Saturday, August 2, 2008

Fernando Wai-Wai, estivador

Com o Ceará e o motorista fui até Salgueiro, Pernambuco, somente passando de caminhão por Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), local onde pretendia terminar a viagem de barco pelo São Francisco. Planejava chegar o mais rápido possível em Belém do Pará e iniciar a viagem pelo Rio Amazonas e afluentes.


Desci na cidade de Salgueiro por volta das 22h. Fui até a rodoviária para passar a noite e pude acompanhar a vitória de César Célio, primeiro ouro brasileiro. No dia seguinte segui viagem pegando duas caronas até cidades vizinhas. À tarde, em Araripina (cidade do gesso), chegaria num posto onde estava acontencendo a concentração para um comício de um candidato a vereador. Convidaram-me para beber, mas eu estava mesmo é com fome. Por sorte, além de Ypióca, havia pirão e carne. Robinho, o candidato, logo veio falar comigo. Expliquei-lhe que estava de passagem, era de São Paulo, e mesmo assim fez questão de me pagar uma cerveja (não vou dizer q recusei).
Depois de comerem e beberem, uns dez carros sairam em carreata pela cidade. Evidentemente não cumpriam a lei seca, tão pouco o limite de decibéis dos carros-de-som. Eu ainda ficaria ali, conversando com os chapas pra ver se ainda seria possível conseguir carona até Teresina, Piauí, num fim de tarde de sabado. Um deles me apontou para um caminhoneiro que estava indo naquela direção.
Conversei com Seu Antonio, paraibano, que, ainda que muito relutante, concedeu-me carona. Estava viajando com um outro caminhoneiro, Seu Welington, e acabei indo com eles até São Luis do Maranhão. Assim, passaria duas noites com os caras, dormindo numa rede emprestada pelo Seu Antonio (seria o início da troca da rede pela cama).
Numa dessas noites em que dormia na rede armada entre o caminhão dos dois paraibanos, ouvi uns passos de rasteirinha: era uma moça (já tava mais pra senhora) que exercia a profissão número 5198 da Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho, uma das mais velhas profissões do mundo. Ela me acordou e quis puxar papo:
- "Olha, é japonês!", disse.
- "Não, sou brasileiro mesmo". Respondi.
- "E o japonês gosta de sexo?".
- "Gosto, mas eu to com muito sono."
- "E quando você não vai tá mais com sono?"
- "Amanhã de manhã."
- "Ah, mas é muito tempo."
- "É, faze o quê... Boa noite."
Vida de camihoneiro não é fácil, e não é à toa que dizem que caminhoneiro é tal qual político. Quando chegam numa cidade é a maior festa: lá vão as crianças a pedir um troco para lavar o caminhão; as putas a querer fazer programa; os chapas a indicar o caminho; os frentistas a oferecer arrebite; o japonês a pedir carona...

Na segunda-feira chegava em São Luis do Maranhão. Como sempre, passeei pela cidade à procura de um lugar tranqüilo para se passar à noite. A Secretaria de Assistência Social não possuía nenhum serviço de ajuda ao migrante ou ao morador de rua, e decidi contar com a indicação do meu guia FootPrint pela primeira vez. O único lugar que cabia no meu orçamento, segundo o guia, estava fechado. Pensando na frase "a vida é a arte do encontro, apesar de ter tanto desencontro pela vida", não fiquei desesperado por estar escurecendo. Apelei pra tática da Dona Maria: "Com licença, senhor. Por acaso o Sr. não conhece a D. Maria, viúva e com filhos crescidos? Ela mora sozinha e aluga quartinhos por R$5,00. Não conhece não, senhor?"
Ninguém conhecia a fictícia Dona Maria, mas havia a Dona Terezinha que entrava no perfil. Disseram-me pra descer a Afonso Penna e perguntar por ela, todo mndo a conhecia. Segui pela Afonda Penna e vi um casarão de bonita fachada, muito provavelmente recém reformado, nele havia a placa: "Aluga-se [sic] quartos". Bati na porta, mas ninguém atendia. Uns senhores que jogavam dama na frente de uma loja de móveis e eletrodomésticos me disseram que Seu Antonio, dono da loja, era o proprietário do casarão.
Entrei na loja e me deparei com dois senhores, uma senhora e um jovem. Perguntei pelo Seu Antonio e um simpático senhor se apresentou. Imaginei que os quartos fossem alugados somente para mensalistas a um valor aproximado de R$150, então disse que se ele permitisse, ficaria até quinta-feira de manhã (três noites), porque queria participar de uma seresta na quarta-feira à noite, pagando R$5 por dia. Inclusive respondi que caso aparecesse um possível hóspede mensalista, eu sairia na mesma hora.
Seu Antonio aceitou e me apresentou as pessoas que estavam ao seu redor: Dona Lindóia (sua esposa), Seu Wellington (um inquilino, o qual seria meu vizinho e dedicado amigo) e Arlen (seu filho, estudante de arquitetura). Logo de cara senti que Seu Antonio se tratava de uma pessoa que batalhara muito na vida. Procuraria mais tarde ouvir com suas próprias palavras a sua história.
Numa manhã, assim que Seu Antonio abrira a loja, aproveitei para lhe perguntar se havia tempo disponível para conversar. Foi assim que soube de sua dura infância. Tratava-se do quarto caso que conhecia de pessoa que passara pela rua e hoje, tendo enfrentando inúmeras dificuldades, possuía uma vida próspera e uma bela família.
Ele fugira de casa com apenas 14 anos de idade. Crescera na baixada ocidental do Maranhão e fugiu escondido num barco à vela. Passou certo tempo nas ruas de São Luis, se alimenatndo apenas de um pão e de um copo de caldo de cana, até conseguir trabalho numa loja de acessórios para bicicletas. Em pouco tempo se tornaria gerente da loja, nunca deixando de fazer cursos técnicos para ampliar seu escopo de atuação.
Começou como empresário ao abrir uma pequena loja de móveis. Por não possuir dinheiro o suficiente para comprar um veículo para os carretos, carregava a mercadoria com suas próprias forças, em cima da cabeça, de lá para cá nas ruas de paralelepipedo ludovicenses. Hoje é pai de três filhos - Alexandre (médico), Lyana (contadora) e Arlen (arquiteto); é proprietário de diversos imóveis e dono de uma loja de móveis e eletrodomésticos.
Tive o prazer de conhecer também Seu Wellington e sua namorada, Lia. Com eles, caminhei pela praia Litorânea e tomei brahmas bem geladas. Seu Wellington foi praticamente meu pai ludovicense. Se ia fazer alguma refeição, me chamava; se eu ia sair, preocupava-se com o horário, isto se não me acompanhasse, como na seresta; se eu queria assistir ao jogo do Brasil, chamava-me para assistir em seu quarto.

