Saturday, June 14, 2008

Sobre a viagem ao Japao

Como a viagem ao Japao e parte indissociavel desta jornada, reproduzo aqui (ate como forma de enrola-los um pouco) o relato que mandei em fevereiro sobre a fase da formacao do pe-de-meia.

abs

Caros conterraneos de minha pátria querida,primeiramente, gostaria de pedir desculpas a todos pela ausencia de noticias. Este deveria ser o meu segundo e-mail, dado que pretendia fazer um relato mensal. Também agradeço pelos votos de sucesso e preocupação com minha saúde constantemente mencionados nas correspondencias que recebo.Tentarei dar o máximo de informações possíveis a respeito desta empreitada na Terra do Sol Nascente, onde milhares de brasileiros vem [por favor, não reparem os erros ortográficos, não acho acentos neste teclado japones] arriscar sua sorte com sua bagagem repleta de sonhos, as vezes ilusoes. Talvez não consiga relatar tudo que gostaria, dado que a constante limitacao de tempo sempre me aflige.DezembroNo dia posterior a prova de Econometria, que encerrou minha passagem de quatro anos (e algum atraso pela GV), iniciei minha viagem ao Japao. Antes de tudo, ansiava juntar certa quantia de dinheiro para objetivos futuros (falo sobre eles em outra ocasião) e, portanto, já possuia a convicção de que esta viagem é apenas a ante-sala daquilo que pretendo explorar.Ainda assim, percebo, por meio dos e-mails que tenho recebido, a quimera turística que trouxe comigo. Imaginava que iria mochilar pelo país, conhecer redutos niponicos do samba (ainda que tímidos), explorar a origem de meus ancestrais... Ledo engano! Com dois terços da jornada completos, estando de fato ciente da verdadeira realidade que acomete os dekaseguis, sinto-me mais a vontade de lhes escrever sem tropeçar nessas ilusoes. Meus primeiros vinte dias foram turísticos. Devido ao feriado de Ano Novo, trabalhei apenas dez dias em dezembro, folgando outros dez até se iniciar o ritmo japones frenético de trabalho. Evidentemente que após o primeiro dia de trabalho, com a constatação da repetitiva atividade que seria minha camisa de força por cerca de tres meses, as viagens de ida a fabrica já haviam deixado o seu caráter principiante e assumido o angustiante. Todavia, a proximidade do feriado aliviava esse tipo de pensamento.Para entenderem o porque da angústia, repoduzo abaixo a descrição que fiz de meu serviço , em minha primeira semana de trabalho, numa das primeiras tentativas de lhes escrever:Para não dizer que eu não falei o que eu faço, ou melhor, para eu nunca mais falar, dado que não há perspectiva alguma no que se refere a desafios na atividade que exerço, irei descrever detalhadamente meu serviço: pego uma peça metalica de mais ou menos 50 cm e 150 gramas e verifico se há rachaduras ou rebarbas nela. Em uma hora, vejo cerca de 480 dessas peças. Multiplique isto por 13 (média de horas de trabalho por dia) e vocês terão, indubitavelmente, dores na costa, vista cansada, maos doendo e, uma infeliz constatacao, coceira. Meu anfitriao na fabrica de auto-pecas bem que me havia avisado de que "o trabalho seria terrivel".
Quarenta e cinco dias após esta descriçao, algumas mudanças devem ser feitas. A coceira devido a alergia ao oleo é menor, o meu oculos ja nao tem duas hastes (uma quebrou), o numero de horas aumentou, mas o trabalho é praticamente o mesmo. As maiores diferenças estao mais em minha postura mental. E é nesse processo de mudança que concentrarei meu relato. Poderei falar mais sobre os passeios que fiz depois, caso desejarem.JaneiroA constatação aterradora de que vivia em um mar de ilusões se deu no ano novo, quando eu estava na casa de meus tios em Kikugawa, província de Shizuoka. Aproveitei a disponibilidade de computador para fazer minhas projeçoes financeiras e verifiquei que somente se eu fizesse seis horas-extras por dia alcançaria minha meta. Julgava aquilo impossível, dado que até aquele momento havia feito uma media de apenas duas horas e meia por dia. Fiquei desesperado e pensei seriamente em desistir e contar com um aditivo paterno as minhas contas. De qualquer forma, estava decidido a procurar algum outro serviço aos finais de semana assim que voltasse a Miyoshi (cidade em que estou).Assim que voltei do feriado, sai caminhando a procura de algum bico. Andei até a cidade vizinha, Toyota, em direção a um mercado especializadoem produtos brasileiros. Lá, a atendente me disse que um possível lugar que admitisse trabalhadores temporários era a academia de ginástica brasileira de um conjunto habitacional chamado Homi Dant. Como ela não havia o telefone de lá, descreveu-me, toscamente, o caminho. Eram 