecer, pois corta o apetite (anorexígeno). Alguns caminhoneiros, frentistas, prostitutas e outros profissionais da estrada o utilizam para perder o sono. É vendido com freqüência pelos frentistas por 1 a 2 reais o comprimido.
Apesar de saber dos riscos de seu uso (um conhecido seu já havia morrido de ataque cardíaco), Amendoim continuava a tomá-lo por conta das constantes viagens que precisava fazer: ele e mais dois caminhoneiros precisariam fazer oito viagens cada um de mais de 2000km ida e volta, quanto mais rápido acabassem, mais cedo iriam para casa.
Disseram-me que a recomendação médica em relação à posologia é de um compromido por refeição. No caso dos caminhoneiros, dizem que é de um a cada duas horas (isso se não misturarem com bebida alcóolica). Já amendoim havia tomado, até o momento em que me deixou, 14 em menos de 20 horas.
Além do risco de problemas cardíacos, há também o de dependência química, mas muitas transportadoras não se preocupam com o bem-estar de seus funcionarios, deixando à sua disposição cartelas do medicamento para que as corridas possam ser feitas mais rapidamente.
Durante o dia, o remédio estava surtindo efeito. À noite, quando eu também já estava mais cansado para ficar vigilante, os olhos de ambos começaram a fechar (os meus, por estar naturalmente com sono; os dele, porque o remédio já não estava mais funcionando). Tentava de toda maneira ficar acordado; cantava ao ritmo da música sertaneja que tocava no último volume, botava a cabeça pra fora da janela, mas nada me fazia ficar com os olhos abertos. Por sorte, estavamos chegando próximo a Brumado, município em que ficaria. Amendoim tomou mais quatro arrebites de uma vez e continuou a viagem. Espero que tenha chegado bem, e feito as viagens restantes de uma maneira mais segura e saudável.
Dormiria na lanchonete do posto e continuaria a viagem para Bom Jesus da Lapa. Peguei uma carona até Caetite e passei a caminhar pela estreita estrada que me levaria até Bom Jesus. Dado que não havia acostamento, o próximo posto de gasolina estava muito longe e quase não passavam veículos pela rodovia, achei que seria pertinente ir andando e pedir carona quando os carros passassem (estratégia semelhante a do Pantanal). Assim, em meio ao nada, caminhando sozinho naquela rodovia deserta, peguei minha primeira carona feminina. No caminho, veria um monte de motos se organizarem para um comício, não sem antes abastecerem seus tanques com o diesel pago pelo candidato.
Cheguei em Bom Jesus da Lapa e passeei um pouco pela cidade antes de verificar as embarcações. Alguns dias atrás havia tido a Romaria da Festa do Bom Jesus e a cidade ainda estava cheia de romeiros.
Durante a visita ao Santuário do Bom Jesus, construída dentro de uma gruta, conheci diversas pessoas que me disseram para tomar cuidado na coroa (descobri que coroa era a prainha onde ficavam atracados os barcos) porque havia um grande índice de assaltos por lá. Claro que fiquei relutante, mas precisava conferir se havia barco descendo o rio.
Entre o centro da cidade e a ampla coroa (formada por conta da secura do rio) havia uma comprida favela. Passei pela sua lateral rapidamente e fui descendo em direção à praia. Mal pisei na areia e um moço, vindo no sentido contrário, puxou papo comigo. Aproveitei a abordagem e perguntei se ele conheci alguém que trabalhasse numa embarcação do Chico. Ele me disse que era pescador e estava vendendo seu barco.
Mal conheci Baldo e ele já foi se soltando. Sentiu-se à vontade para que eu lhe pagasse um conhaque. Como eu, que mal gastava para comer e estava àprocura de um lugar barato para passar à noite, iria pagar pra alguém beber? Baldo me disse que poderia dormir em seu barraco, lá na coroa, junto com outros pescadores. Achei a idéia atraente e fui conferir, aproveitando para verificar o estado do barco. Assim, lhe paguei o conhaque (não sei como alguém pode tomar isso) e fomos tentando começar uma negociação. Para me testar, Baldo perguntou o quanto queria pagar. Chutei R$70,00, porque o músico de São Jorge havia dito que seus amigos pagaram R$80. O cara pirou: "Você não entende nada de barco mesmo. Ei, Zé, o cara tá querendo pagar R$70 no meu barco. Pode?". Depois ele me disse que queria R$250,00...
Enfim, como estava curioso para vê-lo, não fiz nenhuma proposta. Andamos até a coroa e tive de tirar as botas e entrar no rio para que pudesse chegar no local onde estavam seu barraco e o barco, uma espécie de península a qual se levaria muito tempo para contornar. Deixei minhas coisas debaixo daquela cabaninha feita com galhos, folhas e ramos secos, e fui ter minha primeira aula de remo e cuia.
Não achei difícil remar naquele barco de quase 5 m de comprimento por 50 cm de largura., ainda que a atividade da cuia (tirar a água de dentro do barco) fosse mais fácil. Exceto a parte de fazer o barco ir na direção desejada, estava remando com maestria. O maior agravante era que entrava muita água no barco. Dado que pretendia descer o Chico sozinho, o fato de ter de conciliar a cuia com o remo me pareceu uma tarefa difícil, mas não o suficiente para me fazer desistir.
Ainda estavamos no sábado, e como ficaria no barraco de Baldo, achei que seria pertinente esperar o momento correto para fazer uma boa oferta. Até lá, aprenderia a pescar (apesar de não ter pego peixe algum), tirar gordura de peixe e cozinhar pirão e farofa de moela. Também acompanharia o drama de Baldo para vender o barco.
Não posso dizer que o cara andava com o código penal de baixo do braço, ou que as suas transgressões se restringiam a fumar um baseado, mas o cara estava sendo gente boa comigo, e os outros pescadores que estavam no barraco ao lado também eram muito tranquilos. Achei que o barco fosse realmente do cara, e sua história não me pareceu absurda: ganhara o barco de seu irmão e descera de Carinhanha (MG) remando; agora, quatro meses depois, queria se desfazer do barco e voltar para casa.
Antes de dormir, comeríamos pirão com farinha de mandioca e ouviríamos o barulho da cidade: o comício de Roberto Maia (PMDB), regado à cachaça e à cerveja, além dos churrasquinhos; a batucada de um grupo ensaiando em algum canto da cidade; e a pregação do padre no Santuário de Bom Jesus. Também haveria espaço para a primeira redução no preço do barco, Baldo disse que estava disposto a vendê-lo por R$200,00. Preferi deixar as negociações para o dia seguinte.
Acordamos às 6h30 e alguns pescadores estavam limpando os peixes que pescaram durante a madrugada. Aproveitamos para pegar a gordura e a moela para o café da manhã. Tomado o café, fomos verificar os anzois que estavam no rio: nenhum peixe. Em seguida, Baldo precisava conversar com o dono de um boteco, potencial comprador. Como eu havia imaginado, rapidamente havia se esvaído o interesse do Seu Zé.