A quarta-feira foi um dia todo especial. Fui a uma lan house ter notícias do mundo e havia uma grande surpresa em minha caixa de e-mails, a resposta para um e-mail enviado três meses atrás. Nele, Allan (amigo do samba, de Yuba e da GV) me apresentava um destino e uma figura ilustre. O destino era Juruti/AM, para o qual Allan estava se dirigindo dentro de alguns dias, para dar continuidade a um projeto do GVCes (Centro de Estudos em Sustentabiildade da FGV - http://indicadores.gvces.com.br/index.cfm?fuseaction=conteudo&idSecao=60). Além de desejar rever meu querido amigo, ele soube instigar minha curiosidade: "O rolo é o seguinte. Descobriram em Juruti a maior mina de bauxita do mundo. Uma transnacional (a Alcoa) foi para lá. A cidade virou um caos. A cidade tinha originalmente 35.000 habitantes, agora tem mais de 50.000. A inflação de lá está 412% acima da média inflacionária do país. A cidade tinha 3 carros, agora tem transito, atropelamente, prostituição infantil..."
Já a figura ilustre era um rapaz da minha idade, com a pele queimada pelo sol e as mãos calejadas pela enxada. Ao invés de boa tarde, recitou-me seus versos:

"Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...

Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a primeira inocência,

E toda a inocência é não pensar... "

Já o havia conhecido em alguma aula de cursinho, mas nunca seus versos haviam tocado a minha alma. Tratava-se de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. Ainda que a estrada seja promovedora de tantas reflexões, eu tentava viajar daquele modo... sem pensar, a ver somente com os olhos. Apesar de tantas pessoas revistarem minha vida com perguntas em busca de problemas que explicassem a razão de estar viajando desta maneira, ou ainda de receber inúmeros conselhos para voltar, arrumar um trabalho, constituir família, "aproveitar" meu tempo, eu tentava não pensar no amanhã. No máximo pensava na carona que iria tomar, ou no cantinho que iria dormir... E isto nem quer dizer que não me preoucpe com o futuro.
Senhores, por favor, e pela última vez: minha vida é ótima! Não tenho problemas familiares, meus pais não são maus, separados, ou sei lá o quê... Não saí de casa com uma trouxa de dúvidas e questões mal resolvidas. Simplesmeste sai porque queria sair por aí... só isso! Não procuro o significado e a significação de todas as coisas, ou da minha vida, no máximo, estou atrás da melhor experiência. Desabafado isto, acho que posso continuar. Desculpem-me os que me entendem, por favor. E os que não me entendem também, porque talvez só achem que fui grosseiro.