14h30, aproximadamente. Caminhei por quase tres horas sem encontrar o lugar. Definitivamente havia me perdido, mas me negava a desistir. Quando faltava pouco para escurecer e esfriar mais ainda, rendi-me e comecei a fazer o trajeto no sentido contrário, voltando para casa. Foi por pura sorte que encontrei um policial que constrangeria qualquer tentativa minha de voltar para casa de maos abanando. Explicou-me tao dedicadamente o caminho por meio de um mapa e de descricoes em japones, ingles e portugues que cheguei ao destino desejado em menos de trinta minutos.No Homi Dant, a academia não possuia vaga em seu quadro, mas ao menos consegui deixar meu telefone num restaurante. Voltava para casa minimamente satisfeito quando reparei numa pizzaria com letreiro em portugues. Parei para perguntar o caminho mais curto até minha casa e verificar se precisavam de "arubaito" (trabalhador temporario). Foi assim que as quase seis horas e meia de caminhada me renderam o bico de pseudo-pizzaiolo (pseudo porque não faco a massa, só monto a pizza) aos sabados.O bico deu-me nova perspectiva, mas ainda não era suficiente. Precisava cortar gastos e, principalmente, aumentar minha renda por meio de horas extras. Ainda que fosse uma agonia ir ao trabalho nesses primeiros dias, pior era a "onipresente ansiedade" que surgia nas horas finais do período obrigatório de trabalho, isto é, período sem horas extras (representado por 455 minutos na fábrica, ou sete horas e 35 minutos). Sair só de "Teidi", período de trabalho obrigatório, era frustrante para todos os universitários, ávidos por dinheiro. Essa ansiedade durou quase um mes, quando, após algumas "técnicas" de se ganhar horas-extras, minha jornada de trabalho se estabilizou no patamar de aproximadamente 16 a17 horas por dia. Foram dias fatigantes de poucas horas de sono e muitas dores no corpo, mas estava satisfeito, pois sabia que ultrapassaria tranquilamente minha meta, dado que fazia cerca de sete horas adicionais enquanto precisava de apenas seis horas de "zangyo" (hora=extra) por dia. Julgava que o maior obstáculo para a realização de muitas horas extras fosse a inveja dos colegas de serviço, impedidos pela legislacao trabalhista japonesa de fazer mais de 44 h por mes. Mas esta foi contornada após uma conversa capenga (porque em japones), mas direta, com o meu chefe. Resolveu, por uns vinte dias.Infelizmente, se hoje tenho tempo para escrever para voces, é porque houve uma barreira que não pude transpor. No dia 21 de fevereiro aconteceu o fato indesejado: o único que poderia realmente me impedir de realizar horas-extras, isto é, meu chefe, deu-me a triste notícia de que até o final do mês precisaria sair de "teidi", pois já havia estourado minha cota de 99 horas por mês (fiz cerca de 116 horas em fevereiro. Em janeiro, tb havia estourado em aproximadamente oito horas). Das pessoas que suavizam meu cotidiano ferrenho, um dos mais interessantes e engraçados é um japones que trabalha comigo. No começo, ele ate tentava incrementar seu vocabulário portugues com palavras que nao se restringissem a expressoes indecorosas ou ligadas a sexualidade. Dei-me conta de que sua aprendizagem crescia exponencialmente em relacao ao nivel de vulgaridade do gesto ou expressao neste dia em que meu chefe me avisou que sairia de TEIDI. Virou-se para mim, fechou uma das maos e a bateu na outra aberta, fazendo aquele peculiar gesto de "Se fudeu!". Pois e, quantos nao sao os mestres que se tornam vitimas dos seus proprios alunos? Procurarei ensina-lo a contar ate dez, é mais saudavel.Naquele dia 21, meu primerio dia sem nenhuma hora-extra, fiquei das 15h as 22h no escritorio da empreteira utilizando o computador e o telefone. O primeiro, para verificar quanto ja havia atingido de minha meta financeira. O segundo, para procurar outros trabalhos temporarios que cobrissem este buraco no mes de fevereiro.Por meio da planilha financeira, verifiquei que ja tinha atingido, ate aquele momento, 85% de minha meta e que se eu trabalhasse o mes de marco cumprindo minhas 99 horas de direito, cumpriria em 114% meu intuito. Consegui tambem um arubaito na terca feira (26) em uma fabrica de conservas (tsukemono e kimuti, em japones). Sai do trabalho as 3h da manha, tomei banho e fiz a marmita para pegar o transporte da empresa as 5h. Esperei por 40 minutos num baita frio, recordando-me de todas as licoes de xingamentos que ja havia dado ao japones. Nao fui pra casa me aconchegar em minha cama quentinha por um pensamento que se materialiazou na fabrica: minha condicao me permite abdicar dos nove dolares a hora em troca de uns 23 graus celsius a mais