Baldo ficou muito chateado porque havia apostado todas as suas fichas neste senhor e não botava fé que eu estava realmente disposto a comprá-lo. Achei melhor esperar passar a dor para fazer minha oferta. À tarde, Baldo vou verificar novamente os anzóis e havia um único peixe, um piaú. Tomamos banho e fomos vendê-lo por R$5,00.

Seu João limpando o peixe (Baldo e o cachorro disputavam as moelas)


Pescadores no Chico

Como o jovem pescador havia ficado feliz pelo dinheirinho que entrara, achei que poderia dar o meu lance: "Baldo, por R$150 vc não me vende este barco?". Ele disse que por menos de R$180 não faria negócio. Não insisti. Ficamos na praça vendo o movimento e eu admirei o feito do cara: em três horas ele torrou a grana com oito doses de conhaque e um saquinho de amendoim.
Voltamos para a coroa antes que ficasse muito tarde e preparamos a janta. Tinha um enlatado da época do BARCO AGUAPÉ, Rio Paraguai, que usamos para misturar com a farinha. Baldo veio com uma idéia interessante, mas logo percebi que se tratava de um devaneio etílico: "Que tal fazermos o seguinte: eu desço mais você até Ibotirama (a 180 km), e a gente vai pesacando para comer e fazer uma grana. O valor que me faltar para pagar a passagem até Carinhanha (R$35,00 talvez) você inteira."
Achei ótima a idéia. Na pior das hipóteses teria que desembolsar R$35, mas fiquei curioso: "Baldo, mas como assim eu inteiro o que faltar? Porque, por exemplo, vamos supor que a gente pesque R$5 como hoje. Aí você vai lá e torra tudo em conhaque, e aí? Na certa não vai sobrar nada e eu vou ter que colocar os R$35." Pra quê? Pra quê fui fazer esta tola pergunta? Não havia pegado no ponto nevrálgico, havia dado um soco no estômago. O cara ficou ofendido: "Perae, perae. Assim não dá. Sem conhaque não dá. Eu até deixei de entrar num consórcio porque o cara que ia ser meu fiador veio com essa conversa." Desconsolado, foi dormir, melhor remédio para os ébrios mordidos.
No dia seguinte, segunda-feira, achei que já havia passado muito tempo lá e decidi tentar carona até Ibotirama. Os únicos dois barcos que havia no São Francisco, Dirijana e Juriti, já tinham tomado seu rumo há muito tempo. Quando já havia atravessado o rio e estava calçando minhas botas, vejo Baldo vindo em minha direção. Não estava mais sobre o efeito da bebida e me disse: "Você me dá uma onça e eu desço com você até Ibotirama." Uma proposta bem mais objetiva, sem dúvida, mas ainda cara, "R$40 pra descer agora!". Fechamos negócio. Dei minhas coisas para ele levar de volta para o barraco e corri para comprar farinha. Uma hora depos estavamos no rio.
Às 9h começamos a remar e descemos o rio de cabeça baixa (o vento estava a nosso favor). Naquele momento de alegria que lembrou a emoção que tive quando viajava pelo Japão logo após me desvencilhar dos grilhões do maçante serviço nas linhas de produção toyotista, Baldo disse, "Ê liberdade arretada!". Era a palavra que procurava pra definir aquela sensação, liberdade arretada. A alegria parece ter perturbado meu cérebro, e tive uma idéia idiota, decidi remar só de cueca... Fui, assim, semi-nu, cantando música sertaneja com Baldo... "só nós dois" (curiosamenet o nome do barco) e o Chico...