Fora a definição de meu próximo destino, Juruti, e a apresentação de Alberto Caeiro, teria o prazer de desfrutar naquela noite uma seresta pelas ruas de São Luis do Maranhão acompanhado de Seu Wellington (o meu pai ludovicense), Noel Rosa (Último Desejo), Cartola (As rosas não falam), Braguinha e Pixinguinha (Carinhoso) entre tantos outros. Além disso, também assistiria a uma apresentação de Tambor de Crioula, dança de roda que só tem no Maranhão. E, graças à insistência de Seu Wellington e à benevolência de Seu Antonio (além de me deixar ficar mais uma noite, não aceitou que eu lhe pagasse um vintém), ficaria até a manhã de sexta-feira para me informar sobre a cidade de Juruti e me deleitar com os poemas de "O Guardador de Rebanhos".
No dia seguinte, ainda conheceria o escritório de Lyana, no qual ficaria usando a internet, jantaria na casa de Seu Antonio e sairia com Arlen para conhecer a vida boêmia ludovicense. Antes de tomar uma(s) Bohemia(s) gelada(s) num dos melhores bares à beira da Lagoa da Jansen, iria ao aniversário do primo de Arlen como se conhecesse seus familiares há anos.
Na sexta-feira de manhã fui à saída da cidade para tentar carona. O plano era chegar em Belém do Pará e tentar carona nas balsas que levam carretas até Santarém/PA, para de lá, tentar outro transporte até Juruti. Uma das desculpas mais utilizadas para não se dar uma carona é a de que a transportadora não deixa. Assim, fiquei realmente surpreso ao ver o gerente de uma delas se prontificando a conseguir carona para mim.
Ricardo trabalhava numa das transportadoras do posto de gasolina em que fui tentar carona para Belém. Infelizmente não seriam mais despachados caminhões naquele dia, mas ele me autorizou a dormir no escritório com mais dois homens que estavam aguardando o conserto de um caminhão. Assim, só consegui transporte no sábado à noite, mas ao menos fiz mais algumas boas amizades e ganhei uma rede que só precisava de uns nós para poder ser utilizada novamente.
No domingo, cheguei à Belém por volta das 17h30. Achei mais pertinente já ficar em um posto de gasolina no qual pudesse passar à noite. Com certeza lá poderia também procurar alguma carona para os portos das balsas. Dessa forma, conheci Nivaldo, que trabalhara no Japão por alguns anos (casou-se com uma nissei) e comprara uma bela Scania. Ele iria na manhã do dia seguinte até a BelNave (empresa de transporte fluvial) descarregar e aproveitei a carona.
Na BelNave naquele dia havia somente uma balsa que iria para o Amapá. Passei a caminhar à busca de outras. Fui na UniRios, LiNave, Bertolini, Carinhoso, Passadão, mas nehuma estava disposta a me levar. Na mais receptiva, fui recebido pelo gerente operacional. Muito educadamente, Seu Soares me disse que há cinco dias nenhum passageiro acompanhava as carretas, sendo que os caminhoneiros iam em barco específico. Bom, se até os próprios carreteiros não podiam ir nas balsas, não seria um caroneiro que iria.
Sabia que aquele dia, segunda-feira, era meu deadline para se chegar a tempo em Juruti na quinta-feira (neste dia, haveria uma reunião com a população para a apresentação dos trabalhos do projeto). São dois dias e meio de barco até Santarém, portanto, chegaria quinta de manhã caso conseguisse sair de Belém naquela noite. Fui cedo verificar se havia barco de passageiros nas docas. No caminho, um outdoor da CERPA indicava, "12:00; 43°C".Mas também não havia barco (vejam só, estava disposto a pagar) saindo naquela tarde, somente às 18h do dia seguinte. Já no final da tarde, com o corpo suado e a pele esfarelando (lembranças do Chico), lembrei-me de que um porteiro da Unirios havia dito que pegara, certa vez, carona para o Rio de Janeiro com a Força Aérea Brasileira (FAB). Dado que era a única chance que eu possuía para chegar a tempo em Juruti, resolvi tentar. Na pior das hipóteses, pegaria o barco do dia seguinte e me encontraria com o Allan em Santarém na sexta, perdendo a consulta pública que ocorreria em Juruti na quinta-feira à noite.

Cheguei na Base Aérea às 17h30, muito parde para que alguém me atendesse. Perguntei se serai possível ao menos passar à noite lá, mas não pude sequer atravessar o portão de entrada. Como ainda não tinha lugar para dormir, decidi dormir lá mesmo, na calçada em frente do portão da base (como maneira de fazer certa pressão também).

Graças aos soldados Ewerton, Tito, França, Marlon e Paes, pude cear sanduíches de presunto e suco, além de receber proteção durante a madrugada. Dado q eu seria lembrado pelo tenente durante o briefing de início de guarda, "Boa noite, senhores. Mais um dia de serviço. Fiquem atentos apenas a um indivíduo suspeito que diz tentar passagem...", dormiria em um ponto de ônibus a alguns metros de distância da guarita para não dar muito na vista dos superiores. Ainda assim, continuaria em segurança, pois os soldados fizeram questão de sempre estarem em minha proximidade, tanto que, como soube na manhã do dia seguinte, dois rapazes passariam me olhando enquanto dormia, mas o soldado de guarda, de semi-automática em punho, rapidamente intimidaria, "Tão olhando o quê, caralho!".

Às 8h, após ter comido o café-da-manhã que os soldados me trouxeram, recebi a informação de que deveria procurar um tenente nas instalações do Comando Aéreo (COMAR) a alguns quilometros dali. Lá, com as referências da Base Aérea, consegui transpor a burocracia militar e ter acesso ao A3, departamento que tem a agenda de todos os vôos que saem da FAB paraense. Por azar, não havia nenhum vôo previsto para Santarém ou arredores. Assim, como ainda era cedo, resolvi ficar no curral (área de espera para atendimento dos civis ) do COMAR esperando um acaso.

Às 16h, sem a ocorrência de nenhum imprevisto em relação às viagens da FAB, despedi-me dos soldados e, com a mochila cheia de laranjas (provisão para a viagem de barco), presente do S 2 Wallace, fui ao portão 15 das docas comprar minha passagem para o B/M (Barco Motor) Clívia. Paguei R$86 (a grana que tinha na hora) e peguei carona com o motorista do gerente do barco até o porto de onde o Clívia sairia.

Cheguei lá às 18h30, mas o barco só partiria às 20h30. Um fato me deixou muito feliz. Conheci um japonês que desviaria para si as atenções dos demais passageiros (já estava cansado das brincadeiras e perguntas relacionadas aos meus olhos puxados). Toshi já estava viajando há nove meses e conhecia, até etnão, uns 40 países (dos cinco continentes). Esteve em Yuba duas semanas após a minha partida e cruzara comigo em S. Luis quando eu estava a perguntar sobre a Dona Maria do quartinho.