e cinco horas de sono, mas e um(a) senhor(a) responsavel pela renda familiar? Teria esta liberdade de escolha? Foi esta reflexao que me levou a admirar meu companheiro de trabalho, conterraneo e vizinho (tambem morava na Raposo Tavares), antes mesmo de conhece-lo. O senhor Yamaguchi tem 63 anos. Veio para o Japao ha seis meses e mora com sua esposa, filha (tb trabalha), filho de, pasmem, 12 anos, e netinha. Ele chega a trabalhar mais de doze horas por dia ganhando os mesmos nove dolares a hora que eu ganharia e fazendo a mesma coisa que eu: pegar uma bacia de uns 15 quilos, jogar sobre uma extensao de 50 centimetros e passar a preencher cinco escorregadores de 40 cm de comprimento com cerca de 200 a 300 gramas de conserva de acelga (kimuti).O senhor Yamaguchi é uma das muitas pessoas que conheci as quais trouxeram consigo, alem de sua dispocicao para trabalhar, o sonho de ter uma vida melhor. Em seu caso, a inseguranca brasileira teve um peso consideravel para o fracasso de suas aspiracoes: foi assaltado mais de 15 vezes, o que prejudicou consideravelmente a quitanda e a floricultura que aí possuía. As vezes penso a respeito desta inversao do fluxo imigratorio entre Brasil e Japao. As aspiracoes sao as mesmas, as dificuldades enfrentadas para a instalacao da nova residencia, parecidas. Buscar seguranca e trabalho, adaptar-se as diferencas de lingua e costumes. O resultado desta expedição é medido por meio das gerações futuras e, de forma pessimista, talvez precoce, julgo que os ancestrais tiveram mais sucesso do que seus vindouros.Os filhos dos dekasseguis nao sao bilingues, sao duplamente semi-lingues. Tem dificuldades para estudar na escola japonesa, nao acompanhando seu ritmo. Ja os que estudam tambem na escola brasileira, tem um ensino tao precario quanto os estudantes de escola publica no Brasil (minha opiniao). Desta forma, acabam ocupando os lugares de seus pais nas fabricas. Acerca da educacao familiar, conheci uma moca que faz parte de um associacao de brasileiros. Aos sabados ela trabalha voluntariamente com criancas e adolescentes "rebeldes" cujos pais nao possuem tempo para passar com os filhos. Disse-me que há muitos jovens brasileiros nos centros de recuperacao (seria um disparate dizer que sao como as FEBEMs do Brasil).Vou encerrando por aqui, bem como o meu ócio. Hoje se inicia uma nova fase, a da despedida dos amigos que regressarão para o Brasil. No apartamento, estamos em oito pessoas, não sobra muito espaço. Sao dois por comodo, sendo que durmo na sala. Ainda assim, devo a esta família, batizada de "Mascote e os sete anões", o conforto psicológico de um bom convivio social. Como diz o Mascote, Cassio, sou o vencedor neste BIG BROTHER niponico dado que serei o ultimo da casa a partir.Ainda que o trabalho me enclausure por mais de tres quartos do dia, estarei com a mente liberta para me lembrar das rodas de samba, quitutes maternos, politica brasileira, cerveja gelada e futebol. Alias, fico pensando nos pelo menos 150 cerebros que viajam por infinitos pensamentos durante a execucao do repetitivo trabalho manual que nao possui a dimensao nobre da definicao de Gandhi, mas que rende ate 17,5 dolares a hora num mundo onde tudo é consumível (alias, nao vi nem de longe toda aquela famosa religiosidade/espiritualidade do povo japones. Os templos sao antes locais turisticos de agrupamento social do que ambientes para reclusão introspectiva. O pais todo parace apenas atiçar seus cinco sentidos). Pelos depoimentos que recolhi, as divagaçoes vao desde o que a pessoa ira comer quando chegar no Brasil, até aos planos para ir ao sunako (bar japones onde uma mulher fica "conversando" com vc enquanto toma drinks a sua custa) ou, mais pragmaticamente, supurando (puteiro) no dia de folga.Recomeço o ritmo intenso de horas=extras com maior animo apos ler os e-mails do Cassio e do Joao. O primeiro, ainda mochila pelo Oriente Médio. O segundo, acaba de regressar da Africa. Continuarei inspirado pelos seus relatos e vigilante com a maxima de Jaiminho, sempre buscando "evitar a fadiga".Acredito que naõ terei mais tempo para escrever, assim, darei notícias minhas pessoalmente.Fiquem com o samba no pé, não deixem o banjo largado na cadeira, tomem a vacina contra febre amarela e evitem usar cartões corporativos.Fernando

1 comment:

Unknown said...

Ae, pilantra, soube por uma amiga minha que vc esteve na casa dos caras em Córdoba. Pô, nem pra avisar que recebeu a msg, tava preocupado aqui! Vê se escreve alguma coisa nesse blog.
Por exemplo, deve ser interessante ter estado na Argentina em pleno fuzuê com caminhoneiros e etc.
Boa viagem!
Abraço.