Bom Jesus fica para trás... Daqui para a frente é "Só Nós Dois" no Chico

Na hora do almoço, assamos os peixes que ganhamos dos pescadores, que ficaram muito receosos de verem o Baldo se aventurar comigo ("Cê vai descer até Ibotirama com esse japonês por R$40? Cê é louco, homem!"). Remaríamos até às 17h30, quando chegamos na Vila de Gameleira. Nesta hora já tinha dificuldades de ficar de pé, tamanha era a dor das queimaduras de minhas pernas, que estavam vermelhas como brasas.

Piaú e "tauba" (tamqui) assados, nosso almoço e janta

Quase chegando na Gameleira, onde passaríamos à noite

Jantamos peixe assado que ganharamos de outros pescadores e dormimos na coroa do outro lado da Gameleira. Continuaríamos viagem às 7h da manhã, após Baldo receber a proposta de R$100,00 de um pescador, que foi rapidamente recusada, "Pode uma coisa dessas? O cara quer pagar só R$100 neste barco. Ele tá doido!". Partiríamos ao som de uma paródia política genial, que sem dúvida tornaria a fastidiosa campanha paulistana muito mais interessante (Marta vai ganhar porquê o bundão do Geraldo não sabe fazer campanha, aliás, não quer fazer campanha negativa):

"Não deu conta do recado
Pede pra sai
Sítio do Mato tá acabado
Pede pra sai
Você vai levar o fora
Ninguem mais te quer aqui
Prefeito você tá fraco
Pede pra sai"

Paródia da música "Pede pra sair" de João Neto e Frederico


Ao meio-dia, minhas pernas, bunda e braços não aguentavam mais, e me pareceu que as de Baldo também não. Às 14h30, em Paratinga, após termos remado 80km - ainda faltavam 100 km para Ibotirama, Baldo falou: "Vamo vende este barco aqui! Chega de desce remando!". Gostei de sua convicção, principalmente porque ao dar um mergulho na água senti uma ardência na bunda. Contorci o pescoço para ver o que era e verifiquei que se tratava de uma ferida, formada por conta de ficar tanto tempo sentado. Julgando que aquele tipo de marca não me traria a satisfação dos calos nas mãos de Yuba, afirmei: "É isso aí! Se você tá dizendo, vamô vendê!"
Baldo saiu à procura de um comprador enquanto eu fiquei olhando o barco. Uma hora depois ele volta feliz da vida. Vendera o barco por, pasmem, R$105 (R$5 era pro cara que indicou o comprador)! Antes de pegar o ônibus que o levaria de volta para Bom Jesus da Lapa, Baldo me deu R$10,00, "O acordo era até Ibotirama! Pegue seu ônibus e chegue lá ainda hoje."
Baldo me disse, quando descíamos o rio, que ao me ver caminhando em direção à estrada ficou com dó de mim, dó de pensar que eu teria de ficar esperando pela bondade de alguém, por isso decidira descer comigo. No adeus, tive certeza de que falara a verdade. Racionalmente foi um péssimo negócio: poderia ficar na tranqüilidade de Bom Jesus, com seu cachorro, amigos e barraco até vender o seu barco por no mínimo R$200; mas o problema era que naquele final de semana que passamos juntos, em apenas dois dias, criamos uma relação cheia de cumplicidade.