Às 21h, dei graças a Deus que Belém estava para trás, restando apenas uns pontinhos de luz a certa distância. Mas o alívio de estar a caminho de ver meu amigo durou pouco. Estava na área de lazer rasgando meu japonês com Toshi e tentando traduzir o que ele falava para uns dez caras (a maioria não sabia fazer outras perguntas além daquelas relacionadas a sexo, lamentavelmente), quando vi um outro b/m, mas menor, vindo em nossa direção. Tive tempo apenas de gritar "cuidado" e de puxar o japonês para trás.
O choque não foi tão forte, mas fez certo estrago e pôs mulheres e crianças a chorar. Quando desci para o convés, todos já estavam com colete salva-vidas. Este tipo de acidente não pode ser explicado com o cérebro. A única razão imaginável é o "acho que vai dar" somado ao excesso de testosterona. No Aguapé, recordo-me de uma irresponsabilidade parecida, mas que felizmente não resultou em acidente. Estavamos cruzando o rio enquanto uma balsa de transporte de minério de ferro o descia. O piloto achou que dava tempo pra passar, e a adrenalina explodiu ao cruzarmos o rio são e salvos.
Achei evidente que teríamos de voltar, apesar de nenhum dos barcos ter se comprometido a ponto de estar à deriva. Mas a tripulação da outra embarcação assim não pensava. Como se estivéssemos a subir à Av. Rebouças, sgeriram que fizéssemos um breve acordo e cada um seguisse seu caminho. Prudentemente, o gerente de nosso barco não aceitou. Voltamos para o Porto Tamandaré, em Belém. Fui dormir à meia-noite, quando ouvi dizer que o barco havia sido liberado pela Capitania dos Portos. Ao acordar no dia seguinte, ainda continuávamos em Belém.
Percebi que um gringo estava apreensivo e fui perguntar se podia ajudar. Disse-me que estava preoucpado porque ia pegar um avião em Santarém sábado de manhã. Fui me informar com o gerente do barco, que respodneu que não havia previsão de partida, dado que a Capitania ainda não havia feito a perícia.
O gringo e sua mulher preferiram desistir do passeio no Clívia, e me presentearam com suas provisões: frutas, bolachas, snacks... Graças a eles, também desistiria de fazer algum bico na estiva (carregamento das cargas) do barco em troca de comida.
Às 11h, a perícia liberou o barco, mas seus responsáevis julgaram mais econômico transferir todos os passageiros para um catamarã (de mesmo dono) qeu sairia às 18h. Assim, às 13h, passamos, os 70 passageiros do B/M Clívia, para o Catamarã Rondônia, com capacidade para 850 pessoas e área com ar-condicionado para redes. Por conta dos transtornos ocorridos teríamos almoço e janta gratuitos, bem como o direito de armar nossas redes na área com ar-condicionado, sem custos adicionais.
A viagem no Catamarã foi divertidíssima. Graças ao Toshi e ao pandeiro fiz muitas amizades, com direito à roda de pagode e cerveja. Conheci um equatoriano, José, que estava indo para a Venezuela se encontrar com uma japonesa e um franco-canadense para continuarem sua viagem em um Lada. Um baiano, Ricardo, que estava a viajar como eu, tendo rodado de moto quase todos os estados do país. Um paraense, Daniel, que ia à Manaus fazer um curso de segurança. Um inglês, Leo, que tinha o sonho de conhecer a floresta Amazônica desde pequeno. Duas garotas, Barbara e Erika, que iam morar com seus respectivos namorados em Juruti. Muitos carreteiros, que pegariam seus caminhões em Santarém para seguir viagem até Juruti.

Além do axioma "como tudo quê não me morde primeiro", tenho seguido o princípio de que vale à pena instigar o paladar. Assim, quando me ofereceram o açaí com farinha de mandioca e açúcar, comi com grande gosto. Da mesma forma que os camarões vendidos pelos barquinhos que conseguiam se prender ao Catamarã a 20, 25 km/h.
Não tenho certeza se foi o açaí ou o camarão, mas penso que o todo foi maior que a soma das partes. O resultado foi uma diarréia de uns nove dias. O coitado do Toshi também passou mal e teve febre, dor-de-cabeça, ânsia de vômito... Acabei presenciando cenas engraçadas de pessoas discutindo pelo medicamento mais adequado que ele deveria receber. E, pela "bondade" das pessoas que se ofendidam com a recusa da ajuda, Toshi tomou prazil, himosec, neotrin, ambrosi, soro na veia, pasta de dente com água gelada... E a toda hora alguém perguntava, "Seu irmão tá melhor?"
No sábado, já descrente de que veria o Allan, cheguei em Santarém. Consegui falar com ele por telefone, e iria a Alter do Chão, uma vila da cidade a uns 40 km dali. Nunca havia ouvido falar sobre aquele lugar, e meu guia da FOOTPRINT tinha umas cinco linhas dedicadas a ele.
Peguei o ônibus circular ao invés de tentar carona porque estava realmente com pressa para dar um abraço em meu amigo. Saltei no lugar indicado e conheci uma funcionária do hotel em que ele estava hospedado que se dirigia para lá. No caminho, por curiosidade, perguntei quanto custava uma diária para solteiro. Ela respondeu, "em torno de R$170,00". Só aí que me lembrei de que o Allan não estava lá se aventurando, a dormir em albuergues de R$15,00. Estava a trabalho para uma grande multinacional.
Na recepção, a atendente me informaria que ele estava na praia. Perguntei se era longe e ela me mostrou o caminho, apenas a alguns metros dali. E foi num ambiente paradisíaco, nas praias do Rio Tapajós, que o avistei de óculos escuros, bermuda e chinelo, "Você que é o japonês que disseram que tá perdido na Amazônia?". Passaria uma tarde maravilhosa com eles (além do Allan, Cecília e Gladis, suas chefas), almoçando tambaqui assado, passeando de canoa no Igapó do Camarão e vendo o pôr do sol da Ponta do Cururu (o mais incrível foi estar dentro do Rio Tapajós, a uma distância de mais de 100 metros da margem com o pé no chão e a água batendo no peito).
À noite, fomos jantar na casa de Babi, agrônomo que presta consultorias na Amazônia e também trabalha no projeto do GVCes. Foi só ouvir do Piracuí-pizza-milho, lanche feito com hamburguer de Piracuí, peixe da região amazônica, que quis experimentar. As "coisas" pareciam assumir mais consistência, até então... mas foi tudo por água abaixo. Pensava em dormir no aeroporto, dado que o Allan e suas chefas iriam para lá, mas ainda bem que Babi e sua esposa me convidaram para passar a noite em sua casa. Assim, dormi numa rede, bem ao lado de um banheiro, disponível 24h.
Queria retornar à Santarém para pegar um barco que fosse até Juruti. Mas como a idéia era conseguir carona trabalhando como estivador (ajudante de embarque/desembarque de carga), fiquei com medo de exager no peso e borrar as calças. Preferi repousar no domingo e postergar os planos para segunda-feira.
Quando sai pela cidade em busca de remédio, conheci mais um japonês, Matsuo. Ele estava em um albergue próximo à casa de Babi. Neste momento deve estar em São Paulo e, em breve, estará em Yuba (que inveja!). Com ele, fui até à farmácia. A farmacêutica me recomendou Neotrin, mas, como que a dor na barriga desse uma folga para os espasmos de idiotice, vim com outro esteriótipo, "Mas você não conhece a Dona Maria que tem um quintal com ervas pra tudo quanto é doença?". Ela me respondeu que sua Mãe, Dona Madalena, tinha boldo e uma outra erva que eram boas pro meu caso. Passou-me o endereço e ligou-lhe avisando que iria.
Cheguei no portão bem no momento que Dona Madalena vinha dos fundos da casa trazendo consigo um saquinho cheio de folhas. Ensinou-me a fazer o chá e disse que era pra voltar caso não melhorasse. Segui as recomendações, e o chá ajudou a estancar um pouquinho... mas depois verificaria que teria sido melhor comprar o remédio.
Na segunda, pegaria carona com Babi até as docas. Sabia que o B/M Cisne Branco (de mesmo proprietário que o Clivia e o Rondonia) chegaria por volta das 9h. Marquinhos, gerente do barco, permitiu que eu fosse até Juruti trabalhando na estiva e, assim, descobriria que a satisfação do trabalho afasta as caganeiras (algumas horas antes ainda estava indo ao banheiro com enorme frequencia).
Ajudei a descarregar cartazes e bandeiras de campanha, cimento, telefone público, tartaruga de rodovia, suco em pó... E carregamos o barco com 1100 cachos de bananas, os quais me renderam muitas manchas na camiseta e alguns arranhões nos braços até pegar a prática. Não vou dizer que foi super fácil ou agradável carregar o barco por cinco horas seguidas. Meu corpo definitiavmente não estava preparado para um esforço tão grande, tão pouco a minha paciência pra ficar ouvindo os outros estivadores tirando sarro ou testando a minha força. Mas fiquei realmente feliz de ter conseguido a minha primeira carona de barco no Brasil, lembrando os tempos áureos do Aguapé.

Chegaria em Juruti às 4h30 da manhã. Dormiria em outro barco que estava atracado até clarear. A idéia era mais sentir as transformaões da cidade, após ter ouvido tanta coisa do Allan. Logo pela manha vi um monte de homens fardados com um uniforme amarelo da Camargo Correa. Estavam trabalhando nas obras do porto, da ferrovia e da unidade de mineração. De acordo com o periódico da Alcoa, havia mais de 8.000 pessoas trabalhando para a empresa ou para as suas contratadas, sendo que mais de 70% eram do Estado do Pará.
Bati na casa do Getúlio (residência onde fica a equipe do Projeto Juruti da FGV), mas não havia ninguém. Resolvi sair andando pela cidade em busca de informações. No caminho, veria uma fila, de tamanho razoável, sendo formada na frente do Banco do Brasil; muitas motos, com pouquíssimas pessoas usando capacete; algumas plaquinhas de "aluga-se moto" (o Allan já havia me falado que o valor por hora era R$5, e solicitavam sua carta de habilitação como caução!); e muitos merendeiros (carrinhos que vendem salgado e suco).
O primeiro lugar que visitei foi o Centro de Referência da Alcoa (http://www.alcoa.com/brazil/pt/custom_page/environment_juruti.asp), local específico para a empresa dar informações sobre as suas atividades para a população. Recebi vários materiais para ler sobre os projetos voltados às comunidades locais (Plantação de hortaliças, Criação de tambaquis em tanques) e soube um pouco mais a respeito da agenda positiva criada com a prefeitura e com o Conselho Juruti Sustentável com representantes da sociedade. De lá, seguiria para a Associação Comercial Empresarial de Juruti. Otávio, Presidente da organização, tinha uma visão crítica sobre a instalação da empresa. Para ele, a Alcoa não havia se preocupado em preparar devidamente a cidade para o empreendimento, tarefa esta que deveria ter sido divida com a prefeitura. Como conseqüência, havia o aumento dos acidentes de trânsito (a cidade ainda não possui DETRAN), da prostituição infantil, da criminalidade (tráfico de drogas, assaltos)...
A percepção de todos com quem conversei corroborava a opinião de Otávio, mas tentei buscar dados estatísticos. Consegui pouquíssimas coisas, mas vou deixar registrado. No Conselho Tutelar de Juruti, pelos relatórios que me foram apresentandos, verifiquei cinco casos de prostituição infantil no ano de 2006. Os conselheiros me disseram que na semana passada haviam lidado com quatro casos, sendo que em 2007, quatro casos eram totalizados em três meses. Tentei colher informações no hospital da cidade, mas ainda não haviam feito o levantamento de acidentes de trânsito dos últimos anos. A diretora do hospital apenas me disse que só no domingo, dia 31/08, haviam ocorrido sete acidenets no período das 17h as 20h, todos de moto. Já na delegacia, não consegui falar com o escrivão, que estava em viagem, mas os policiais que me atenderam confirmaram o crescimento da criminalidade. Mas, enfim, pra que estou falando tudo isso... Estes dados coletados tão inapropriadamente... Os relatos que colhi... Pra meter o pau na Alcoa? Não... na verdade também mal sei. O que me instigou a ir em Juruti não era simplesmente o caos. Queria saber/ver este processo de transformação decorrente de um grande empreendimento que as vezes, enganosamente, nos leva a acreditar que trará o desenvolvimento da região. A verdade é que, vendo, por exemplo, a população ribeirinha do São Francisco, do Amazonas, questionei o significado de desenvolvimento. Muitas vezes a impressão que tinha ao chegar em um lugar era de pobreza. Casas sem alvenaria, ou ainda de taipa; porcos e cabras a correrem soltos... mas logo depois percebia que seus moradores viviam bem da pesca, da pequena horta, do pequeno rebanho... e isso me fazia questionar de qual progresso ou desenvolvimento aquelas pessoas necessitavam. Como disse tão bem o Allan, "o que é desenvolvimento para um urbanóide paulistano não é o mesmo que um amazônico toma por desenvolvimento".
Numa conversa que tive com o Presidente da Associação de Deficientes Físicos de Juruti, João Gola, tentava exatamente descobrir o tipo de desenvolvimento que ele gostaria que a Alcoa trouxesse para o município. Respondeu-me que só estaria satisfeito quando o desenvolvimento chegasse a todos, principalmente às comunidades do planalto e ribeirinhas. Tentei descobrir que desenvolvimento era este ao qual ele estava se referindo, mas não consegui depreender nada. E aí constatei o quanto era difícil objetivar a noção de desenvolvimento de alguém.
Minha compreensão e admiração do trabalho do Allan e do GVCes começou por aí. Foram contratados pela transnacional para criarem indicadores de desenvolvimento da cidade. E a tarefa é difícil porque precisam captar a noção de desenvolvimento dos diversos habitantes da região, compreendendo quais são seus anseios por melhorias, para que depois possam transformá-las em indicadores objetivos (aquilo que não consegui com o Sr. Gola).
Enfim, a instalação da Alcoa é um fato. E é bom saber que ela tenha tido a preocupação, ainda que talvez tardia, de perguntar à população o que ela quer e de criar instrumentos para medir o cumrprimento de seus anseios.
Às 17h parti para o porto, razoavelmente satisfeito com o que obtivera até então. Queria conhecer alguma comunidade ribeirinha ou de planalto, mas a vontade de subir no barco e continuar viagem foi maior, porque já estava em busca de alguma outra experiência.