Havia um ônibus às 18h para Ibotirama que custava R$5,50, como ainda eram 17h achei que podia tentar carona. Parei em um bar para pedir água e Everaldino, filho do dono do comércio, quis saber mais sobre mim e a viagem. No final, ele me arrumaria lanche, janta, café-da-manhã e um quartinho com seu tio num ótimo hotel por apenas R$7,00. No dia seguinte assistiria ao jogo de futebol da seleção masculina contra a China antes de tentar carona até Ibotirama. Everaldino também conversou com Marcel, comerciante de remédios, e garantiu meu transporte até lá.
Na Bahia existem muitos vendedores como Marcel. São representantes comerciais de farmcêuticas que viajam pelo sertão vendendo remédios às farmácias e, não raramente, "cururus" a pessoas não autorizadas (não é o caso de Marcel, segundo ele). Cururus são os medicamentos vendidos clandestinamente, isto é, sem a autorização da ANVISA. Citotec, para úlcera gástrica (mas também usado para aborto); desobesi, para emagrecer (usado como arrebite. Vendido por R$12,50 a cartela com vinte, mas na praça chega a R$2,00 o compimido); viagra, para vocês sabem o quê (e a sua função é a mesma seja aqui ou na China. Neste caso, uma cartela com 20 comprimidos custa com Marcel R$25, mas na praça, é encontrado por até R$10 a pílula).

Em Ibotirama, como imaginado, não havia embarcações descendo o R. São Francisco também. Como estava próximo à Secretaria de Assistência Social fui verificar, em vão, se havia albergue público. Depois, decidi que minha última tentativa de continuar a atravessar o sertão por via fluvial se daria no município de Barra. Fui pedir informações no Batalhão da Polícia Militar e consegui um prato de comida. Eram 15h30 quando fui tentar carona no posto. Estava com cólica e mal podia caminhar por conta das queimaduras nas pernas (baiano, porreta do jeito que é, já havia dito que eu era manco, ou ainda, que se tratavam de hemorróidas).
Eram 16h30, quando pensei em procurar algum lugar para ficar, talvez no próprio Batalhão da PM. Foi duro para mim não poder acompanhar os recordes olímpicos e ficar sabendo só depois sobre Michael Phelps, Usain Bolt, Steve Hooker, mas me consolou presenciar o recorde mundial em convite para estranhos dormir em casa. Estava caminhando pela calçada quando duas meninas ficaram me olhando. Uma delas disparou, "Você não quer dormir em casa hoje?". Uau! Mas este foi um recorde inacreditável! Cogitei: ou essas meninas estão amarndo pra cima de mim, ou é a tara étnica de Gilberto Freyre entrando em ação.
Achei que se a casa fosse perto, até podia ver como as coisas ficariam. E, ainda que eu sempre ouvisse das pessoas, "desconfie de todo mundo", a estrada me parece dizer para acreditar nas pessoas. Cris e Cláudia realmente só queriam o meu bem, e para vocês verem que não se tratava nem da referida tara étnica, observem: a primeira havia brigado com o namarodo e chorava de tristeza; a segunda era lésbica, não tendo nenhum interesse por homens.
Fiquei na quitinete de Cláudia, que mora em Ibotirama para terminar o Ensino Médio. Sua mãe e seu avô (o qual chama de pai) vivem na roça e lhe mandam dinheiro periodicamente. Ela não conhece seu pai, porque sua mãe, possuidora de problemas mentais, fora violentada quando jovem. Aos finais de semana ela trabalha como recepcionista de um motel ganhando R$80 por mês. Boa parte da renda da família vem de programas sociais.
À noite, jantaríamos na casa de Cris e tomaríamos cerveja. Antes de dormir, Cris ficou mais tranquila por ver seu namorado e Cláudia recebeu uma rápida visita de sua namorada. Dormi no chão enquanto Cris e Cláudia, na cama de casal.
Acordei cedo na manhã seguinte, comprei pão e esperei que as meninas se arrumassem para um bico numa campanha de vereador. Ao me despedir, Cláudia não conteve as lágrivas, "Cris, fala pro japinha não ir embora!".
Gastei R$10,50, mas preferi ir de ônibus até o município de Barra. Lá, os únicos serviços com carteira registrada pareciam ser os do governo federal, com os recursos do PAC para saneamento basico e paveamento de vias. Constatei que não havia nenhum barco descendo para Juazeiro, onde terminaria minha aventura pelo Rio São Francisco, e decidi encerrar a viagem por via terrestre mesmo. Num caminhão de mudança vazio conseguiria carona com um cearense que servia margueritas no Democratas do Tatuapé para Mário Covas no ano de 2000. Com ele iria até Pernambuco, deslocando-me agora para o Rio Amazonas.
A aventura pelo São Francisco foi mais terrestre do que fluvial, mas conhecer Baldo e viajar com ele no "Só Nós Dois" foi sem dúvida a melhor forma de conhecer a população ribeirinha. Onde quer que ele esteja, sempre vou esperar que tome menos conhaques!

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