Bem na hora havia um barco se preparando para sair, o Cidade Alenquer. Ia para Manaus, mas já havia decidido que desceria antes, na cidade de Itacoatiara, e pegaria carona até a capital amazonense. Bebê, gerente do barco, disse que já havia muitos tripulantes na embarcação, restando-me apenas a opção de lhe dar tudo que tinha no bolso, R$36,85 (a passagem até Itacoatiara custava R$60).
Muitas vezes fui questionado se era realmente brasileiro. Bom, se ser brasileiro é ser autóctone, então eu nunca me senti tão gringo quanto no Cidade Alenquer. Havia uma tribo indígena, Wai-Wai, vindo de Oriximiná/PA. Também estavam indo para Itacoatira, e iriam participar de um encontro relacionado à sigla CONPLEI, que não sabiam explicar o que significava.
No caminho, aprenderia algumas palavras em wai-wai e treinaria com as crianças o que acabara de aprender com os adultos. Eram 17 pessoas viajando: duas crianças, cinco mulheres e dez homens. Muitos deles não falavam português e a maioria nunca havia saído de sua aldeia. Perguntei se poderia ir com eles para o encontro, apesar de me informarem que custaria R$40,00 para índios e R$100 para brancos, sendo que o evento iria de quinta a sábado (R$33,33 a diária, isto é, R$25,33 acima de meu orçamento diário).
Chegamos em Itacoatira quarta à tarde. Os wai-wais ficaram felizes por saber que eu os acompanharia, apesar de ter preferido ir à rodoviária a pé (eles iriam de táxi), não somente pela minha pão-durice, mas porque precisava sacar dinheiro no banco. Timóteo Wai-Wai também precisava, mas a conta dele era no Banco do Brasil, que possuía caixa-eletrônico na rodoviária.

Trio Wai-wai, Oriximiná/PA


Pegamos o ônibus das 19h e nos dirigimos ao Acampamento Monte Sião, acerca de 50 km de lá. Às 20h45 chegamos no encontro e confirmaria minhas expectativas: CONPLEI significava Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas. Jantamos arroz, pacu frito e xibé (água com farinha de mandioca para se beber, mas achei que fosse para se jogar por cima do arroz) e fomos dormir num dos seis barracões montados para que armássemos as redes. Painho (chamava-o assim em retribuição ao "meu filho" que usava para me chamar) fez questão de me emprestar uma rede que não estava usando.

Galpão para armar as redes.


Na manhã do dia seguinte fomos convocados para fazer as inscrições. Na fila, junto com os Wais-wais, fiquei pensando como explicar minha presença naquele lugar, "Meu nome é Fernando. É que eu tava viajando no mesmo barco que eles e deu vontade de vir conhecer... mas eu não sou evangélico...". Mal percebi que chegara a minha vez e a moça perguntou, "nome?". Disse que era Fernando e me preparava para complementar com o Oshima, quando meu xará (o índio Wai-wai Fernando, pastor e responsável pela tribo) finalizou, "Wai-Wai". Assim, tornei-me um integrante da tribo Wai-wai, e, incrivelmente, tinha gente que vinha me perguntar, "De-on-de-vo-cê-é?". E olhava o meu crachá e respondia, "Ah!-Vo-cê-é-wa-i-wa-i!-!-!-!".

Pastor Fernando Wai-wai pregando

Ín-di-o –Fer-nan-do –Wa-i-wa-i


Pensei em ficar apenas até o almoço daquele dia, quinta-feira, mas logo mudei de idéia ao receber a programação do evento contendo uma palestra sobre infanticídio na manhã de sexta-feira. Infanticídio era a principal razão de eu querer conhecer as tribos indígenas, mas se trata de um assunto muito difícil para se abordar. Não poderia, por exemplo, chegar para meus amigos Wai-wais e perguntar, "Por acaso na sua tribo vocês matam crianças? Quando nascem gêmeos? Quando nascem com deficiência?". Ouvir o assunto ser tratado por um indígena numa palestra seria muito mais fácil.
Na quinta-feira tinhamos o dia livre, e aproveitei para incrementar meu vocabulário Wai-Wai com uma frase que se tornou um mantra para mim, "Oie kashe wasu! Oie kashe wasu! Oie kashe wasu! Oie kashe wasu!" (Eu preciso cagar! Eu preciso cagar! Eu preciso cagar! Eu preciso cagar!): ainda estava com a mal-curada diarréia! Também conheci outras tribos (guajajara, tereno, hyscaryana, macuxi, baré, tucano, ianomami, ticuna), joguei futebol de campo e observei a incrível estrutura do evento (barracões para as redes; cozinha que produzia refeições para mais de 750 pessoas; médicos e dentistas; remédios de todos os tipos; patrulha da PM etc).
Havia muitos missionários coreanos, ingleses e americanos, e todas as palestras eram traduzidas simultaneamente para o inglês. Assim, não era de se estranhar ver jovens estrangeiros. Fiquei muito amigo de uma coreana, Jenny, que, como eu, estava lá por acaso. Jenny tem 23 anos, está estudando Economia em Seul e adora viajar. Fiquei impressionado com a sua coragem ao saber que estava viajando sozinha pela América do Sul. Perguntei porque preferia viajar só, ao que ela respondeu, "Dessa forma, sinto-me mais próxima de Deus". Apesar de nunca ter pensado nisto, eu a compreendi perfeitamente.

Na sexta-feira chegara a hora da tão esperada palestra. Edson Bakairi, índio da tribo bakairi (Mato Grosso), pastor evangélico e professor de História, abriu a palestra com seu próprio relato. Sua mãe tentara o aborto amarrando a barriga e tomando remédios indígenas porque não queria sofrer a discriminação de sua tribo por conta de um filho que, suspeitava-se, era fruto de um relacionamento extraconjugal.
Na hora do parto, ela correu para o mato, dando à luz sozinha e tentando matá-lo com um cipó. Por estar muito cansada, não teve forças para estrangulá-lo, mas o largou na floresta e retornou para sua casa. Na volta, disse às filhas que fossem procurá-lo no mato e o enterrassem para que seu pai não soubesse sobre seu nascimento. As irmãs, ainda crianças - 9 e 11 anos, tiveram dó e decidiram criá-lo por sua própria conta.

Em seguida, Édson Suzuki, diretor-executivo da ONG Atini (http://www.atini.org/), mestre em lingüística pela UNICAMP e missionário, contou a história de sua filha, Hakani, que deu origem a um documentário (http://www.hakani.org/pt/). [O dvd estará em casa para quem quiser].


Hakani nasceu na tribo Suruwahá (Amazonas) e tinha dificuldades para falar e andar. A tribo acreditava que ela estava dominada por espíritos ruins, sendo necessário a sua morte. Seus pais, incapazes de matá-la e constrangidos pela discriminação de seus pares, preferiram se suicidar comendo raiz venenosa.
A responsabilidade de matá-la passou, assim, para seu irmão mais velho. Ele a enterrou numa cova e esperou que morresse. Bibi, outro irmão, de apenas nove anos de idade, ao ouvir os choros abafados da menina decidiu resgatá-la e passou a ser o responsável pela sua criação. Após três anos Bibi julgou melhor levar sua irmã a um acampamento de missionários próximo à aldeia. Foi assim que ela entrou na vida de Édson Suzuki e deu início a uma ampla campanha contra o infantícidio.

A ONG Atini, dirigida pelos pais de Hakani (Márcia e Edson Suzuki), verificou casos de infanticídio em cerca de vinte tribos indígenas (wai-wai, yanomami, bororo, mehinaco, tapinaré, ticuna, amondaua, uru-eu-uau-uau, suruwahá, deni, jarawara, jaminawa, waurá, kuikuro, kamayurá, parintintin, paracanã, kajabi, ikpeng, nambiquara e guarani) por razões diversas: nascimento de gêmeos ou trigêmeos, deficiência física, adultério, equilíbrio entre os sexos.

As organizações governamentais (FUNAI e FUNASA) responsáveis não tomam nenhuma atitude a respeito alegando ou que os casos são raros, ou que não se deve interferir na cultura destes povos indígenas. Infelizmente, as estatísticas não discriminam os casos de morte por infanticídio, que são jogadas na classificação "causa desconhecida" (ou algo assim). Ainda assim, sabe-se, pelo material que é divulgado pela própria imprensa nacional, que os casos não são tão raros assim e, ainda que fossem, não podem ser tratados como pecinhas com defeito que podem ser atiradas no lixo.


Já a discussão em torno da proteção das tradições culturais dos povos indígenas é feita por antropólogos da vertente relativista cultural radical, que combatiam a visão dos etnocentristas extremados. Para estes estudiosos os direitos humanos são culturalmente relativos, sendo justificável as atitudes infanticidas de certas tribos indígenas. Tratam os índios como a figura do bom selvagem rousseauniana: nascem puros, ingênuos, primitos, devendo ser preservados das violações de caráter da sociedade.

Se por um lado eu poderia ligar para o chefe da tribo Wai-wai quando quisesse, falar com os índios sobre religião, futebol e internet, ou saber que eles possuem cotas no ProUni, por outro, se uma criança indígena corresse o risco de sofrer infanticídio, sua morte seria encarada como uma “tradição cultural”, não imperando seus direitos estabelecidos pela Constituição, pelo ECA e pelas Convenções dos Direitos da Criança.

Contra esta visão, Rouanet afirma, “Considerar ´igualmente válidos´ o parricídio e a benevolência com os mais velhos, a mutilação clitoridiana e a emancipação da mulher, o sacrifício ritual e o respeito aos direitos humanos, não é suspender o julgamento – é aprovar a prática injusta. Não é uma abstenção, e sim um voto a favor do status quo.”

Fiquei realmente admirado com o trabalho dos missionários e da ATINI. É comum se ter certo preconceito contra os evangélicos, a mim mesmo não foi agradável a situação em que uma moça fazia proselitismo e ficava a me dizer sobre minha “morte eterna”, mas a palestra e a conversa com Édson Suzuki foram totalmente analisadas do ponto de vista dos direitos humanos da criança. Além disso, também nunca havia ouvido falar de uma iniciativa concreta em relação ao infanticídio indígena. Mesmo a Igreja Católica, que se posicionou a favor da homologação contínua das terras indígenas na Raposa Serra do Sol/RR via a CNBB, não possui uma declaração a respeito (ao menos não encontrei nada. Se alguém souber de algo, avise-me!).

Algumas pessoas enxergam uma agenda oculta no discurso da ATINI, a qual buscaria, dizem, levantar a bandeira contra a descriminalização do aborto. Não vou dar atenção a teorias conspiratórias mesquinhas. Não tenho dúvidas de que a causa maior do trabalho de Edson e Márcia, sua esposa, é a luta contra o infanticídio. Tanto que recebem em sua própria casa, em Brasília, pessoas e famílias indígenas que foram contra tais práticas dentro de suas tribos. Além disso, não precisa ser evangélico ou religioso para se enveredar na questão do aborto por meio da discussão do infanticídio. Só cabe à ATINI saber concentrar seus esforços.

No sábado, apesar dos convites de minha família Wai-wai para conhecer a aldeia, tive de continuar a viagem rumo ao Acre, a fim de entrar na Bolívia. Assim, pegaria carona com um pastor até Manaus, e procuraria embarcações que fossem a Porto Velho, dado que a BR-319 (quase oito vezes maior do que a Estrada Parque Pantanal Sul, o que dificultaria caronas) só poderia ser cruzada com um bom 4x4.

Infelizmente só havia barco para meu destino na terça-feira. Como estava tarde, decidi procurar alguma embarcação na qual pudesse estender minha rede e dormir. Seu Zé, proprietário do B/M Cometa Halley, permitiu que eu dormisse em seu barco. Além disso, coincidentemente, eles seguiriam viagem na segunda-feira para Manicoré/AM, Rio Madeira, na direção em que eu precisava ir.

Desta forma, trabalhei no barco de domingo a quarta-feira. Como havia ficado amigo de Saidi, cozinheiro do barco, tive trânsito livre para a cozinha, confirmando a infalibilidade de meu cartão-de-visitas: passaria dos pratos para as panelas, das panelas para o convés e do convés para o motor. E neste ritmo, ficaria até quarta-feira, fazendo de tudo e sem hora para terminar.

Também descobriria que é muito melhor carregar o barco com 500 melancias e 1200 cachos de banana estando-se saudável, do que descarregar 500 sacos de papel higiênico estando-se gripado.

Na despedida, ganharia presentes e um dinheirinho. Saidi me deu duas camisetas regatas, uma rede nova e um pano de prato (Toshi usava um para se enxugar. Achei a idéia genial e abandonei minha toalha de rosto); Luiz, ajudante de Saidi, me deu um lençol e um perfume; já Seu Zé, me daria R$20 pelos trabalhos realizados (aceitei porque achava que merecia).

Em Manicoré, Seu Zé faria questão de que seu braço direito, Seu Raimundo, conversasse com o gerente do B/M Príncipe das Águas que estava indo para Humaitá, a 200 km de Porto Velho. Neste outro barco poderia descansar bem mais, porque havia menos passageiros e sua tripulação era mais bem organizada. Assim, restou-me apenas a tarefa de ajudar a servir as refeições.

Descansando no Príncipe das Águas: Alberto Caeiro, minha bota e meu pano de prato (fora os coletes salva-vidas do barco)

De lá pegaria carona com Celso, que havia ido ao Rio Madeira desencalhar uma balsa que havia ficado presa por conta do assoreamento gerado pelas “escarifuças” (espécie de embarcação usada para o garimpo ilegal). Às 12h de sexta-feira cheguei em Porto Velho/RO, e passei a tentar carona até Rio Branco. Como até às 19h não havia conseguido nada e a única esperança era o caminhão do Correio que já estava cheio de caroneiros, comprei minha passagem para o ônibus da meia-noite, gastando R$52,50 suportáveis para o meu orçamento.

Pois bem, aqui estou, no Acre, hospedado no Quartel General da Polícia Militar (só porque Hildebrando não está mais lá), a gastar mais de quarentas reais em lan house para descobrir que o blog estava dando tiuti e recomeçar a escrever outra vez... Espero sair do país ainda esta semana... e seguirei os conselhos de fazer pequenos “bullet points”, aumentar a periodicidade e dar menos detalhes. Mas espero que entendam que estava de “férias” e que, por se tratar de brasileiros (conterrâneos), não queria deixar passar nenhuma figura relevante no percurso.

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